Simplicidade e estilo

Elsa Peretti :: Vogue, 1974 :: photo by Duane Michals

 

Falecida em março de 2021 aos oitenta anos, Elsa Peretti foi sem dúvida a maior responsável pela imagem contemporânea da Tiffany & Co.. Desde sua primeira coleção para a marca, em 1974, a designer italiana criou belíssimos objetos e jóias que se caracterizam por uma simplicidade orgânica e por uma indiscutível elegância formal – atributos que mantiveram suas peças entre as mais vendidas da companhia por quase cinquenta anos.

 

Italiana de Firenze, Elsa desde muito cedo revelou seu espírito criativo, curioso e livre. Filha de um magnata da indústria do petróleo, ainda jovem distanciou-se dos pais conservadores ao passar um tempo na Suíça, lecionando italiano e ski. De volta à Itália, formou-se em design de interiores em Roma e, após romper um tradicional noivado, mudou-se para Milão e começou a trabalhar com o arquiteto Dado Torrigiani. No ano seguinte, 1963, mudou-se para Barcelona e iniciou carreira como modelo, ao mesmo tempo em que mergulhou no fascinante universo dos artistas e arquitetos catalães – em especial no de Gaudí, uma declarada influência. Fascinada pelas formas esculturais, viajou ao Japão e a Hong-Kong para imergir na arte e no simbolismo asiático; por fim, em 1968, emigrou para os Estados Unidos e foi viver em Nova Iorque (segundo ela, o melhor lugar para desfrutar da juventude naqueles anos).

 

Foi desfilando para Halston, Sant’ Angelo e De La Renta que Elsa começou a se interessar  pelo design de jóias e acessórios. Com seu jeito rebelde, o olhar refinado de esteta e a proximidade com o mundo da moda, rapidamente entendeu que a linguagem que estava surgindo no design de roupas (caracterizada pela aliança entre conforto, praticidade e sensualidade) deveria permear também os complementos do vestir. Começou então a modelar em cera formas abstratas, simples e orgânicas, inspiradas na natureza; depois, fundindo-as em prata, fazia delas belíssimas peças, atraentes pelo design clean e inovador e pela primorosa execução. Do primeiro colar ao contrato com a Tiffany foram apenas cinco anos – e no lançamento da primeira coleção para a famosa joalheria, suas peças já estavam todas esgotadas.

 

Elsa Peretti costumava dizer que sua obra vinha de sua vida. E não há dúvidas de que cada uma de suas criações reflete um jeito de ser e de ver o mundo: sua paixão pela natureza, de cujas formas se apropriava para depois reinventá-las; sua incansável curiosidade, que a movia em pesquisas acerca dos mais diversos materiais e processos de produção; a devoção ao artesanato, que fez de cada uma de suas criações resultado de um árduo e investigativo trabalho manual; e a eterna rebeldia, que manteve acesa em sua alma, e até o fim de seus dias, a chama do questionamento.

 

Ainda hoje, não há modelo mais perfeita para as peças de Elsa Peretti do que ela mesma. Estilo (que, segundo a própria designer, não condiz com excessos), beleza, simplicidade, competência, elegância e personalidade – para ver, usar, admirar e aprender.

 

Para saber mais:

http://elsaperettidesign.blogspot.com.br

https://www.tiffany.com.br/world-of-tiffany/about-elsa-peretti/

Villa-Lobos Superstar

 

Heitor Villa-Lobos, como todo grande criador, começou sua obra sob influência dos grandes mestres do estilo vigente à sua época (como Wagner e Puccini), para depois promover o rompimento com a obra acadêmica e criar uma linguagem inovadora, própria e única. Incorporando elementos do folclore, de cantos populares e da cultura indígena à música instrumental (solo, de câmara ou sinfônica), abraçou as questões mais relevantes do modernismo, dando uma nova dimensão à chamada música nacionalista e colocando a música brasileira no cenário mundial. E em toda sua história, o compositor nunca percorreu um caminho linear – explorou várias possibilidades estilísticas e brincou com as mais inusitadas combinações de instrumentos, sempre de forma livre e em constante evolução.

 

Composto hoje por alguns dos maiores músicos brasileiros da atualidade (Rodolfo Stroeter, Paulo Bellinati, Nelson Ayres, Ricardo Mosca e Teco Cardoso), o grupo Pau Brasil sempre teve como objetivo pesquisar novas formas para a música instrumental brasileira. Desde sua criação em 1979, a releitura de gêneros e estilos e o cruzamento entre o tradicional e o contemporâneo para a criação de um repertório ‘visceralmente brasileiro’ são parte intrínseca de sua identidade – e, junto com a excelência técnica, a elegância na interpretação e o bom gosto na definição do repertório, fizeram do grupo uma referência na música instrumental brasileira, com reconhecimento internacional. Além de composições autorais, o Pau Brasil tem (re)leituras de Baden Powel, Jobim, Moacir Santos e Hermeto, entre outros, e de suas parcerias musicais fazem parte nomes como Gilberto Gil, Monica Salmaso, Naná Vasconcelos e Toots Thielemans, passando por Osesp e Jazz Sinfônica.

 

No início de 2012, o Pau Brasil lançou o excepcional ‘Villa-Lobos Superstar’ (em parceria com o quarteto de cordas Ensemble SP e com participação da voz de Renato Braz). Com magníficos arranjos de Ayres e Bellinati, o álbum traz uma releitura sensível de obras como as Bachianas Brasileiras nº 4 (Prelúdio e Cantiga) e nº5 (completas), além de várias outras canções, todas em belíssimas e emocionantes interpretações. E a surpreendente inserção de um quarteto de cordas numa formação tradicionalmente jazzística, acrescida dos pontos de luz criados pela voz de Renato Braz, conferem ao ao álbum uma linguagem como a de Villa-Lobos: inovadora e única.

 

Ao reler Villa-Lobos com tanta competência, o Pau Brasil não apenas demonstra conhecimento acerca da obra do compositor, mas sobretudo a leva adiante, na medida em que, como o próprio Villa-Lobos faria, afirma seu apreço à história, revela seu talento para a inovação e reitera sua vontade de evoluir sempre.

 

Para saber mais: http://www.grupopaubrasil.com.br

 

Inovando nossa história

Fábio Galeazzo :: Mosaico :: Conspiração BR :: 2012

 

Segundo alguns historiadores, o primeiro registro da azulejaria no Brasil data de cerca de 1620, quando peças de cerâmica vidrada vieram de Portugal para ornamentar o Convento de Santo Amaro de Água-Fria, em Olinda. A partir de então – seja pela força com que representava a cultura da metrópole, seja por sua beleza plástica ou por suas características de conforto térmico (bastante adequadas ao nosso clima) –, o azulejo foi sendo cada vez mais incorporado às construções brasileiras.

 

Presentes inicialmente em painéis nas edificações de uso religioso ou governamental, em poucas décadas as belíssimas peças passaram a ser importadas não apenas de Portugal, mas também da França e da Holanda (países que tinham em sua produção de azulejos importante forma de expressão artística) e começaram a revestir também fachadas de construções urbanas.

 

Ainda no final do século XIX, o azulejo começou a ser produzido no Brasil – mas foi a partir do início do século XX nossa produção tornou-se regular. E muito embora nesse período alguns arquitetos tenham abandonado o uso desse material (numa rejeição a elementos representativos do período colonial), o movimento moderno brasileiro, preocupado em ‘casar tradição com modernidade e fazer dos materiais nacionais e tradicionais ponte entre o colonial e a vanguarda’ *, (re)incorporou o azulejo à sua arquitetura. A partir desse momento, a azulejaria nacional passou a ser uma forte expressão artística de nossa própria cultura, por meio da qual se representavam, junto a formas geométricas, elementos de nossa paisagem, nossa fauna e nossa flora.

 

Sob essa perspectiva histórica, os azulejos desenhados pelo designer Fábio Galeazzo e produzidos pela Azulejaria Brasil (Cerâmica Antigua) ganham dimensão ainda maior. Numa coleção batizada de Conspiração BR (20 estampas subdivididas em 4 temas), Galeazzo resgata e relê, com maestria, um dos mais importantes elementos de nossa arquitetura.

 

Da escolha do formato (15cm X 15 cm, o mais tradicional em nossa produção), passando pela definição dos temas (que vão das imagens presentes na Festa do Divino às estampas tradicionalmente encontradas na chita brasileira) até a montagem da paleta de cores, Galeazzo revela profundo conhecimento, extrema sensibilidade e uma enorme capacidade de inovação, e obtém resultados plásticos de beleza incontestável.

 

Aliando domínio técnico e teórico, sensibilidade e talento, Galeazzo demonstra que o design de interiores pode, sim, a um só tempo, ser inovador e contar história, ser lúdico e propagar cultura – sem deixar de proporcionar beleza aos ambientes, prazer aos olhos e conforto à alma.

 

Para saber mais:

https://fabiogaleazzo.com.br/portfolio/conspiracao-br/

http://www.antigua.com.br/

 

* Marcele Cristiane da Silveira, “O Azulejo na Modernidade Arquitetônica”, dissertação de mestrado, FAUUSP, 2008.

Para onde olham nossos olhos

Arthur Bispo do Rosário :: Manto da Apresentação :: sem data

 

Presume-se que Arthur Bispo do Rosário tenha vivido por cerca de oitenta  anos – não se sabe exatamente o ano de seu nascimento. Desses, cinquenta foram vividos como interno da Colônia Juliano Moreira, antigo manicômio carioca, sendo vinte e cinco ininterruptamente, até sua morte em 1989.

 

Negro, neto de escravos, pobre e migrante, tentou sobreviver no Rio de Janeiro como servente, caseiro, porteiro de edifício, funcionário da antiga Light e segurança de políticos, até ser sentenciado como ‘louco do tipo esquizofrênico paranóico’. Em um contexto marcado pela ascensão do fascismo – inclusive no Brasil, onde a então atuante Liga Brasileira de Higiene Mental adotava uma política higienista, racista e xenófoba –, foi submetido a lobotomia, eletrochoques e castigos por uma psiquiatria que tratava de mutilar e excluir os que incomodavam a ordem reinante.

 

Sua obra veio a conhecimento público, em seu conjunto, apenas após sua morte – e o que se viu foi um legado artístico extremamente original, pautado por uma profunda criatividade temática e pelo uso de diversos materiais e formas, trazendo à luz uma vida até então desconhecida e cujo entendimento passa pela arte, e não pela loucura.

 

Apropriando-se conscientemente de seu exílio como forma de viabilizar sua autoexpressão, Bispo do Rosário transformou em arte todo e qualquer recurso material que teve à mão, demonstrando de maneira incontestável a capacidade inata que tem o homem de criar – a despeito de dificuldades técnicas, materiais, de conhecimento teórico ou de história pessoal. Pelas mãos do artista, garrafas, pentes, moedas, sapatos, canecas, colheres, vassouras, pedaços de tecidos (tirados de lençóis), linhas (para bordar, proveniente do desmanche de uniformes dos internos), deixavam sua função original para se tornarem veículos de sua obsessiva busca por ordenamento, estrutura e ritmo do tempo e do pensamento.

 

Nas palavras de Louise Bourgeois, ‘Bispo do Rosário tinha a capacidade de incorporar um objeto de sua vida de confinamento e transformá-lo num objeto simbólico de sua auto-expressão, mistério, beleza e liberdade’. Deparar-se com qualquer desses objetos é uma experiência invariavelmente carregada de grande emoção, pois não bastasse sua desconcertante beleza plástica, neles reconhecemos formas, palavras e significados que dialogam silenciosamente com a alma humana, despertando sentimentos universais e questionamentos existenciais.

 

Questionamentos, sim. Pois ao olhar para dentro de si, ouvir sua própria alma e se permitir dar vazão à sua essência criativa mesmo frente a imensas adversidades, Bispo do Rosário produziu beleza e colocou-se num lugar da História que a psiquiatria jamais alcançará. E então nos perguntamos para onde estão voltados nossos olhos, para o que estão atentos nossos ouvidos e por que, mesmo quando não há qualquer adversidade, tanto relutamos em deixar brotar a essência criativa que cada um de nós traz, de forma única e singular, dentro de si.

 

P.S.Em 1982, foi inaugurado no Rio de Janeiro o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea – http://www.rioecultura.com.br/instituicao/instituicao.asp?local_cod=119

 

Em 2007, a CosacNaify publicou o belíssimo livro ‘Arthur Bispo do Rosário – Século XX’, organizado por Wilson Lázaro, com textos de Emanuel Araújo, Louise Bourgeois, Paulo

 

Herkenhoff e Ricardo Aquino, e atualmente fora de catálogo.

A força e a beleza das palavras

Jenny Holzer :: Xenon on Berlin’s Matthäikirche :: 2001

 

Nascida em Ohio, em 1950, Jenny Holzer é uma artista que ao longo das últimas décadas vem consolidando um lindíssimo e impactante trabalho nas artes visuais. Embora tenha navegado pelo abstracionismo no início de sua carreira, quando se mudou para New York Holzer elegeu a palavra como força motriz de sua obra, e passou a se utilizar de mídias não convencionais, como outdoors, painéis de LED e projeções luminosas, para fazer chegar ao espectador as duas dimensões que compõem uma palavra: a forma e o conteúdo.

 

Os textos de que faz uso têm as mais diferentes origens: muitos são seus próprios escritos, outros são poemas internacionalmente conhecidos, outros ainda têm como fonte documentos governamentais. Mas Holzer se utiliza dessa diversidade para trabalhar  em uma vertente única, que fala de valores universais e estabelece conexões que tocam profundamente a todos nós: o público e o privado, o corpo político e o corpo físico, o global  e o particular.

 

Mais impressionante, porém, é o contraponto que Holzer constrói, em cada obra, entre forma e conteúdo: vemos, ao um só tempo, sensibilidade e força, gigantismo e fluidez, efemeridade e perenidade – tudo isso com um resultado plástico de beleza indiscutível.

 

Frente a uma obra de Holzer, não há como ficar indiferente. A força de sua palavra invade, da forma mais bela, nossos olhos, nossa mente e também nossa alma.

 

Para saber mais: www.jennyholzer.com