A chave

Kitagawa Utamaro :: Lovers in an upstairs room :: 1788 :: ©The Trustees of the British Museum

 

27 de fevereiro Como eu imaginava. Minha esposa mantém um diário. Até hoje tomei a precaução de não escrever isso neste caderno, mas na verdade minha atenção foi vagamente despertada alguns dias atrás.Não sou tão vil a ponto de ler o diário de minha própria esposa sem sua permissão. No entanto, embuído de maus sentimentos, tentei retirar com destreza a fita adesiva que o lacrava, de forma a não deixar marcas. Queria assim demonstrar a minha mulher que uma fita apenas seria inútil.

7 de março…Foi então que encontrei a chave caída no mesmo lugar. Pensei que devia haver alguma razão e, abrindo a gaveta, retirei o diário do meu esposo. Para minha surpresa, estava selado com uma fita adesiva da mesma forma como eu tinha feito. Meu marido quererá por certo dizer-me “Experimente abri-lo”?Estava curiosa para tentar puxar a fita sem deixar marcas. E foi por pura curiosidade que tentei fazê-lo.’

 

Jun’Ichiro Tanizaki é um dos mais respeitados nomes da literatura japonesa. Até sua morte (em 1965, aos setenta e nove anos), Tanizaki nunca tinha viajado ao Ocidente; e muito embora em sua juventude tivesse flertado com a modernidade ocidental, jamais foi influenciado pelos valores ou pela moral cristã.

 

Essas escolhas foram determinantes na estruturação de seu universo ficcional. Integrante da Tanbiha, escola literária que buscava a valorização da arte e da beleza (em contraposição ao naturalismo e ao objetivismo predominantes à época), Tanizaki fundamentou toda sua obra na cultura tradicional japonesa, explorando em particular questões ligadas ao erotismo, ao desejo e à intimidade, emocional e física, inerente aos relacionamentos afetivos.

 

‘A chave’, publicado originalmente em 1956, conta a história da vida sexual de um casal de meia-idade por meio de fragmentos dos diários que cada qual, marido e esposa, escreve em segredo. Em dado momento da narrativa, no entanto, ambos passam a suspeitar de que estão sendo lidos um pelo outro. Sem saber se cada confissão é real ou se está sendo forjada apenas para que o outro a leia, personagens e leitor entram num sutil e fascinante jogo que mescla erotismo, desejo, hipocrisia e ambigüidade.

 

São pouco mais de cewm páginas de uma literatura primorosa. Despido da noção de pecado – ocidental e cristã –, Tanizaki explora questões difíceis e delicadas como infidelidade, (in)satisfação, voyeurismo e autodestruição, sem juízo de valor e de forma absolutamente elegante. São diálogos e situações de aparente simplicidade, mas que provocam um despertar de sentidos e um profundo questionamento sobre os limites do desejo e do prazer.

 

‘A chave’ foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras. A mesma editora publicou no ainda ‘Voragem’, ‘Diário de um velho louco’ e ‘Amor insensato’, entre outras obras de Tanizaki.