Minha cidade, meus caminhos

©Cássio Vasconcellos :: séria aéreas #1 2010-2014 :: São Paulo #4

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nasci e vivo em São Paulo, dirijo (e gosto de dirigir) há mais de trinta anos, e há algum tempo venho me percebendo na contramão da grande maioria dos motoristas de minha cidade. Explico: não sou usuária do Waze. Aliás, não tenho nenhum apreço pelo aplicativo, e por vários motivos. Primeiro, por uma enorme dificuldade em obedecer a comandos: ‘Em 300 metros, vire à direita.’ ‘Vire à direita’. Não sei consigo lidar com o imperativo.

 

Depois, minha formação em arquitetura e urbanismo me fez desenvolver uma relação carinhosa com mapas e guias de rua. Gosto de ler, analisar, deduzir a geografia, estudar possibilidades de caminhos, imaginar as paisagens… Conheço razoavelmente a cidade, ou pelo menos as regiões pelas quais circulo, e tenho um mapa mental dessas áreas bastante detalhado. Quando preciso me deslocar por outras, desconhecidas, consulto previamente a cartografia digital, estudo as associações entre caminhos capazes de me conduzir ao endereço inédito, e me lanço ao desconhecido. Sim, há nisso uma certa aventura, um risco (calculado) de me perder… mas a sensação de plenitude ao desbravar ruas e avenidas até então estrangeiras é, para mim, indescritível – sinto como se me apropriasse cada vez mais desta minha cidade.

 

Por fim, eu e Waze temos diferentes pontos de vista sobre o deslocamento: ele pensa o deslocamento pelo critério da rapidez, eu penso pelo critério da beleza (e também pelo da memória afetiva). Enquanto ele se preocupa em não ‘perder’ um minuto a mais no trânsito, eu me preocupo em qualificar os minutos que, já sei, necessariamente serão dispendidos em meu trajeto.

 

São Paulo é uma megalópole com um modelo de mobilidade ainda calcado em veículos individuais motorizados e sistema de transporte público extremamente deficitário. Qualquer deslocamento por automóvel leva sempre mais tempo do que deveria (ou gostaríamos), e lutar contra essa realidade só aumenta nosso nível de stress. Ou seja, fato posto, é preciso lidar com ele – e da melhor maneira possível.

 

Se a cidade oferece um trânsito superlativo e caótico, por outro oferece também imagens capazes de alegrar, surpreender e emocionar. Uma avenida com árvores centenárias; diversos prédios e diferentes arquiteturas; a rua onde morava o primeiro namorado; a outra, por onde caminhava ao levar os filhos à escola. O que se ganha em prazer, não há dúvida, é muito mais relevante do que os minutos economizados em caminhos mais rápidos.

 

E há ainda uma imensa satisfação ao experimentar a cidade que habitamos. Lembrando Calvino, ‘cidade não é apenas um conceito geográfico, mas um símbolo complexo e inesgotável da experiência humana’. Percorrer suas ruas, (re)conhecer cruzamentos, deduzir traçados, descobrir histórias, perder-se e (re)encontrar-se – é também nisso que reside a riqueza da vida urbana. Cruzar a cidade como autômato, obedecendo a comandos de virar à esquerda ou à direita sem se relacionar com esses espaços, e sem interrelacioná-los, é escolher um caminho reducionista – não apenas para o deslocamento, mas também para a vida.

 

Permita-se. Desfrute. Caminhar por São Paulo não pelo trajeto mais rápido, mas por aquele capaz de falar com sua alma, é uma experiência transformadora. Paisagens, sons, cores, formas, cheiros; por meio dos sentidos, é possível acionar a memória, resgatar vínculos, refazer caminhos, lembrar sua história. É possível também tornar-se mais próximo, mais íntimo da cidade – descobrí-la como àquele amigo que, quanto mais perto está, mais querido se faz.

 

Acredite: percorrer a cidade dessa maneira é bem mais prazeroso e enriquecedor do que obedecendo a um robô autoritário, que sequer vive aqui.

Joia de artista

Frank Stella:: bague :: 2010 :: Collection Diane Venet • photo ©MAD_Paris

 

A ourivesaria esteve intimamente ligada a outras formas de expressão visual desde a pré-História. Diversas culturas, ao longo de séculos, representaram seus deuses, valores, hábitos e modos de vida por meio de pinturas, esculturas, vestimentas ou adornos – linguagens igualmente legítimas, reconhecidas e valorizadas. A partir do Renascimento, no entanto, essas atividades começaram a se diferenciar, com pintores e escultores passando a ser considerados artistas, e ourives, simplesmente artesãos.

 

Do século XVI em diante, as disciplinas tomaram rumos independentes, cada qual atrelada à evolução técnica e material inerente à sua própria execução, bem como à evolução do pensamento e do olhar de seus respectivos artistas ou artesãos. Já no final do século XIX, com a abertura das artes plásticas/visuais ao imaterial, ao conceitual e ao efêmero, a diferença entre as duas formas de expressão parecia intransponível: se por um lado o valor atribuído a uma obra de arte já não estava mais no campo objetivo ou mensurável, por outro a ourivesaria, mesmo produzindo peças únicas, permanecia com seu valor vinculado a seus materiais, frequentemente medido em quilates.

 

Mas eis que, no século XX, artistas reconhecidos por seus trabalhos em pintura, escultura e até em cinema, se interessaram pela joalheria. Seja por encomenda de algum museu ou galeria, para presentear um ente querido ou simplesmente pela oportunidade de se exercitar frente às restrições de um material ou de uma diferente escala, grandes nomes das artes moderna e contemporânea criaram peças para serem usadas no pescoço, no pulso, nas orelhas ou nos dedos.

A belíssima exposição ‘De Calder a Koons, bijoux d’artistes’, organizada pelo Musée des Arts Décoratifs de Paris (MAD_Paris) em 2018, trouxe a público duzentas e trinta peças da coleção particular de Diane Venet, colecionadora de joias de artistas há mais de trinta anos. E por meio de trabalhos de Max Ernst, Pablo Picasso, Frank Stella e Louise Bourgeois, entre outros – inclusive o brasileiro Tunga –, foi possível constatar como, mesmo obrigado a se adaptar às exigências óbvias de uma joia (como tamanho, peso, portabilidade etc.), cada artista é capaz de reafirmar seu vocabulário visual, imprimindo sua própria linguagem e sua identidade à peça criada.

Escultura para o corpo, feita com exclusividade e paixão, cada joia de artista carrega em si uma história muito particular – e ocupa, também por isso, um lugar único no universo da criação humana. Não está inserida no contexto da alta joalheria, no da joia de fantasia, tampouco no contexto do design, com sua produção em larga escala. Também não se associa ao trabalho dos joalheiros independentes, que consideram o objeto ‘joia’ um campo de expressão em si mesmo. A joia de artista é preciosa por sua raridade e sua carga simbólica. E usar uma dessas peças não é um ato inócuo – de certo modo, é uma forma de se apropriar um pouco do gênio do artista que a criou, ampliando assim a dimensão e conferindo outro significado ao (simples?) ato de se enfeitar.

Diálogo sensível

Tapio Wirkkala :: Lehti :: 1951

 

A ideia do belo como algo indiscutível, reconhecido como tal a qualquer tempo e por qualquer cultura, permeia desde sempre o imaginário humano. Da matemática das proporções na Grécia Antiga ao conceito contemporâneo de liberdade e pluralidade, a busca do homem por entender e construir a beleza absoluta esteve presente todo o tempo (sobre o tema, disserto um pouco mais em meu texto ‘A beleza da imperfeição‘).

 

Nesse percurso, a natureza se impôs como grande espelho. O entendimento universal de que a ela seria intrínseca a perfeição (e, portanto, a beleza) fez com que suas formas, cores e texturas fossem incessantemente estudadas e copiadas, não apenas no campo das artes, da arquitetura e do design, mas também no da matemática e no das ciências.

 

Um dos grandes estudiosos da natureza no século XX foi Tapio Wirkkala, o principal nome do design finlandês. Embora tenha viajado muito ao longo da vida, representando seu país em inúmeras exposições e premiações pelo mundo, era nas florestas do interior da Finlândia que o Wirkkala passava a maior parte de seu tempo. Em meio à natureza, sua personalidade contemplativa e reservada encontrava inspiração – as folhas das árvores, as espirais das conchas, os blocos de gelo e as formas de pássaros e peixes eram temas para seu trabalho.

 

Nascido em Häggo em 1915, desde muito cedo Wirkkala demonstrou excepcional habilidade com as mãos e grande talento para desenho. Aos 15 anos começou a estudar escultura e aos 30, já trabalhando como ‘artista comercial’, obteve o primeiro lugar em um concurso de design em vidro promovido pela iitala – premiação essa que inaugurou uma sólida parceria profissional com a empresa, que duraria até sua morte, em 1985.

 

A consagração mundial veio em 1951, quando, na Trienal Internacional de Milão, Wirkkala recebeu três Grand Prix: um por seu desenho para o Pavilhão Finlandês na própria mostra; outro, para o vaso de vidro ‘Kantarelli‘; e outro ainda para ‘Lehti‘ (‘folha’, em finlandês), um de seus primeiros trabalhos em madeira compensada. No mesmo ano, ‘Lehti‘ recebeu também o importante Lunning Prize, e foi considerado o objeto mais belo do mundo pela conceituada revista americana House Beautiful.

 

Versátil, hábil, curioso e extremamente produtivo, Wirkkala exercitou seu talento nos mais diversos materiais – além de vidro e madeira, trabalhou com metal, cerâmica, plástico e papel. Costumava dizer que ‘os materiais têm suas próprias leis, não escritas‘, e que o designer deveria entender essas leis para ‘estar em harmonia com o material que escolhe’.

 

E talvez seja a (perfeita) harmonia o grande diferencial da obra do artista. Não bastasse o profundo entendimento dos materiais, sua relação com as formas da natureza era tão íntima que lhe possibilitou traduzir o universo rural de seu país em objetos extremamente belos e elegantes, cujos desenhos esculturais são também uma lição de funcionalidade e estrutura. Na obra de Wirkkala, a forma não é apenas um objetivo estético – nasce naturalmente do diálogo sensível entre olhos, pensamento, mãos e material.

 

Hoje, suas criações estão presentes nos principais museus e coleções de todo o mundo, assim como muitos dos utensílios que desenhou continuam a ser produzidos em larga escala, permeando milhares de residências ao redor do planeta. Por meio das mãos de Tapio Wirkkala, talvez o ser humano tenha finalmente conseguido construir o belo absoluto, indiscutível e atemporal – mesmo que seja esse um espelho da natureza.

Forma, função e fantasia

Stacking Vessels :: ©Utopia&Utility

 

‘Nosso propósito é enriquecer a vida por meio da beleza.’

 

A frase de Pia Wüstenberg traduz precisamente o que sentimos quando nos deparamos com alguma de suas criações: como num sopro, a vida se enche de beleza e encantamento.

 

Designer de produtos com formação no Royal College of Arts, em 2012 Pia fundou, juntamente com seu irmão Moritz, a Utopia&Utility, uma empresa que cria e produz objetos utilitários e decorativos de altíssimo valor estético – e que carregam também em si um enorme valor ético.

 

Por meio de seus projetos, Pia e Moritz buscam (re)valorizar o que eles chamam de habilidades tácitas – aquele conhecimento específico, profundo e apaixonado que os verdadeiros artesãos têm pelos materiais com o quais trabalham e pelo seu ofício. Com criações que invariavelmente unem materiais tradicionais e diferentes entre si (como vidro, metal, madeira ou cerâmica), eles trabalham com uma rede de artesãos espalhados por toda a Europa. No processo de produção, cada peça viaja por diversas pequenas oficinas, passando por inúmeras mãos talentosas e especializadas antes de chegar ao armazém da empresa, na Alemanha.

 

Não bastasse resgatar a tradição dos artífices e, por meio de seu modelo de negócio, promover o crescimento econômico de pequenas oficinas, a Utopia&Utility insere um pensamento inovador em seus objetos, capaz de transformar por completo a convencional percepção que teríamos acerca deles. Além dos impactantes contrapontos (peso versus leveza, opacidade versus transparência, rusticidade versus polidez), resultantes das inusitadas justaposições entre diferentes materiais, as formas elegantes, os encaixes precisos, as belíssimas combinações de cores e texturas e os acabamentos inesperados imprimem a cada objeto a força de uma obra de arte, manufaturada e única.

 

Por fim, muitas dessas peças nos convidam ainda a uma interação – um jogo lúdico por meio do qual, ao separar cada uma das partes que a compõem, nos surpreendemos com novos objetos, cada qual igualmente belo e íntegro em sua forma, projetado inclusive para abarcar outras funções.

 

Ao reunir, na estruturação de seu trabalho, imperativos éticos e estéticos de uma maneira tão orgânica e equilibrada, Pia e Moritz resgatam o conceito platônico de beleza: cada um de seus objetos, ao proporcionar tal prazer e arrebatamento, nos fala diretamente à alma e se coloca como um ‘esplendor da verdade’.

 

Para saber mais, acesse www.utopiaandutility.eu

“Felicidade se acha é em horinhas de descuido”

Matisse :: Le Bonheur de Vivre :: 1905 :: ©henrimatisse.org

 

No aroma do café fresquinho

Na manteiga que derrete no pão

No cheiro de mato molhado

Na ducha fresca, no verão

Andando descalço pelo chão

No céu, num dia ensolarado

 

No beijo do namorado

Vendo estrelas, na madrugada

Na gargalhada da amiga

Numa chuva inesperada

Reunindo a filharada

Relembrando uma cantiga

 

No álbum, na foto antiga

Na praia, olhando o mar

No sofá, livro na mão

Ouvindo passarinho cantar

Pondo bolo para assar

Cantando uma canção

 

No silêncio da meditação

Ao fim da ginástica ou da corrida

Na mesa posta com carinho

Na casa organizada e florida

No abraço da filha querida

Na taça de um bom vinho

 

No aroma do café fresquinho

Na manteiga que derrete no pão

Basta apenas perceber

Em cada pequena ação

Tem uma diferente emoção

Tem uma pontinha de prazer

 

* Essa frase está no conto ‘Barra da Vaca’, do livro ‘Tutameia (Terceiras estórias)’, de 1967 – último livro publicado em vida por João Guimarães Rosa.

 

A beleza da imperfeição

©Richard Avedon :: portrait of Marella Agnelli :: 1959

 

Ao longo da História ocidental, o conceito de Beleza sempre esteve associado à ideia da perfeição. Na Grécia Antiga, a definição do belo estava estruturalmente ligada às noções de ordem, simetria e clareza, e à presença de proporções definidas como harmônicas. Já na Idade Média, o Cristianismo deu uma dimensão simbólica à Beleza, ao interpretá-la como um atributo divino, tal qual a bondade e a verdade – nesse sentido, também ligada à ideia de perfeição. E embora com o Renascimento tenham surgido concepções relativistas, incorporando ao conceito de Beleza aspectos culturais e sócio-econômicos, foi apenas a partir do século XVII que a subjetividade passou a permear a noção do belo (fazendo emergir então a ideia de ‘gosto’).

 

Na segunda metade do século XVIII, as convulsões sociais na Europa criaram um ambiente propício para o renascimento dos ideais de Beleza da Grécia e Roma Antigas, amplamente utilizados nas imagens de divulgação da Revolução Francesa e do Império Napoleônico. E foi justamente nesse momento que surgiu Kant, o primeiro pensador a deslocar o centro de existência da Beleza do objeto para o sujeito. A divisão que Kant estabelece entre ‘juízo de conhecimento’ (o que emite conceitos baseados nas propriedades do objeto) e ‘juízo estético’ (decorrente da reação pessoal do contemplador diante do objeto) fincou as bases da estética contemporânea. O belo deixa de estar apenas naquilo que se vê, e passa a estar também nos olhos que vêem.

 

O pensamento kantiano abriu caminho para as grandes rupturas estéticas ocorridas entre o final do século XIX e início do século XX. Ao conceito do belo foram incorporadas as ideias de singularidade, individualidade, prazer, emoção, potência, coragem, vitalidade etc.. Pudemos entender que existe Beleza na perfeição, mas que não é preciso haver perfeição para que exista a Beleza. Aguçamos nossa capacidade de percepção e ampliamos a possibilidade de conferir prazer à nossa alma. Passamos a admirar a voz cristalina de Nat King Cole tanto quanto a voz insegura de Chet Baker; as proporções clássicas do rosto de Grace Kelly, e os traços exóticos e voluptuosos de Sophia Loren; a Beleza densa do trabalho de Raushenberg e a quase superficial da pop art de Warhol.

 

Passadas poucas décadas, no entanot, o caminho que parecia de liberdade curiosamente acabou nos conduzindo a um aprisionamento. Estimulada por uma indústria que, interdisciplinarmente, se estrutura na massificação e na hipervalorização da juventude para gerar lucros, a busca por um ideal de Beleza – a busca pela Beleza perfeita – nunca foi tão exacerbada quanto hoje. Num processo insano e sem fim, homens e mulheres se lançam numa jornada rumo àquilo que nada é senão uma construção imaginária coletiva. E ao abandonar sua própria Beleza para (tentar) chegar a outra, vivem eternamente insatisfeitos, vagando no meio desse caminho.

 

É preciso resgatar a riqueza da pluralidade e a Beleza que reside na imperfeição. Lembrar da estranheza de Dovima. Dos olhos de Serge Gainsbourg, dos dentes de Lauren Hutton. Da boca de Mick Jagger, das sobrancelhas de Frida Kahlo e das formas de Grace Jones. E lembrar sobretudo das palavras de Leonard Cohen, que em sua canção ‘Anthem’, de 1992, diz:

 

‘… Forget your perfect offering

There is a crack in everythin

That’s how the light gets in’

(Em livre tradução:

‘… Esqueça a perfeição

Em tudo há uma fresta

E é por ela que entra a luz’)

Cantando os espaços, construindo a canção

Zaha Hadid :: JS Bach Chamber Music Hall, Manchester, UK :: photo ©Luke Hayes

 

Vem de longe a busca de filósofos, historiadores e teóricos pelo estabelecimento de uma conexão entre música e arquitetura. Dois mil e quinhentos anos atrás, Pitágoras já havia conceituado a harmonia matemática como peça fundamental para explicar toda a criação, a existência e a operação do universo. Segundo o filósofo grego, a ‘relação agradável de proporções’ faria com que todas as coisas vibrassem numa grande harmonia universal, assim como as notas numa música.

 

Algumas dessas relações de proporções estabelecidas por Pitágoras acabaram definindo relações espaciais canônicas da arquitetura clássica, assim como definiram também os ‘modos’ musicais predominantes até a Idade Moderna. Na arquitetura e na música ocidentais, a beleza de uma obra, durante séculos, foi pautada pelo conceito pitagórico de harmonia entre seus elementos.

 

Esse entendimento começou a ser questionado, na música, a partir surgimento do sistema tonal, que possibilitou a exploração de outras relações de proporção e intervalos, antes considerados desarmônicos e, portanto, incorretos. Da tonalidade, a música caminhou para a atonalidade, até chegar à sua dissolução e à dodecafonia, com criadores como Schoenberg e John Cage.

 

Paralelamente, as mudanças sociais e políticas decorrentes da ascensão da burguesia na Europa acenderam o desejo de libertação das regras formais do classicismo e a busca por uma expressão individual e pela inovação, permitindo o surgimento de uma nova arquitetura – que, rompendo o compromisso com a simetria e as relações de proporções antes definidas como belas (corretas), culminou, séculos depois, em experências como as de Frank Gehry ou Daniel Liebeskind. Hoje, a noção do belo – seja na música, seja na arquitetura – está pautada por novos e diversos conceitos.

 

Cada qual à sua maneira, música e arquitetura são composições estéticas que resultam da associação entre diferentes elementos, organizada e regida segundo determinados princípios. Altura, extensão, proporção, alternância, repetição, arranjo, ritmo, intensidade, densidade, textura, contraste, harmonia, equilíbrio, tensão… são todos constituidores de uma obra musical, e também constituidores de uma obra arquitetônica. A qualidade da obra, bem como sua beleza, decorre do conhecimento, da competência e da sensibilidade de seu autor no entrelaçar desses elementos.

 

Se, ao longo da História, arquitetura e música revelam ter percorrido trajetórias paralelas (e não apenas no que diz respeito à evolução do conhecimento, mas também em suas respectivas relações com a sociedade), atualmente parecem estar seguindo caminhos divergentes: se por um lado a qualidade em uma obra de arquitetura vem sendo socialmente cada vez mais percebida e exigida, por outro parece não importar que nossa produção musical esteja cada vez mais desprovida de atributos. Hoje, perseguimos e exaltamos a qualidade e a beleza de casas, edifícios, teatros e arenas, mas está fora da pauta discutir a qualidade e a beleza da música executada nesses espaços.

 

Em algum momento, nossa sociedade deixou de entender a música como composição estética, relegando-a simplesmente ao território do entretenimento. Uma pena. Ao prescindir da qualidade e da beleza em nossa produção musical, estamos dia a dia perdendo a oportunidade de ampliar nosso conhecimento, nossos prazeres e o sentido de nossa existência.

Ouvindo a própria voz

Bobby McFerrin :: photo Carol Friedman

 

‘É isso que você quer fazer? É desse jeito que você imagina explorar a música?’

 

Bobby McFerrin conta que, ainda jovem, impactado ao ouvir o trabalho que Keith Jarrett fazia ao piano, eram essas as perguntas que vinham à sua mente. A vulnerabilidade de uma pessoa sozinha num palco sempre o tinha fascinado, e ele se perguntava se seria capaz de, como Jarrett, captar a essência de uma música, de suas harmonias, e de captar a sua própria essência – para então, ao cantar, fazê-lo como Jarrett fazia ao piano: com sua verdade e à sua maneira, pessoal e única.

 

Foram quase três anos reclusos, sozinho, cantando, gravando, ouvindo e (re)conhecendo sua própria voz. Durante os dois primeiros, Bobby sequer ouvia outros cantores – temia ser influenciado por algum outro jeito de cantar, e acreditava que isso o distanciaria dele mesmo. Precisava descobrir-se, saber e ter propriedade sobre o som que emanava, conhecer e explorar as possibilidades da própria voz.

 

Também a capacidade de improvisação era para ele um desafio a vencer. Queria descobrir o prazer de se manter em movimento sem saber exatamente aonde chegar… deixar-se ir como uma criança, sem se pautar pelo controle dos conhecimentos teóricos. E então passou outros tantos anos exercitando seu próprio jeito de improvisar – nas palavras dele, ‘exercitando a superação do medo de improvisar, do medo de assumir riscos, de parecer tolo e de não ter ideias suficientes’.

 

Hoje, mais de trinta anos depois, Bobby McFerrin é (re)conhecido em todo o mundo como um dos maiores talentos da música contemporânea. Além da genialidade musical, em cada nota que sua voz emite, e em cada gesto seu, transparecem também uma naturalidade e uma elegância raríssimas, decorrentes da perfeita harmonia existente entre o que faz, o que aparenta e quem verdadeiramente é.

 

A verdade de Bobby McFerrin pode ser também uma alegoria para cada um de nós. Afinal, ser e saber-se único, ouvir a própria voz, expressar sua essência, não temer o desconhecido e experimentar a alegria de se manter em movimento… nada é mais belo, elegante e prazeroso. E é isso o que realmente importa.

 

Para saber mais: http://bobbymcferrin.com/

 

Para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=ktotbE4rN2g (entrevista)

O planeta blue na estrada do sol

 

Esse é o título de um show acústico que Milton Nascimento apresentou no Teatro de Cultura Artística, em São Paulo, em outubro de 1991. Foram apenas 3 apresentações que, gravadas, deram origem a um álbum de mesmo nome, infelizmente muito pouco conhecido do público e, hoje em dia, fora das prateleiras e das plataformas de streaming.

 

Na maioria de seus trabalhos, Milton sempre privilegiou a interpretação de suas próprias composições. Nesse, diferentemente, coloca-se como intérprete, cantando e tocando (violão, piano e sanfoninha) canções de outros compositores – das 11 que compõem o cd, apenas quatro são de sua autoria. E é nessa surpresa que reside um enorme encantamento.

 

O cantar de Milton transcende qualquer expectativa. Músico de sensibilidade ímpar e dotado de uma voz cristalina, suas interpretações são tão apaixonadas quanto apaixonantes. Com total domínio técnico e extrema propriedade no uso da emoção, Milton faz emergir, de maneira surpreendente e arrebatadora, a essência de cada composição. Como resultado, nos chegam  como inéditas canções que antes julgávamos conhecidas.

 

O que canta em Milton não é apenas sua voz – é, sobretudo, sua alma. E cada palavra que ele entoa chega também à nossa alma, na exata medida do prazer que uma canção pode e deve proporcionar às pessoas.

 

Para degustar: Hello Goodbye (Lennon & McCartney)

Feitiço

 

‘A cidade enfeitiçada’ foi a primeira música de Paulo Gusmão que ouvi. Tal foi meu encantamento – pelo título inspirador, pela composição sublime e por seu arranjo tão sofisticado – que logo decidi buscar informações sobre o compositor que até então desconhecia.

 

O título da música batiza também seu respectivo álbum – uma ode ao Rio de Janeiro, lançada em 2009. Não menos inspiradores são os títulos das outras faixas que ali encontramos: ‘Flor de outono’, ‘O brilho do vagalume’, ‘Sua silhueta sutil’… sem falar em ‘Romance em Vila Humaitá’, delicadamente desmembrada em três atos. São quinze composições cativantes, que encantam e emocionam. Melodias e harmonias que chegam aos nossos ouvidos com leveza e suavidade, parecendo flutuar. Arranjos que estabelecem diálogos sutis entre sanfona, flauta, violão e outros instrumentos, como se cantassem uma história – e o ouvinte se sente imerso na atmosfera do cinema, invadido por imagens carregadas de graça e elegância.

 

Nascido na capital paulista, Paulo iniciou-se na música aos quinze anos. Estudou violão, guitarra, piano, flauta, baixo elétrico e canto, além de ter se dedicado também a percepção, harmonia, arranjo e orquestração. Instrumentista e compositor, já teve suas composições interpretadas por diversos corais, grupos, orquestras e bailarinos. Seu mais recente trabalho, lançado em 2020, o compositor volta à Cidade Maravilhosa, reafirmando sua personalidade em narrativas que sopram como a brisa – evoca Tom Jobim, a leveza tropical, amores românticos, encontros e despedidas, musicando lindamente o que diz o título do álbum: ‘O tempo que foi’.

 

‘A cidade enfeitiçada’, e toda obra de Paulo Gusmão, são o próprio feitiço – um encanto irresistível, magnético, fascinante. Música instrumental brasileira e contemporânea de altíssima qualidade, que toca o ouvido com doçura, a alma com beleza, e nos enche de imenso prazer.

 

Para conhecer e ouvir: www.paulogusmao.com.br.