Implícito em cada um

Hilal Sami Hilal :: da série Alepo :: 2019

 

 

” – Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza.

  – Quando pergunto das outras cidades, quero que você me fale a respeito delas. E de Veneza quando pergunto a respeito de Veneza.

 – Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que parece implícita. No meu caso, trata-se de Veneza.”

 

O diálogo está em um dos mais conhecidos livros de Ítalo Calvino,  ‘As cidades invisíveis’. Nessa breve ficção, Marco Polo descreve para Kublai Khan, a quem serviu durante anos, algumas das inúmeras cidades do império mongol que conheceu. Composta por textos concisos mas ao mesmo tempo ricos em detalhes e carregados de simbologia, a obra não é a única em que autor demonstra seu fascínio pelo tema das cidades.

Calvino acreditava que, por meio do entendimento da lógica e do funcionamento da vida urbana, compreenderia as condições de grande parte da humanidade na era contemporânea, e ao longo de sua carreira se debruçou sobre tais estudos, tendo produzido tanto ensaios (como a obra póstuma ‘Seis propostas para o próximo milênio’) como ficção (‘As cidade invisíveis’, ‘Se um viajante numa noite de inverno’ e ‘Marcovaldo ou as estações da cidade’, entre outros). “Se meu livro ‘As cidades invisíveis’ continua sendo para mim aquele em que penso haver dito mais coisas, será talvez porque tenha conseguido concentrar em um único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjeturas“, diria ele.

‘As cidades invisíveis’ entrelaça narrativas do viajante veneziano com pequenos diálogos entre ele e seu imperador, em uma construção literária que traz muitas surpresas – às vezes até, surpresas dentro de surpresas – e que, assim como as cidades descritas, deve ser percebida em suas várias camadas. Como o pequeno fragmento reproduzido no início deste texto, por exemplo: se à primeira leitura parece um diálogo coloquial e objetivo, a análise mais atenta convida a refletir sobre a fala de Marco Polo, que, nas entrelinhas, toca em um sentimento universal: o vínculo afetivo, profundo e indelével que cada ser humano tem com uma determinada cidade.

Muitas vezes, a cidade amada é aquela onde nascemos, carregada de lembranças e histórias; outras, é a cidade em que moramos, próxima, íntima, entranhada no cotidiano. Mas há casos também em que a paixão é por uma cidade desconhecida – não é preciso sequer percorrer suas ruas para saber que é àquela cidade que pertencemos.

 

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Em todo o mundo, inúmeros artistas fizeram da paixão por uma cidade inspiração para sua obra. Nova Iorque foi por anos um dos principais personagens dos filmes de Woody Allen e das canções de Lou Reed. Paris foi a estrela de Manet e Truffaut, e Veneza, o grande amor de Visconti. Fellini dedicou a Rimini seu ‘Amarcord’. Cadaqués seduziu Picasso, Dalí, Max Ernst e Man Ray, e Monet e Giverny quase se confudem. As ruas de Londres habitam Vivienne Westwood, Dickens e os Beatles, e as da Sicília vivem em Dolce&Gabbana.

O americano Hemingway declarou seu amor em ‘Paris é uma festa’, e Borges fez da sua  Buenos Aires cenário e personagem, em prosa e poesia. As Noites Brancas de São Petesburgo estão no livro homônimo de Dostoiévski; Praga mora em Kafka, Lisboa em Madredeus, Madri em Almodóvar. Há ainda Alighieri e Florença, Ozu e Tóquio, Pedro Juan Gutiérrez e Havana, Elena Poniatwoska e a Cidade do México. E outros tantos casos de amor.

 

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Aqui por perto, Salvador conquistou o argentino Carybé e Jorge Amado, nascido na capital baiana, caiu de amores mesmo por Ilhéus. Pelas linhas dos escritos de Cora Coralina, percorremos as ruas de Goiás, e pelas de Milton Hatoum, as de Manaus. As pequenas e típicas cidades do interior mineiro estão em toda obra de Guignard, e foi o amor pelo Rio de Janeiro que mudou o nome do cronista João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto para… João do Rio.

O Rio, aliás, talvez rivalize com Paris como cidade-fetiche: de Di Cavalcanti a Helio Oiticica, de Chiquinha Gonzaga a Chico Buarque, de Machado a Garcia-Roza, uma infinidade de artistas teve ou tem a cidade como inspiração para suas obras. Tom Jobim é sinônimo de Rio de Janeiro, que teve ainda Heitor, Melodia, Ferrez, Drummond, Fonseca…

São Paulo? Complexa, caótica e misteriosa, a capital paulista não atrai facilmente, mas sempre teve grandes amantes. É a musa de grande parte das canções de Itamar Assumpção, Adoniran, Crioulo e Mano Brown, e se mostra irresistível por meio das lentes apaixonadas de Cristiano Mascaro. ‘São Paulo’ e ‘Operários’, entre outras inspiradas na metrópole, são obras centrais em Tarsila, e nomes como Gregório Gruber e Newton Mesquita há anos dedicam-se aos volumes, planos e linhas da paisagem paulistana. Ugo Giorgetti, mesmo dizendo que odeia a cidade, fez dela tema de seus documentários e cenário de suas ficções – assim como Laís Bodansky e Gianfrancesco Guarnieri. Claude Lévi-Strauss detestou o Rio, e escreveu ‘Saudades de São Paulo’. E talvez ninguém tenha sintetizado de maneira tão fascinante as imperfeições, os movimentos e contrastes da cidade quanto o mineiro Luis Ruffato, em seu belíssimo livro ‘Eles eram muitos cavalos’.

 

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Em meu texto ‘Dos lugares que nos habitam‘, falei especificamente sobre o papel da literatura na ampliação de nossa capacidade de perceber, sentir e imaginar o mundo que habitamos. No entanto, todas as formas de arte contribuem para que se crie, dentro de nós, uma espécie de acervo particular de imagens, sensações, palavras, aromas e sabores relacionados a lugares. Quanto mais diversa for nossa formação cultural, mais sensível e multifacetada será nossa percepção acerca dos espaços que visitamos (física ou imaginariamente).

Talvez venha daí a ‘inexplicável’ paixão por cidades desconhecidas. Estudamos História e Geografia na escola, ouvimos de amigos relatos de viagens, procuramos informações em guias e reportagens, buscamos descobrir os caminhos de nossos antepassados… mas são os artistas que, transformando em arte suas próprias paixões, nos revelam o intangível – e nos ajudam a descobrir qual é, no mundo, nosso lugar mais implícito.

Tudo é um

Lygia Clark :: ‘O dentro é o fora’ :: 1963

 

Uma trajetória sem começo nem fim

Um lugar que é dentro e fora

Um tempo que é antes, depois e agora

Uma forma única, que se manifesta em mim

 

Desde sua criação em 1858, a enigmática fita de Möbius vem fascinando os mais diversos pensadores – de matemáticos a filósofos, de engenheiros a artistas. Criada pelo alemão August Ferdinand Möbius durante seus estudos sobre a teoria geométrica dos poliedros, é obtida a partir da colagem das duas extremidades de uma fita, depois de uma delas ter sido rotacionada em cento e oitenta graus. Como resultado, tem-se um objeto não orientável que possui apenas um lado e uma única borda e que, por materializar um percurso sem início ou término, é reconhecido hoje como signo universal do infinito.

Além de plasticamente bela, a fita de Möbius instiga e convoca à reflexão por romper com conceitos que pareciam definitivos: dentro e fora, em cima e embaixo, começo e fim. Essa ambiguidade espacial alude também a uma ambiguidade temporal – se não existem dois lados, também não existe um antes e um depois –, conduzindo por fim à ambiguidade existencial: o sujeito e o objeto, o eu e o outro. Dissolve-se o sentido de dualidade e oposição – tudo está infinitamente conectado. Tudo é um.

 

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O SobreTodasAsCoisas nasceu em 2011 em decorrência de um trabalho orientado de autoconhecimento. Naquele momento, na tentativa de entender meu percurso pessoal e profissional, busquei interrelacionar e dar forma concreta e consistente às incontáveis atividades e reflexões a que me dedicava e que me pareciam, até então, dispersas e desconexas. O que meus anos como modelo profissional (e minha paixão por moda) teriam a ver com minha constante dedicação à leitura e à escrita? Como relacionar meu trabalho em branding e design gráfico com meus estudos musicais? Para onde convergiriam  cursos e aprendizados sobre temas tão heterogêneos quanto antropologia,  técnicas de produção em vidro, arte contemporânea e poesia haiku?

Esse processo reflexivo e analítico trouxe à luz uma evidência: a estética sempre havia sido o fio condutor de minha trajetória. E falo de estética como valor, nascido de uma ética – uma maneira específica de ver e de se relacionar com o mundo. Um valor que, ao adquirir consistência e significado, se transforma em atitude perante a vida.

Na observação dos pequenos itens que compõem meu universo cotidiano, a cada mínima escolha, nunca me foi possível prescindir da estética – da Beleza – como valor a admirar e perseguir. Como uma fita de Möbius, o valor estético mostrou ser o caminho único que une todas as coisas de minha vida. Todas as coisas sempre foram, em verdade, uma só.

 

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A busca pela Beleza é inata em todos nós. A Beleza permeia cotidianamente nossas visões, ações e relações, e  se estabelece como importante vínculo entre nós e o mundo que nos cerca. Pode estar presente em todas as coisas – sons, imagens, formas, palavras, lugares, atitudes –, despertando nossos sentidos e provocando emoções, paixões e prazeres.  É um valor a observar, investigar, discutir, decifrar, entender, aprender, construir, procurar, desfrutar.

Neste momento em que completa dez anos, o SobreTodasAsCoisas renova sua imagem e expande sua atuação: incorpora a fita de Möbius à sua identidade visual, reafirmando sua visão de mundo e seus valores estruturais; e, ao estender seu perfil a outras redes sociais, potencializa seu alcance e possibilita a diversificação de suas atividades para além da produção de conteúdo (novidades em breve!).

Sigo em minha trajetória única e infinita pela busca da Beleza, compartilhando meu olhar estético sobre as coisas da vida. E ao dividir descobertas, reflexões e aprendizados, espero poder apurar percepções e sentidos, contribuindo assim para a ampliação de nossos prazeres – os meus, os de todos, e os de cada um de nós.

A vertigem das listas

Alighiero Boetti:: ‘Untitled’ :: 1987 :: photo ©Christie’s

 

O título deste texto foi roubado de um dos livros mais apaixonantes de Umberto Eco. ‘A vertigem das listas’, publicado no Brasil em 2010, dá continuidade a um projeto editorial que teve início com ‘História da Beleza’ e ‘História da Feiúra’ (ambos também disponíveis em português) e, assim como seus antecessores, consiste de um ensaio crítico acompanhado de uma antologia literária e de uma belíssima seleção de trabalhos artísticos, que ilustram e ancoram os textos apresentados.

 

Umberto Eco conta que o livro surgiu de um pedido que recebeu do Museu do Louvre para organizar ‘uma série de palestras, exposições, leituras públicas, concertos e projeções’  sobre algum tema de sua livre escolha. E ele propôs as listas (ou elencos, ou catálogos de enumeração), uma preferência que nasceu de seus estudos sobre textos medievais e joyceanos, e que aparece em quase todos os seus romances.

 

No ensaio, Eco reflete sobre como a ideia dos catálogos mudou no decorrer do tempo e como, de um período a outro, expressou o espírito de cada era. O autor, porém, estabelece antes uma distinção entre ‘listas práticas’ (os convidados de uma festa ou o catálogo de uma biblioteca), e ‘listas poéticas’ (aquelas que se propõem a uma finalidade artística, seja qual for a forma de arte, como a Biblioteca de Babel de Borges ou os nomes bordados nos mantos de Bispo do Rosário). Enquanto as primeiras teriam função referencial e objetivo prático, elencando coisas segundo um modelo de organização e fechando-se de forma harmônica e completa, as outras conduziriam a um universo subjetivo, capaz de nos abrir sucessivas portas e levar ao infinito.

 

Quais são as letras de um alfabeto? E as palavras que com elas construímos? Quantas são minhas memórias? E as estrelas do céu?

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‘Alta fidelidade’ é um livro de Nick Hornby sobre o qual muito já se falou. Publicado em 1995 e levado às telas do cinema cinco anos depois pelas mãos de Stephen Frears, tem como narrador Rob Fleming – um londrino de trinta e cinco anos, proprietário de uma loja de discos à beira da falência, viciado em cultura pop e que não consegue pensar a vida senão em termos de listas dos ‘cinco melhores de todos os tempos’: livros, filmes, bandas, cantores, álbuns, solos de guitarra, notícias, amantes, separações etc.. Et cetera.

 

À época desses lançamentos, criar listas – mentais ou em rodas de amigos – virou febre. Todos queríamos discutir os ‘cinco melhores’ de nossas vidas, em todos os assuntos. No entanto, a brincadeira que divertia também gerava angústia, pois para cada lista de coisas escolhidas, outra ainda maior se montava: a das coisas rejeitadas.

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Qualquer processo individual de seleção e escolha, se feito com consciência, é um exercício de autoconhecimento. Por meio da reflexão – por que este e não aquele? – podemos ampliar o entendimento acerca de nosso momento de vida, de nossa própria visão de mundo, de nossos valores, emoções e prazeres, o que talvez ajude a nos tornarmos um pouco mais seguros diante de novas escolhas.

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Esse exercício de enumeração é sedutor, e pode abrir um leque de infinitas listas em nosso imaginário: músicas, autores, poemas, pinturas, receitas, lugares a visitar… E uma mesma lista pode inclusive adquirir as duas formas, prática ou poética. Como? Os ingredientes culinários registrados em uma lista de compras domésticas, por exemplo, têm caráter puramente prático, mas presentes em um livro sobre culinária mediterrânea podem adquirir valor poético. Da mesma maneira, a lista de nomes dos soldados norteamericanos mortos na guerra do Iraque têm dimensão poética na obra de Jenny Holzer, mas reduz-se ao âmbito prático quando em um documento oficial do Governo dos Estados Unidos.

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Listar nossos cinco, dez ou vinte melhores livros, filmes, canções, o que for, é fazer o esboço de um esprit du temps particular – um recorte que expressa os sentimentos e reflexões de quem somos neste momento. Não retrata quem somos, mas quem ‘estamos’.

 

Talvez amanhã não façamos as mesmas escolhas, pois talvez amanhã não sejamos mais quem somos hoje. Viver é manter-se em movimento, caminhar, evoluir. Não se congelar no próprio saber, nas próprias crenças; é manter-se vendo e revendo filmes, ouvindo e reouvindo canções, lendo e relendo livros, descobrindo e redescobrindo coisas, pessoas, lugares, prazeres. Sobretudo, viver é continuar aprendendo, reaprendendo, e sempre olhando para dentro de si como quem olha para uma lista poética de histórias, gostos, valores, imagens e memórias. Uma lista que termina em et cetera.

Slow life

Kinfolk :: ©Citizen Atelier

 

Slow Movement começou a aparecer no final do século XX tendo como elemento central o estabelecimento de uma nova relação homem-tempo. Não surgiu como movimento social coletivo, estruturado, mas como resultado de ações pontuais de pessoas ou pequenos grupos de diversos segmentos da sociedade que buscavam substituir modelos culturais pautados por eficiência e pela síndrome do tempo por outros mais holísticos e integrativos. Em linhas gerais, veio como reação aos ‘impactos negativos da globalização econômica e cultural, especialmente no que concerne aos desequilíbrios gerados pela aceleração desmedida dos procedimentos e relações sociais, para propor uma nova relação do homem consigo, com seu meio, seus sistemas de produção, de concepção de valores e de ordenamento institucional, sempre a partir da transformação da relação da sociedade com o tempo.’ *  Ou seja, mais do que pregar desaceleração, o slow movement trazia o conceito de qualificação do tempo.

 

Sob essa perspectiva, o pensamento slow conectou-se com a ideia de qualidade de vida: descobrindo o que é mais importante para nós mesmos, podemos estruturar nosso jeito de viver – nosso lifestyle – de forma a garantir mais tempo para as coisas de que gostamos, aquelas que realmente queremos fazer, aquilo que achamos mais benéfico, belo, divertido, prazeroso. A descoberta da real importância das coisas e do prazer que cada uma pode nos dar (e que nada mais é do que a reflexão sobre si mesmo) acaba conferindo significado às escolhas e colocando-as em outra dimensão, já que passam a traduzir a verdade e a unicidade de uma determinada existência.

 

Foi justamente esse esprit du temps que a revista Kinfolk soube captar tão bem. Criada em 2011 por um grupo de amigos liderado por Nathan Williams em Portland, Oregon, em menos de cinco anos passou de publicação independente a uma das mais influentes referências estéticas contemporâneas. Poucos meses após o tímido lançamento do perfil @Kinfolk no Instagram, a primeira edição impressa foi lançada por uma editora de San Francisco; sete números depois, suas operações já eram transferidas para a Dinamarca onde, por meio de sua própria editora, Williams passou a lançar edições trimestrais com cerca de cento e setenta páginas primorosamente impressas e conteúdo dedicado às diversas instâncias do ‘lifestyle’: moda, decoração, arte, trabalho, cultura, entretenimento. Desde então, cada número da Kinfolk é estruturado em torno de um tema – o mais recente, da edição Spring 2021 #39, é ‘Juventude’; edições anteriores já trouxeram questões como ‘Mudança’, ‘Intimidade’ e ‘Educação’, falaram de cidades como ‘Tóquio’ e ‘Paris’, e abordaram assuntos como ‘Arquitetura’ e ‘Esportes’.

 

Em entrevista concedida em 2016 à revista dezeen, Nathan Williams contou que o foco inicial da Kinfolk era ‘comida’ – a ideia era dar à revista um ar de ‘mesa de amigos’, onde se compartilham alimentos e ideias. Com o passar do tempo, no entanto, pesquisas e entrevistas indicaram que os leitores se conectavam à revista não exatamente por esse ‘clima’, mas por associar seu conteúdo à qualidade de vida. A partir dessa informação, Williams e sua equipe criativa (atualmente distribuída por Copenhague, Tóquio, Londres e Nova Iorque) redesenharam todo o escopo editorial da revista, e esse enfoque, atrelado aos princípios do Slow Movement, definiu os rumos da publicação. Hoje, a Kinfolk é uma potência que se multiplica para além da versão impressa: posts diários no site, no Instagram e no Facebook; livros temáticos; campanhas, filmes e publicações tailor made para clientes globais; eventos internacionais e até uma galeria no coração de Copenhague – a Kinfolk Gallery, projetada pelo Norm Architects como espaço colaborativo e multifuncional que acolhe exposições de arte, lojas pop-up, palestras, desfiles de moda, oficinas etc..

 

Segundo Williams, ‘as revistas de interiores que assinamos e que chegam ao nosso escritório geralmente se concentram no design e no estilo, quase sempre deixando de fora as pessoas, suas vidas e as experiências que acontecem em suas casas. Nós, quando trabalhamos nos livros e em cada edição da revista, buscamos realmente captar um estilo de vida, traduzir a pessoa que mora em um determinado espaço, o que aquela faz, por que organizou a casa daquela maneira, como aquilo funciona, por que aquelas escolhas dão certo dentro de seu modo de viver… Nunca fotografaremos ou apresentaremos uma casa sem incluir um retrato do proprietário da casa’.

 

Por esse jeito tão próprio olhar para as pessoas e os assuntos de que trata, a Kinfolk acabou construindo uma linguagem muito particular. Os textos, mais extensos e profundos do que os da maioria das revistas de mesmo segmento, as fotografias de estética analógica (que colocam as imagens no campo do real, do concreto e imperfeito), a curadoria dos temas e seus conteúdos específicos, tudo na Kinfolk tem a intenção de transportar o leitor para um lugar calmo, lento e tranquilo, onde esse leitor tem a possibilidade de estabelecer uma conexão real com o que está vendo e lendo. A ideia não é exibir indivíduos, objetos, ambientes ou lugares (a exibição distancia) mas conferir significado a eles (o significado aproxima).

 

Decupada em inúmeras vertentes e talvez por isso equivocadamente banalizada (slow food, slow travelslow schoolslow fashion, slow cities…), a cultura slow na verdade trata de valores mais profundos. Carl Honoré, autor de ‘In praise of slow** e um dos primeiros a jogar luz sobre o movimento, diz que ‘não se trata de fazer tudo a um ritmo de caracol. Trata-se de tentar fazer tudo à velocidade certa. Saboreando as horas e minutos em vez de apenas contá-los. Fazendo tudo o que for possível, em vez de ser o mais rápido possível. É sobre ter qualidade em detrimento da quantidade em tudo, desde o trabalho até a comida e a criação dos filhos’.

 

Talvez este momento difícil, em que sociedades inteiras, em todo o planeta, estão sendo obrigadas a alterar seu ritmo de vida, nos dê a oportunidade de refletir sobre nossa relação com o tempo e de recuperar nossa autonomia em relação a ele. Entender o que de fato é relevante, dar sentido às nossas escolhas, reorganizar e moldar a vida de forma a garantir mais tempo para as pessoas com quem nos importamos, para as coisas de que gostamos. E aprender a usufruir desse tempo com integridade e presença, e não simplesmente preocupados com a próxima tarefa a cumprir.

 

Para saber mais:

kinfolk.com

ted.com/speakers/carl_honore

 

* Extrato do texto ‘Slow movement: reação ao descompasso entre ritmos sociais e biológicos’,  de Rafael Chequer Bauer, Alexandre Panosso Netto e Luiz Gonzaga Godoi Trigo, publicado na Revista de Estudos Culturais da Escola de Comunicação, Artes e Humanidades da USP (EACH-USP), edição nº 2 :: Dossiê Temporalidades, 2018

 

** ‘In praise of slow’  foi lançado no Brasil pela Editora Record em 2005, sob o título ‘Devagar’

Minha cidade, meus caminhos

©Cássio Vasconcellos :: séria aéreas #1 2010-2014 :: São Paulo #4

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nasci e vivo em São Paulo, dirijo (e gosto de dirigir) há mais de trinta anos, e há algum tempo venho me percebendo na contramão da grande maioria dos motoristas de minha cidade. Explico: não sou usuária do Waze. Aliás, não tenho nenhum apreço pelo aplicativo, e por vários motivos. Primeiro, por uma enorme dificuldade em obedecer a comandos: ‘Em 300 metros, vire à direita.’ ‘Vire à direita’. Não sei consigo lidar com o imperativo.

 

Depois, minha formação em arquitetura e urbanismo me fez desenvolver uma relação carinhosa com mapas e guias de rua. Gosto de ler, analisar, deduzir a geografia, estudar possibilidades de caminhos, imaginar as paisagens… Conheço razoavelmente a cidade, ou pelo menos as regiões pelas quais circulo, e tenho um mapa mental dessas áreas bastante detalhado. Quando preciso me deslocar por outras, desconhecidas, consulto previamente a cartografia digital, estudo as associações entre caminhos capazes de me conduzir ao endereço inédito, e me lanço ao desconhecido. Sim, há nisso uma certa aventura, um risco (calculado) de me perder… mas a sensação de plenitude ao desbravar ruas e avenidas até então estrangeiras é, para mim, indescritível – sinto como se me apropriasse cada vez mais desta minha cidade.

 

Por fim, eu e Waze temos diferentes pontos de vista sobre o deslocamento: ele pensa o deslocamento pelo critério da rapidez, eu penso pelo critério da beleza (e também pelo da memória afetiva). Enquanto ele se preocupa em não ‘perder’ um minuto a mais no trânsito, eu me preocupo em qualificar os minutos que, já sei, necessariamente serão dispendidos em meu trajeto.

 

São Paulo é uma megalópole com um modelo de mobilidade ainda calcado em veículos individuais motorizados e sistema de transporte público extremamente deficitário. Qualquer deslocamento por automóvel leva sempre mais tempo do que deveria (ou gostaríamos), e lutar contra essa realidade só aumenta nosso nível de stress. Ou seja, fato posto, é preciso lidar com ele – e da melhor maneira possível.

 

Se a cidade oferece um trânsito superlativo e caótico, por outro oferece também imagens capazes de alegrar, surpreender e emocionar. Uma avenida com árvores centenárias; diversos prédios e diferentes arquiteturas; a rua onde morava o primeiro namorado; a outra, por onde caminhava ao levar os filhos à escola. O que se ganha em prazer, não há dúvida, é muito mais relevante do que os minutos economizados em caminhos mais rápidos.

 

E há ainda uma imensa satisfação ao experimentar a cidade que habitamos. Lembrando Calvino, ‘cidade não é apenas um conceito geográfico, mas um símbolo complexo e inesgotável da experiência humana’. Percorrer suas ruas, (re)conhecer cruzamentos, deduzir traçados, descobrir histórias, perder-se e (re)encontrar-se – é também nisso que reside a riqueza da vida urbana. Cruzar a cidade como autômato, obedecendo a comandos de virar à esquerda ou à direita sem se relacionar com esses espaços, e sem interrelacioná-los, é escolher um caminho reducionista – não apenas para o deslocamento, mas também para a vida.

 

Permita-se. Desfrute. Caminhar por São Paulo não pelo trajeto mais rápido, mas por aquele capaz de falar com sua alma, é uma experiência transformadora. Paisagens, sons, cores, formas, cheiros; por meio dos sentidos, é possível acionar a memória, resgatar vínculos, refazer caminhos, lembrar sua história. É possível também tornar-se mais próximo, mais íntimo da cidade – descobrí-la como àquele amigo que, quanto mais perto está, mais querido se faz.

 

Acredite: percorrer a cidade dessa maneira é bem mais prazeroso e enriquecedor do que obedecendo a um robô autoritário, que sequer vive aqui.

Imensidão azul

Deborah Paiva :: Menina com guarda-chuva :: 2014

 

Descobri a pintura de Deborah Paiva quando vi, pela primeira vez, a imagem que ilustra este texto. Eram meados de 2015 e a imagem me saltou aos olhos em uma rede social, por meio de uma amiga em comum. No mesmo instante vieram à minha mente, todos misturados, os azuis de Kieslowski, o cotidiano de Hopper, as cenas capturadas por  Sophie Calle para sua série ‘Voir la mer‘ e os bordados de Louise Bourgeois que compõem a ‘Ode a la Bièvre‘. Uma imagem que me tocou (e ainda toca) por entrelaçar, com elegância e delicadeza, silêncio e solidão, melancolia e contemplação, intimidade e imensidão.

 

A obra integrava a exposição ‘A liberdade é azul’, que Deborah tinha acabado de inaugurar no Museu de Arte Contemporânea de Campinas. Além dessa, outras pinturas de grandes dimensões e infinitos azuis colocavam o observador perto – mas não dentro – de situações cotidianas, cujos personagens (em sua maioria femininos) se mostravam paradoxalmente desprovidos de persona: nenhuma face, nenhuma narrativa explícita, nenhuma história revelada. Apenas momentos congelados de um cotidiano comum – e comum não apenas por sua frugalidade, mas também pela possibilidade de pertencer a qualquer pessoa, personagem ou observador.

 

Menos de dois anos depois, a artista inaugurou outra belíssima exposição na Galeria Rabieh, em São Paulo. Em ‘Um dia comum’, Deborah continuava observando o mundo com seu olhar sensível e atento, capaz de capturar em cenas corriqueiras e aparentemente banais o momento preciso em que a existência humana toca a eternidade – aquele instante fugaz em que tudo ao nosso redor parece entrar em estado de suspensão para que exista apenas um universo interior.

 

Ferreira Gullar (1930-2016) costumava dizer que a verdadeira arte traz em sua essência uma complexa uma alquimia, que é a capacidade de transformar ‘sofrimento em alegria, isto é, em beleza’ (1). Para ele, ‘a arte sempre teve (e tem) a ver com a beleza, porque, do contrário, não nos daria prazer’. E é essa alquimia de que fala Gullar que se percebe na obra de Deborah. Não bastasse o caráter universal das cenas que retrata, a artista transforma solidão e melancolia em lindos azuis, rosas delicados ou cinzas sutis, e (re)constrói, com beleza, poesia e personalidade, a vida de cada personagem – e a de cada um de nós.

 

Como disse Ferreira Gullar em sua frase mais famosa, ‘a arte existe porque a vida não basta’. Artistas como Deborah, ao traduzirem em beleza nosso cotidiano, ampliam os prazeres de nossa vida – e a dimensão de nossa existência.

 

(1) ‘Arte como alquimia‘, texto de Ferreira Gullar publicado no jornal Folha de S. Paulo em 19 de abril de 2015

 

Este texto não teria sido escrito sem a leitura prévia dos seguintes artigos:
Sobre inflexões na pintura de Deborah Paiva‘, Afonso Henrique Martins Luz, Galeria Virgílio, São Paulo, 2012; ‘Exercício de olhar, Aracy Amaral, Museu Lasar Segall, 2012; ‘Um dia comum‘, Douglas de Freitas, Galeria Rabieh, 2017.

A estetização do mundo

Zin Lim :: ID#30 :: ©SaatchiArt

 

‘Não estamos mais no tempo em que produção industrial e cultura remetiam a universos separados, radicalmente inconciliáveis; estamos no momento em que sistemas de produção, de distribuição e de consumo são impregnados, penetrados, remodelados por operações de natureza fundamentalmente estética. O estilo, a beleza, a mobilização dos gostos e das sensibilidades se impõem cada dia mais como imperativos estratégicos das marcas: é um modo de produção estético que define o capitalismo de hiperconsumo.’

 

Em seu livro ‘A estetização do mundo’ (escrito em parceria com o crítico de arte Jean Serroy), o filósofo Gilles Lipovetsky propõe um olhar inovador sobre a relação entre a economia liberal e a vida estética contemporânea. Em pouco mais de 400 páginas, Lipovetsky fala com brilhantismo sobre um dos grandes paradoxos do capitalismo de consumo: se por um lado produz efeitos inegavelmente desastrosos nos planos moral, social e econômico, por outro, ao explorar racionalmente e de maneira generalizada as propriedades estético-imaginárias (objetivando o lucro e a conquista de mercados), ele potencializa as dimensões criativas, intuitivas e emocionais, estilizando o universo cotidiano.

 

Segundo Lipovetsky, esse capitalismo contemporâneo busca construir uma imagem artista para seus autores: ‘os jardineiros se tornaram paisagistas; os cabeleireiros, hair designers; os cozinheiros, criadores culinários…’. Diferentemente da época fordista, em que o foco era a produção material, nesse novo modelo o foco é o imaterial – o intangível, o imaginário, o sonho. Assim, apelando para a sensibilidade dos consumidores, arte e estética estariam postas a serviço do mercado, criando-se o que o autor chama de ‘capitalismo artista’.

 

De maneira didática e acessível, Lipovetsky traça um breve fio histórico (da Antiguidade clássica até os dias de hoje) para então expor sua ótima análise sobre as relações contemporâneas entre indústria, consumo, marca, arte e design. Elegante e provocativo, aponta o hiperindividualismo, potencializado pelo compartilhamento em rede de vidas estetizadas, como elo fundamental nessa cadeia de interações complementares e interdependentes.

 

Considerado um dos mais importantes pensadores de nosso tempo, com olhar especialmente voltado às questões de sociologia e filosofia do consumo, da moda e do luxo, Lipovetsky amplia nossa compreensão acerca deste mundo em que ‘tudo segue a lógica da moda: é efêmero e sedutor’, e nos põe em cheque em relação a um de nossos mais primitivos instintos: a eterna busca pela beleza e pelo prazer que ela proporciona à nossa alma.

 

Do mesmo autor, são também excelentes leituras ‘A era do vazio’ (Editora Manole), ‘O império do efêmero’ (Companhia de Bolso) e ‘O capitalismo estético na era da globalização’ (Edições 70 – Brasil).

A beleza da imperfeição

©Richard Avedon :: portrait of Marella Agnelli :: 1959

 

Ao longo da História ocidental, o conceito de Beleza sempre esteve associado à ideia da perfeição. Na Grécia Antiga, a definição do belo estava estruturalmente ligada às noções de ordem, simetria e clareza, e à presença de proporções definidas como harmônicas. Já na Idade Média, o Cristianismo deu uma dimensão simbólica à Beleza, ao interpretá-la como um atributo divino, tal qual a bondade e a verdade – nesse sentido, também ligada à ideia de perfeição. E embora com o Renascimento tenham surgido concepções relativistas, incorporando ao conceito de Beleza aspectos culturais e sócio-econômicos, foi apenas a partir do século XVII que a subjetividade passou a permear a noção do belo (fazendo emergir então a ideia de ‘gosto’).

 

Na segunda metade do século XVIII, as convulsões sociais na Europa criaram um ambiente propício para o renascimento dos ideais de Beleza da Grécia e Roma Antigas, amplamente utilizados nas imagens de divulgação da Revolução Francesa e do Império Napoleônico. E foi justamente nesse momento que surgiu Kant, o primeiro pensador a deslocar o centro de existência da Beleza do objeto para o sujeito. A divisão que Kant estabelece entre ‘juízo de conhecimento’ (o que emite conceitos baseados nas propriedades do objeto) e ‘juízo estético’ (decorrente da reação pessoal do contemplador diante do objeto) fincou as bases da estética contemporânea. O belo deixa de estar apenas naquilo que se vê, e passa a estar também nos olhos que vêem.

 

O pensamento kantiano abriu caminho para as grandes rupturas estéticas ocorridas entre o final do século XIX e início do século XX. Ao conceito do belo foram incorporadas as ideias de singularidade, individualidade, prazer, emoção, potência, coragem, vitalidade etc.. Pudemos entender que existe Beleza na perfeição, mas que não é preciso haver perfeição para que exista a Beleza. Aguçamos nossa capacidade de percepção e ampliamos a possibilidade de conferir prazer à nossa alma. Passamos a admirar a voz cristalina de Nat King Cole tanto quanto a voz insegura de Chet Baker; as proporções clássicas do rosto de Grace Kelly, e os traços exóticos e voluptuosos de Sophia Loren; a Beleza densa do trabalho de Raushenberg e a quase superficial da pop art de Warhol.

 

Passadas poucas décadas, no entanot, o caminho que parecia de liberdade curiosamente acabou nos conduzindo a um aprisionamento. Estimulada por uma indústria que, interdisciplinarmente, se estrutura na massificação e na hipervalorização da juventude para gerar lucros, a busca por um ideal de Beleza – a busca pela Beleza perfeita – nunca foi tão exacerbada quanto hoje. Num processo insano e sem fim, homens e mulheres se lançam numa jornada rumo àquilo que nada é senão uma construção imaginária coletiva. E ao abandonar sua própria Beleza para (tentar) chegar a outra, vivem eternamente insatisfeitos, vagando no meio desse caminho.

 

É preciso resgatar a riqueza da pluralidade e a Beleza que reside na imperfeição. Lembrar da estranheza de Dovima. Dos olhos de Serge Gainsbourg, dos dentes de Lauren Hutton. Da boca de Mick Jagger, das sobrancelhas de Frida Kahlo e das formas de Grace Jones. E lembrar sobretudo das palavras de Leonard Cohen, que em sua canção ‘Anthem’, de 1992, diz:

 

‘… Forget your perfect offering

There is a crack in everythin

That’s how the light gets in’

(Em livre tradução:

‘… Esqueça a perfeição

Em tudo há uma fresta

E é por ela que entra a luz’)

Simplicidade e estilo

Elsa Peretti :: Vogue, 1974 :: photo by Duane Michals

 

Falecida em março de 2021 aos oitenta anos, Elsa Peretti foi sem dúvida a maior responsável pela imagem contemporânea da Tiffany & Co.. Desde sua primeira coleção para a marca, em 1974, a designer italiana criou belíssimos objetos e jóias que se caracterizam por uma simplicidade orgânica e por uma indiscutível elegância formal – atributos que mantiveram suas peças entre as mais vendidas da companhia por quase cinquenta anos.

 

Italiana de Firenze, Elsa desde muito cedo revelou seu espírito criativo, curioso e livre. Filha de um magnata da indústria do petróleo, ainda jovem distanciou-se dos pais conservadores ao passar um tempo na Suíça, lecionando italiano e ski. De volta à Itália, formou-se em design de interiores em Roma e, após romper um tradicional noivado, mudou-se para Milão e começou a trabalhar com o arquiteto Dado Torrigiani. No ano seguinte, 1963, mudou-se para Barcelona e iniciou carreira como modelo, ao mesmo tempo em que mergulhou no fascinante universo dos artistas e arquitetos catalães – em especial no de Gaudí, uma declarada influência. Fascinada pelas formas esculturais, viajou ao Japão e a Hong-Kong para imergir na arte e no simbolismo asiático; por fim, em 1968, emigrou para os Estados Unidos e foi viver em Nova Iorque (segundo ela, o melhor lugar para desfrutar da juventude naqueles anos).

 

Foi desfilando para Halston, Sant’ Angelo e De La Renta que Elsa começou a se interessar  pelo design de jóias e acessórios. Com seu jeito rebelde, o olhar refinado de esteta e a proximidade com o mundo da moda, rapidamente entendeu que a linguagem que estava surgindo no design de roupas (caracterizada pela aliança entre conforto, praticidade e sensualidade) deveria permear também os complementos do vestir. Começou então a modelar em cera formas abstratas, simples e orgânicas, inspiradas na natureza; depois, fundindo-as em prata, fazia delas belíssimas peças, atraentes pelo design clean e inovador e pela primorosa execução. Do primeiro colar ao contrato com a Tiffany foram apenas cinco anos – e no lançamento da primeira coleção para a famosa joalheria, suas peças já estavam todas esgotadas.

 

Elsa Peretti costumava dizer que sua obra vinha de sua vida. E não há dúvidas de que cada uma de suas criações reflete um jeito de ser e de ver o mundo: sua paixão pela natureza, de cujas formas se apropriava para depois reinventá-las; sua incansável curiosidade, que a movia em pesquisas acerca dos mais diversos materiais e processos de produção; a devoção ao artesanato, que fez de cada uma de suas criações resultado de um árduo e investigativo trabalho manual; e a eterna rebeldia, que manteve acesa em sua alma, e até o fim de seus dias, a chama do questionamento.

 

Ainda hoje, não há modelo mais perfeita para as peças de Elsa Peretti do que ela mesma. Estilo (que, segundo a própria designer, não condiz com excessos), beleza, simplicidade, competência, elegância e personalidade – para ver, usar, admirar e aprender.

 

Para saber mais:

http://elsaperettidesign.blogspot.com.br

https://www.tiffany.com.br/world-of-tiffany/about-elsa-peretti/

Intolerância

scene from ‘Intolerance: Love’s Struggle Throughout the Ages’ :: D. W. Griffith ::  1916

 

‘Intolerance: Love’s Struggle Throughout the Ages’ (‘Intolerância’, em português) foi lançado em 1916 por D. W. Griffith. Com custo de produção sem precedentes à época, o filme, ainda mudo, tem cerca de quatro horas de duração e, por meio da dramatização de um poema de Walt Whitman, interliga quatro episódios da história da humanidade profundamente marcados pela intolerância: a guerra da Babilônia, na Mesopotâmia (cerca de seis séculos a.C.); a crucificação de Cristo em 33, na Judéia; a noite de São Bartolomeu, na França do século XVI; e o amor de dois jovens durante uma greve de trabalhadores, nos Estados Unidos da era moderna.

 

A intransigência com relação a opiniões, atitudes, crenças ou modos de ser que difiram dos nossos próprios, e a decorrente repressão, por meio da coação ou da força, das idéias que desaprovamos, têm sido a origem de enorme sofrimento e incontáveis barbáries ao longo da história. A incapacidade de aceitar e de conviver com a diferença talvez seja um dos maiores males que podemos causar a nós mesmos.

 

Alguns anos atrás, o julgamento sobre a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos foi tema de grande repercussão junto à opinião pública brasileira. Em meio a artigos, reportagens e manifestações, uma matéria feita por um jornal de grande circulação teve, sobre mim, grande impacto. Na matéria, duas mulheres eram entrevistadas: a primeira contava do sofrimento vivido por ter sido obrigada a gestar por nove meses um feto que sabia anencéfalo – mesmo tendo recorrido a várias instâncias judiciais, não obteve autorização para um aborto a tempo de fazê-lo de maneira segura. Dizia ter passado todo tempo de gravidez preparando-se para o enterro de um filho que nem chegou a conhecer, e que a experiência fora traumática a ponto de fazê-la desistir de uma nova gravidez.

 

A segunda entrevistada era uma mulher que também havia tido uma gravidez de anencéfalo, mas que, diferentemente da primeira, tinha optado por levar a gravidez até o final, convicta de que aquela era a conduta correta. Mãe já de um menino de três anos, tinha enterrado há pouco seu natimorto, e esperava apenas recuperar-se fisicamente para tentar uma nova gravidez.

 

O que chamava minha atenção nas entrevistas não era apenas a diferença de postura que duas pessoas (de condições sócio-econômicas e culturais muito próximas) tinham frente a uma mesma situação, mas o fato de que, enquanto a primeira defendia o direito à escolha, a segunda condenava veementemente quem viesse a fazer uma escolha diferente da dela. Ela defendia que não houvesse a possibilidade da escolha – afinal, sendo sua conduta ‘obviamente’ a correta, por que permitir que alguém tivesse outra, ‘errada’?

 

Na origem da negação da legitimidade de diferentes opiniões, atitudes, crenças ou modos de ser estão a vaidade e a arrogância. Julgar que o outro seja menos competente para fazer escolhas e traçar caminhos, acreditar que a nossa verdade deva ser também a verdade do outro mostra o quanto ainda devemos evoluir como seres e como cidadãos. Milhares de anos depois, após tanto conhecimento, tantas descobertas e tecnologias, ainda permitimos que a intolerância escravize a liberdade de escolha a que todos temos direito.

 

Para saber mais: http://www.youtube.com/watch?v=GF7ho_-1aWo