Intolerância

scene from ‘Intolerance: Love’s Struggle Throughout the Ages’ :: D. W. Griffith ::  1916

 

‘Intolerance: Love’s Struggle Throughout the Ages’ (‘Intolerância’, em português) foi lançado em 1916 por D. W. Griffith. Com custo de produção sem precedentes à época, o filme, ainda mudo, tem cerca de quatro horas de duração e, por meio da dramatização de um poema de Walt Whitman, interliga quatro episódios da história da humanidade profundamente marcados pela intolerância: a guerra da Babilônia, na Mesopotâmia (cerca de seis séculos a.C.); a crucificação de Cristo em 33, na Judéia; a noite de São Bartolomeu, na França do século XVI; e o amor de dois jovens durante uma greve de trabalhadores, nos Estados Unidos da era moderna.

 

A intransigência com relação a opiniões, atitudes, crenças ou modos de ser que difiram dos nossos próprios, e a decorrente repressão, por meio da coação ou da força, das idéias que desaprovamos, têm sido a origem de enorme sofrimento e incontáveis barbáries ao longo da história. A incapacidade de aceitar e de conviver com a diferença talvez seja um dos maiores males que podemos causar a nós mesmos.

 

Alguns anos atrás, o julgamento sobre a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos foi tema de grande repercussão junto à opinião pública brasileira. Em meio a artigos, reportagens e manifestações, uma matéria feita por um jornal de grande circulação teve, sobre mim, grande impacto. Na matéria, duas mulheres eram entrevistadas: a primeira contava do sofrimento vivido por ter sido obrigada a gestar por nove meses um feto que sabia anencéfalo – mesmo tendo recorrido a várias instâncias judiciais, não obteve autorização para um aborto a tempo de fazê-lo de maneira segura. Dizia ter passado todo tempo de gravidez preparando-se para o enterro de um filho que nem chegou a conhecer, e que a experiência fora traumática a ponto de fazê-la desistir de uma nova gravidez.

 

A segunda entrevistada era uma mulher que também havia tido uma gravidez de anencéfalo, mas que, diferentemente da primeira, tinha optado por levar a gravidez até o final, convicta de que aquela era a conduta correta. Mãe já de um menino de três anos, tinha enterrado há pouco seu natimorto, e esperava apenas recuperar-se fisicamente para tentar uma nova gravidez.

 

O que chamava minha atenção nas entrevistas não era apenas a diferença de postura que duas pessoas (de condições sócio-econômicas e culturais muito próximas) tinham frente a uma mesma situação, mas o fato de que, enquanto a primeira defendia o direito à escolha, a segunda condenava veementemente quem viesse a fazer uma escolha diferente da dela. Ela defendia que não houvesse a possibilidade da escolha – afinal, sendo sua conduta ‘obviamente’ a correta, por que permitir que alguém tivesse outra, ‘errada’?

 

Na origem da negação da legitimidade de diferentes opiniões, atitudes, crenças ou modos de ser estão a vaidade e a arrogância. Julgar que o outro seja menos competente para fazer escolhas e traçar caminhos, acreditar que a nossa verdade deva ser também a verdade do outro mostra o quanto ainda devemos evoluir como seres e como cidadãos. Milhares de anos depois, após tanto conhecimento, tantas descobertas e tecnologias, ainda permitimos que a intolerância escravize a liberdade de escolha a que todos temos direito.

 

Para saber mais: http://www.youtube.com/watch?v=GF7ho_-1aWo

Inovando nossa história

Fábio Galeazzo :: Mosaico :: Conspiração BR :: 2012

 

Segundo alguns historiadores, o primeiro registro da azulejaria no Brasil data de cerca de 1620, quando peças de cerâmica vidrada vieram de Portugal para ornamentar o Convento de Santo Amaro de Água-Fria, em Olinda. A partir de então – seja pela força com que representava a cultura da metrópole, seja por sua beleza plástica ou por suas características de conforto térmico (bastante adequadas ao nosso clima) –, o azulejo foi sendo cada vez mais incorporado às construções brasileiras.

 

Presentes inicialmente em painéis nas edificações de uso religioso ou governamental, em poucas décadas as belíssimas peças passaram a ser importadas não apenas de Portugal, mas também da França e da Holanda (países que tinham em sua produção de azulejos importante forma de expressão artística) e começaram a revestir também fachadas de construções urbanas.

 

Ainda no final do século XIX, o azulejo começou a ser produzido no Brasil – mas foi a partir do início do século XX nossa produção tornou-se regular. E muito embora nesse período alguns arquitetos tenham abandonado o uso desse material (numa rejeição a elementos representativos do período colonial), o movimento moderno brasileiro, preocupado em ‘casar tradição com modernidade e fazer dos materiais nacionais e tradicionais ponte entre o colonial e a vanguarda’ *, (re)incorporou o azulejo à sua arquitetura. A partir desse momento, a azulejaria nacional passou a ser uma forte expressão artística de nossa própria cultura, por meio da qual se representavam, junto a formas geométricas, elementos de nossa paisagem, nossa fauna e nossa flora.

 

Sob essa perspectiva histórica, os azulejos desenhados pelo designer Fábio Galeazzo e produzidos pela Azulejaria Brasil (Cerâmica Antigua) ganham dimensão ainda maior. Numa coleção batizada de Conspiração BR (20 estampas subdivididas em 4 temas), Galeazzo resgata e relê, com maestria, um dos mais importantes elementos de nossa arquitetura.

 

Da escolha do formato (15cm X 15 cm, o mais tradicional em nossa produção), passando pela definição dos temas (que vão das imagens presentes na Festa do Divino às estampas tradicionalmente encontradas na chita brasileira) até a montagem da paleta de cores, Galeazzo revela profundo conhecimento, extrema sensibilidade e uma enorme capacidade de inovação, e obtém resultados plásticos de beleza incontestável.

 

Aliando domínio técnico e teórico, sensibilidade e talento, Galeazzo demonstra que o design de interiores pode, sim, a um só tempo, ser inovador e contar história, ser lúdico e propagar cultura – sem deixar de proporcionar beleza aos ambientes, prazer aos olhos e conforto à alma.

 

Para saber mais:

https://fabiogaleazzo.com.br/portfolio/conspiracao-br/

http://www.antigua.com.br/

 

* Marcele Cristiane da Silveira, “O Azulejo na Modernidade Arquitetônica”, dissertação de mestrado, FAUUSP, 2008.

Um não-guia de estilo

La Parisienne :: Inès de la Fressange et Sophie Gachet :: Ed. Flammarion :: 2010

 

Desde seu lançamento, em 2010, muito já se falou sobre o livro de Inès de la Fressange e Sophie Gachet. De fato, ele é ótimo: o texto tem humor, graça e vivacidade; as ilustrações (feitas pela própria Inès) trazem certa delicadeza e uma quase autoironia; as fotos (de autoria das duas autoras) revelam um olhar particular e despretensioso sobre objetos e lugares; e as informações… ora, quem não gostaria de ter uma agenda com endereços dos melhores e menos óbvios produtos e serviços de Paris?

 

A um olhar mais atento, porém, o livro mostra ser muito mais do que um ‘guia de estilo’ – designação que não existe na publicação original (simplesmente ‘La Parisienne’), mas foi agregada ao título em sua tradução para o inglês (‘Parisian chic: a style guide by Inès de la Fressange’), e adotada também na versão em português (‘A Parisiense: o guia de estilo de Inès de la Fressange’).

 

A palavra ‘guia’ traz implícita a ideia de uma obra com regras e instruções que, seguidas, são capazes de garantir o sucesso de determinado empreendimento ou atitude. Mas a noção de que existe uma fórmula, uma receita para ser ‘chic’ (!) ou para ter ‘estilo’ é diametralmente oposta ao pensamento que percorre o livro – e isso fica claro logo em seu início: ‘É preciso saber tomar liberdades com as afirmações categóricas… Algumas regras foram feitas para serem quebradas… Você gosta de vestido laranja com sapatos amarelos? Vá em frente, vai chegar um dia que vão querer copiá-la!’

 

O grande mérito do livro está, na verdade, em estimular a reflexão e o entendimento sobre si mesmo, e em valorizar a expressão individual – seja no modo de vestir, de morar ou de consumir. Ler algo como: ‘(A parisiense) não faz o gênero de torrar todo seu salário num must-have. Primeiro porque não tem dinheiro, e depois porque considera que tem tanto talento quanto um estilista: por que pagar caro por uma produção que ela mesma poderia ter imaginado?’ é muito mais instrutivo do que saber qual a visão particular de Inès a respeito de como combinar sandálias e vestidos.

 

Ou ainda: ‘Por que pensar que é absolutamente necessário pagar milhões para ter arte em casa? Enquadre os desenhos preferidos dos seus filhos… e para qualquer pedaço de papel a que você queira dar importância, os quadros de acrílico magnéticos transformarão até um recado rabiscado num guardanapo…’  É relevante saber de onde são os quadros de acrílico magnéticos? Não, relevante é a noção de que cada um decide aquilo que quer emoldurar – aquilo que, para si, tem valor.

 

Ter estilo é conhecer a si mesmo e ter clareza de suas preferências; saber o que lhe proporciona prazer, o que lhe agrada, o que coexiste em harmonia com seu jeito de se mover, de pensar, de agir, de viver. E fazer de cada escolha, portanto, uma expressão da própria individualidade. Ter estilo é ser consciente de ser único – e desfrutar dessa condição com alegria e prazer.

 

Para saber mais:

‘A parisiense, o guia de estilo de Inès de la Fressange com Sophie Gachet’,
 Ed. Intrínseca, 2011

Forma e pensamento

Mira Schendel :: sem título (da série Objetos Gráficos) :: 1967 :: ©moma.org

 

Dentre os artistas europeus que imigraram para o Brasil durante ou logo após a II Guerra Mundial, e que tanto contribuíram para o enriquecimento da linguagem das nossas artes visuais, Mira Schendel é sem dúvida o nome de maior importância.

 

Nascida em Zurique, viveu também em Berlim, Milão, Sarajevo, Zagreb e em Roma, até imigrar para o Brasil em 1949, instalando-se em Porto Alegre. Não há registros de qualquer produção artística sua durante a vida europeia; deduz-se que, ao imigrar, ela tenha interrompido a formação universitária em filosofia iniciada na Itália, e começado sua produção artística aqui, como autodidata. Como explicou Geraldo de Souza Dias em 2001, no prefácio do catálogo da exposição da artista no Jeu de Paume, de Paris, ‘sua infraestrutura intelectual, alimentada por inquietudes filosóficas e religiosas, encontrou aqui um ambiente cultural muito mais propício ao estímulo da criatividade artística do que ao rigor científico do pensamento filosófico’.

 

Os escritos de Schendel são fundamentais para o entendimento da singularidade de sua obra. Sem se ocupar da história da arte, ela se referenciava na psicologia, na ciência, no conhecimento, na teologia e na filosofia para produzir seus trabalhos, sempre balisados por seus próprios pensamentos e princípios estéticos. Predominante na filosofia ocidental pós Platão, a ideia da cisão inerente à natureza humana – corpo vs. alma, matéria vs. espírito – é central em sua obra, muitas vezes permeada por indagações existenciais ou expressões de origem religiosa.

 

Das naturezas mortas do início, Mira Schendel rapidamente evoluiu para o abstracionismo e em seguida para os escritos – caligrafias de imensa beleza por meio das quais registrava seus pensamentos e inquietudes. Sem abandonar a palavra como expressão do pensamento, Mira foi depois incorporando a esses escritos as letras autocolantes (Letraset©), apropriando-se assim desses signos não apenas como veículos do significado, mas como elementos gráficos de inúmeras possibilidades plásticas. As experimentações com transparências, que permitem que o espectador contemple as duas faces das monotipias, são exemplos máximos da profundidade e da sensibilidade presentes nessa sua investigação.

 

Não há como não se apaixonar pelos trabalhos de Mira Schendel, nem como deixar de reconhecer seu imenso legado artístico. Ninguém transmutou palavra em arte com tanta elegância, delicadeza e personalidade como ela. Mesmo artistas excepcionais como Léon Ferrari (que dividiu com Mira a grande retrospectiva ‘Tangled Alphabets’ no MoMA em 2009) ou Marcel Broodthaers, todos seus contemporâneos, não conseguiram unir com tal beleza forma E pensamento (corpo E alma, matéria E espírito) – e assim proporcionar a um só tempo, por meio da contemplação de uma obra, reflexões profundas e prazeres tão infinitos.

 

Para saber mais:

 

‘Mira Schendel’, catálogo da exposição homônima, Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris, 2001

 

‘Tangled Alphabets • Léon Ferrari and Mira Schendel’, Luis Péres-Oramas, MoMA & CosacNaif, 2009

Esqueça todos seus clichês

ZAZ

 

Uma voz doce e rouca que canta com entusiasmo e simplicidade de menina, mas atitude e competência de mulher.

 

O canto inovador de Isabelle Geoffroy – ou Zaz, como é conhecida – é uma tradução musical do mundo contemporâneo, onde fronteiras entre oriente e ocidente, tradição e inovação, acústico e eletrônico já não se distinguem, e nem fazem mais sentido. Com simplicidade, elegância e uma identidade muito própria, Zaz traz em sua música as mais diversas influências: do jazz ao blues, da tradicional música francesa aos cantos mouriscos, dos sons africanos ao ritmo latino. O resultado é potente: uma música inovadora, carregada de personalidade, emoção e alegria.

 

Seu primeiro álbum, lançado no início de 2010, ficou por meses entre os mais vendidos na Europa, e colocou Zaz entre as grandes revelações da música francesa contemporânea. Sua canção de mais sucesso, ‘Je veux‘, traz o arroubo e o frescor da juventude, em sua ode à liberdade e sua crítica aos padrões estabelecidos na sociedade de consumo. Romantismos e contradições à parte, num cenário musical permeado por lugares-comuns, ouvir uma voz poderosa e bem humorada como a de Zaz cantando ‘oubliez tous vos clichés‘ é um delicioso e divertido prazer.

 

O mesmo álbum traz um belíssimo cover de ‘Dans ma rue‘, originalmente gravada pela grande voz rouca da música francesa, Edith Piaf. E se na voz de Piaf a canção era lindamente noturna e melancólica, na voz de Zaz adquire outra forma beleza – agora, solar e vibrante, mesmo com a tristeza presente na história que se canta.

 

Em mais uma prova de seu talento, Zaz corajosamente regravou ainda em ‘Recto Verso‘, seu álbum segunte, a famosa ‘La Vie en Rose’, talvez o maior sucesso de Piaf – reiterando não apenas sua competência musical, mas também sua capacidade de conferir frescor e imprimir sua forte personalidade artística a uma das canções mais reproduzidas da história da música francesa (e mundial).

 

C’est ça: oubliez les cliches – et vivre la différence!

 

Para ver e ouvir: https://www.youtube.com/watch?v=qIMGuSZbmFI

 

Para saber mais: http://www.zazofficial.com

A chave

Kitagawa Utamaro :: Lovers in an upstairs room :: 1788 :: ©The Trustees of the British Museum

 

27 de fevereiro Como eu imaginava. Minha esposa mantém um diário. Até hoje tomei a precaução de não escrever isso neste caderno, mas na verdade minha atenção foi vagamente despertada alguns dias atrás.Não sou tão vil a ponto de ler o diário de minha própria esposa sem sua permissão. No entanto, embuído de maus sentimentos, tentei retirar com destreza a fita adesiva que o lacrava, de forma a não deixar marcas. Queria assim demonstrar a minha mulher que uma fita apenas seria inútil.

7 de março…Foi então que encontrei a chave caída no mesmo lugar. Pensei que devia haver alguma razão e, abrindo a gaveta, retirei o diário do meu esposo. Para minha surpresa, estava selado com uma fita adesiva da mesma forma como eu tinha feito. Meu marido quererá por certo dizer-me “Experimente abri-lo”?Estava curiosa para tentar puxar a fita sem deixar marcas. E foi por pura curiosidade que tentei fazê-lo.’

 

Jun’Ichiro Tanizaki é um dos mais respeitados nomes da literatura japonesa. Até sua morte (em 1965, aos setenta e nove anos), Tanizaki nunca tinha viajado ao Ocidente; e muito embora em sua juventude tivesse flertado com a modernidade ocidental, jamais foi influenciado pelos valores ou pela moral cristã.

 

Essas escolhas foram determinantes na estruturação de seu universo ficcional. Integrante da Tanbiha, escola literária que buscava a valorização da arte e da beleza (em contraposição ao naturalismo e ao objetivismo predominantes à época), Tanizaki fundamentou toda sua obra na cultura tradicional japonesa, explorando em particular questões ligadas ao erotismo, ao desejo e à intimidade, emocional e física, inerente aos relacionamentos afetivos.

 

‘A chave’, publicado originalmente em 1956, conta a história da vida sexual de um casal de meia-idade por meio de fragmentos dos diários que cada qual, marido e esposa, escreve em segredo. Em dado momento da narrativa, no entanto, ambos passam a suspeitar de que estão sendo lidos um pelo outro. Sem saber se cada confissão é real ou se está sendo forjada apenas para que o outro a leia, personagens e leitor entram num sutil e fascinante jogo que mescla erotismo, desejo, hipocrisia e ambigüidade.

 

São pouco mais de cewm páginas de uma literatura primorosa. Despido da noção de pecado – ocidental e cristã –, Tanizaki explora questões difíceis e delicadas como infidelidade, (in)satisfação, voyeurismo e autodestruição, sem juízo de valor e de forma absolutamente elegante. São diálogos e situações de aparente simplicidade, mas que provocam um despertar de sentidos e um profundo questionamento sobre os limites do desejo e do prazer.

 

‘A chave’ foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras. A mesma editora publicou no ainda ‘Voragem’, ‘Diário de um velho louco’ e ‘Amor insensato’, entre outras obras de Tanizaki.

Ouvindo a própria voz

Bobby McFerrin :: photo Carol Friedman

 

‘É isso que você quer fazer? É desse jeito que você imagina explorar a música?’

 

Bobby McFerrin conta que, ainda jovem, impactado ao ouvir o trabalho que Keith Jarrett fazia ao piano, eram essas as perguntas que vinham à sua mente. A vulnerabilidade de uma pessoa sozinha num palco sempre o tinha fascinado, e ele se perguntava se seria capaz de, como Jarrett, captar a essência de uma música, de suas harmonias, e de captar a sua própria essência – para então, ao cantar, fazê-lo como Jarrett fazia ao piano: com sua verdade e à sua maneira, pessoal e única.

 

Foram quase três anos reclusos, sozinho, cantando, gravando, ouvindo e (re)conhecendo sua própria voz. Durante os dois primeiros, Bobby sequer ouvia outros cantores – temia ser influenciado por algum outro jeito de cantar, e acreditava que isso o distanciaria dele mesmo. Precisava descobrir-se, saber e ter propriedade sobre o som que emanava, conhecer e explorar as possibilidades da própria voz.

 

Também a capacidade de improvisação era para ele um desafio a vencer. Queria descobrir o prazer de se manter em movimento sem saber exatamente aonde chegar… deixar-se ir como uma criança, sem se pautar pelo controle dos conhecimentos teóricos. E então passou outros tantos anos exercitando seu próprio jeito de improvisar – nas palavras dele, ‘exercitando a superação do medo de improvisar, do medo de assumir riscos, de parecer tolo e de não ter ideias suficientes’.

 

Hoje, mais de trinta anos depois, Bobby McFerrin é (re)conhecido em todo o mundo como um dos maiores talentos da música contemporânea. Além da genialidade musical, em cada nota que sua voz emite, e em cada gesto seu, transparecem também uma naturalidade e uma elegância raríssimas, decorrentes da perfeita harmonia existente entre o que faz, o que aparenta e quem verdadeiramente é.

 

A verdade de Bobby McFerrin pode ser também uma alegoria para cada um de nós. Afinal, ser e saber-se único, ouvir a própria voz, expressar sua essência, não temer o desconhecido e experimentar a alegria de se manter em movimento… nada é mais belo, elegante e prazeroso. E é isso o que realmente importa.

 

Para saber mais: http://bobbymcferrin.com/

 

Para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=ktotbE4rN2g (entrevista)

O poder da dúvida

Victor Brauner :: The Triumph of Doubt :: 1946 :: ©Art Institute of Chicago

 

Vivemos uma era de certezas – ou pseudocertezas. Modos de ser, de vestir, de se portar, respostas a questões ou atitudes frente a situações parecem ser únicos, óbvios e indiscutíveis. Em tempos de personal services (trainer, shopper, organizer, styler…!!!), livros de autoajuda e manuais de how-to – sem falar na bíblia contemporânea, o Instagram –, não atender ao must be, ao must have, ou não ter a imediata (e esperada) resposta a qualquer questionamento parece demonstração de ignorância ou fraqueza.

 

Em 2008, em entrevista a Franthiesco Ballerini, então correspondente do jornal O Estado de S. Paulo em Los Angeles – em um contexto de crítica à TV por seu potencial destrutivo da capacidade de reflexão – o premiado ator Alan Arkin fez uma interessante observação: ‘Hoje, quando se faz uma pergunta a um jovem, todos têm uma resposta, ninguém mais reflete para responder. Ninguém mais diz “deixe-me pensar sobre isso”. Até Einstein dizia isso o tempo inteiro, e ele era razoavelmente esperto.’

 

A dúvida é uma das maiores propulsoras do desenvolvimento humano, e a capacidade de reflexão um de nossos maiores patrimônios. Certezas e unanimidades não são apenas burras, mas também estagnantes – só é possível crescer, social e individualmente, por meio do constante questionamento. Quem não se permite dizer ‘não sei, preciso pensar sobre isso’, não conhece o prazer de ouvir a si mesmo – em toda sua alma, razão e sentimentos – e de construir a própria identidade.

 

Usufruir da liberdade de pensamento, exercitar competências emocionais e intelectuais, tomar propriedade sobre seu próprio modo de ser, de pensarm de vestir ou de se portar, bem como estar pleno e íntegro em respostas e atitudes perante a vida (ciente também das responsabilidades nelas implicadas) é um dos maiores prazeres que o ser humano pode proporcionar a si mesmo – e é a forma mais elegante de vivenciar a existência, cada qual tão própria quanto única.

Para onde olham nossos olhos

Arthur Bispo do Rosário :: Manto da Apresentação :: sem data

 

Presume-se que Arthur Bispo do Rosário tenha vivido por cerca de oitenta  anos – não se sabe exatamente o ano de seu nascimento. Desses, cinquenta foram vividos como interno da Colônia Juliano Moreira, antigo manicômio carioca, sendo vinte e cinco ininterruptamente, até sua morte em 1989.

 

Negro, neto de escravos, pobre e migrante, tentou sobreviver no Rio de Janeiro como servente, caseiro, porteiro de edifício, funcionário da antiga Light e segurança de políticos, até ser sentenciado como ‘louco do tipo esquizofrênico paranóico’. Em um contexto marcado pela ascensão do fascismo – inclusive no Brasil, onde a então atuante Liga Brasileira de Higiene Mental adotava uma política higienista, racista e xenófoba –, foi submetido a lobotomia, eletrochoques e castigos por uma psiquiatria que tratava de mutilar e excluir os que incomodavam a ordem reinante.

 

Sua obra veio a conhecimento público, em seu conjunto, apenas após sua morte – e o que se viu foi um legado artístico extremamente original, pautado por uma profunda criatividade temática e pelo uso de diversos materiais e formas, trazendo à luz uma vida até então desconhecida e cujo entendimento passa pela arte, e não pela loucura.

 

Apropriando-se conscientemente de seu exílio como forma de viabilizar sua autoexpressão, Bispo do Rosário transformou em arte todo e qualquer recurso material que teve à mão, demonstrando de maneira incontestável a capacidade inata que tem o homem de criar – a despeito de dificuldades técnicas, materiais, de conhecimento teórico ou de história pessoal. Pelas mãos do artista, garrafas, pentes, moedas, sapatos, canecas, colheres, vassouras, pedaços de tecidos (tirados de lençóis), linhas (para bordar, proveniente do desmanche de uniformes dos internos), deixavam sua função original para se tornarem veículos de sua obsessiva busca por ordenamento, estrutura e ritmo do tempo e do pensamento.

 

Nas palavras de Louise Bourgeois, ‘Bispo do Rosário tinha a capacidade de incorporar um objeto de sua vida de confinamento e transformá-lo num objeto simbólico de sua auto-expressão, mistério, beleza e liberdade’. Deparar-se com qualquer desses objetos é uma experiência invariavelmente carregada de grande emoção, pois não bastasse sua desconcertante beleza plástica, neles reconhecemos formas, palavras e significados que dialogam silenciosamente com a alma humana, despertando sentimentos universais e questionamentos existenciais.

 

Questionamentos, sim. Pois ao olhar para dentro de si, ouvir sua própria alma e se permitir dar vazão à sua essência criativa mesmo frente a imensas adversidades, Bispo do Rosário produziu beleza e colocou-se num lugar da História que a psiquiatria jamais alcançará. E então nos perguntamos para onde estão voltados nossos olhos, para o que estão atentos nossos ouvidos e por que, mesmo quando não há qualquer adversidade, tanto relutamos em deixar brotar a essência criativa que cada um de nós traz, de forma única e singular, dentro de si.

 

P.S.Em 1982, foi inaugurado no Rio de Janeiro o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea – http://www.rioecultura.com.br/instituicao/instituicao.asp?local_cod=119

 

Em 2007, a CosacNaify publicou o belíssimo livro ‘Arthur Bispo do Rosário – Século XX’, organizado por Wilson Lázaro, com textos de Emanuel Araújo, Louise Bourgeois, Paulo

 

Herkenhoff e Ricardo Aquino, e atualmente fora de catálogo.

Silencioso entendimento

Issey Miyake by Irving Penn

 

O americano Irving Penn foi o um dos grandes responsáveis pela construção da imagem da mulher ocidental da segunda metade do século XX. Tendo ingressado na Vogue ao final da década de 40 pelas mãos de Alexander Liberman (com a função de ‘dar ideias para as capas’), acabou por se firmar como talentoso criador de imagens de moda, repletas do glamour e da sensualidade aos quais aspirava a sociedade americana do pós-guerra.

 

Se por um lado seu olhar quase aristocrático privilegiava poses de rígido formalismo – que remetiam às fotografias das décadas anteriores –, por outro lado o minimalismo e o despojamento percebidos nas imagens que criava sem dúvida mostravam o caráter inovador de seu trabalho. Mesmo quando a própria moda era construída por excessos, pelo olhar sensível de Penn filtrava-se o supérfluo, e o resultado eram sempre imagens de grande elegância e sofisticada simplicidade.

 

Nascido em Hiroshima 7 anos antes de a cidade ser destruída pela guerra, Issey Miyake é sem dúvida um dos mais geniais designers contemporâneos. Muito além do rótulo de ‘designer japonês’ que a imprensa internacional lhe costuma atribuir, Miyake jamais restringiu-se à identidade nacional, buscando sempre o equilíbrio entre tradição e inovação para criar projetos universais. ‘Eu crio não para expressar meu ego ou personalidade, mas para tentar trazer respostas àqueles que estão se perguntando sobre nossa era e como deveríamos viver nela.’

 

Partindo de um conceito simples e minimalista – ‘fazer roupa a partir de um pedaço de pano’ – o trabalho de Miyake resulta do antigo princípio de envolver uma figura tridimensional com material bidimensional utilizando-se de dobras. Aliando tecidos japoneses a cortes ocidentais, a novas tecnologias e ao conceito de funcionalidade, seu less is more constrói arquitetonicamente formas simples, elegantes e de rara beleza.

 

Ao longo de mais de 20 anos, entre 1975 e 1998, Irving Penn retratou o trabalho de Issey Miyake. A união entre esses dois artistas de origens culturais tão diferentes foi registrada em 1999 no belíssimo livro ‘Irving Penn regards the works of Issey Miyake’, de Midori Kitamura e Mark Holborn, e que depois gerou uma exposição na 21-21 Design Sight em Tóquio, Japão.

 

Esse encontro, que a princípio pareceria insólito, produziu centenas de imagens arrebatadoras, na medida em que o trabalho de um acabou se tornando espelho para o trabalho do outro. Sob o olhar de Penn, as poses das modelos fizeram das roupas de Miyake verdadeiras esculturas, em cenas que mais se parecem com fragmentos de uma dança; Miyake, por sua vez, ofereceu a Penn a chance de exercitar seu rigor formal com texturas, formas e máscaras vindas de outra cultura. E da união desses dois ‘mestres da redução’, como os definiu Holborn na introdução do livro, surgiram imagens secas, exatas e cortantes, que não oferecem espaço para nada além do essencial.

 

O resultado dessa bela parceria, a que Miyake poeticamente chamou de ‘silencioso entendimento’, comprova que os conceitos de beleza e elegância podem, sim, ser universais – e podem delicadamente tocar as mais diferentes almas por toda a eternidade.