Joia de artista

Frank Stella:: bague :: 2010 :: Collection Diane Venet • photo ©MAD_Paris

 

A ourivesaria esteve intimamente ligada a outras formas de expressão visual desde a pré-História. Diversas culturas, ao longo de séculos, representaram seus deuses, valores, hábitos e modos de vida por meio de pinturas, esculturas, vestimentas ou adornos – linguagens igualmente legítimas, reconhecidas e valorizadas. A partir do Renascimento, no entanto, essas atividades começaram a se diferenciar, com pintores e escultores passando a ser considerados artistas, e ourives, simplesmente artesãos.

 

Do século XVI em diante, as disciplinas tomaram rumos independentes, cada qual atrelada à evolução técnica e material inerente à sua própria execução, bem como à evolução do pensamento e do olhar de seus respectivos artistas ou artesãos. Já no final do século XIX, com a abertura das artes plásticas/visuais ao imaterial, ao conceitual e ao efêmero, a diferença entre as duas formas de expressão parecia intransponível: se por um lado o valor atribuído a uma obra de arte já não estava mais no campo objetivo ou mensurável, por outro a ourivesaria, mesmo produzindo peças únicas, permanecia com seu valor vinculado a seus materiais, frequentemente medido em quilates.

 

Mas eis que, no século XX, artistas reconhecidos por seus trabalhos em pintura, escultura e até em cinema, se interessaram pela joalheria. Seja por encomenda de algum museu ou galeria, para presentear um ente querido ou simplesmente pela oportunidade de se exercitar frente às restrições de um material ou de uma diferente escala, grandes nomes das artes moderna e contemporânea criaram peças para serem usadas no pescoço, no pulso, nas orelhas ou nos dedos.

A belíssima exposição ‘De Calder a Koons, bijoux d’artistes’, organizada pelo Musée des Arts Décoratifs de Paris (MAD_Paris) em 2018, trouxe a público duzentas e trinta peças da coleção particular de Diane Venet, colecionadora de joias de artistas há mais de trinta anos. E por meio de trabalhos de Max Ernst, Pablo Picasso, Frank Stella e Louise Bourgeois, entre outros – inclusive o brasileiro Tunga –, foi possível constatar como, mesmo obrigado a se adaptar às exigências óbvias de uma joia (como tamanho, peso, portabilidade etc.), cada artista é capaz de reafirmar seu vocabulário visual, imprimindo sua própria linguagem e sua identidade à peça criada.

Escultura para o corpo, feita com exclusividade e paixão, cada joia de artista carrega em si uma história muito particular – e ocupa, também por isso, um lugar único no universo da criação humana. Não está inserida no contexto da alta joalheria, no da joia de fantasia, tampouco no contexto do design, com sua produção em larga escala. Também não se associa ao trabalho dos joalheiros independentes, que consideram o objeto ‘joia’ um campo de expressão em si mesmo. A joia de artista é preciosa por sua raridade e sua carga simbólica. E usar uma dessas peças não é um ato inócuo – de certo modo, é uma forma de se apropriar um pouco do gênio do artista que a criou, ampliando assim a dimensão e conferindo outro significado ao (simples?) ato de se enfeitar.

Simplicidade e estilo

Elsa Peretti :: Vogue, 1974 :: photo by Duane Michals

 

Falecida em março de 2021 aos oitenta anos, Elsa Peretti foi sem dúvida a maior responsável pela imagem contemporânea da Tiffany & Co.. Desde sua primeira coleção para a marca, em 1974, a designer italiana criou belíssimos objetos e jóias que se caracterizam por uma simplicidade orgânica e por uma indiscutível elegância formal – atributos que mantiveram suas peças entre as mais vendidas da companhia por quase cinquenta anos.

 

Italiana de Firenze, Elsa desde muito cedo revelou seu espírito criativo, curioso e livre. Filha de um magnata da indústria do petróleo, ainda jovem distanciou-se dos pais conservadores ao passar um tempo na Suíça, lecionando italiano e ski. De volta à Itália, formou-se em design de interiores em Roma e, após romper um tradicional noivado, mudou-se para Milão e começou a trabalhar com o arquiteto Dado Torrigiani. No ano seguinte, 1963, mudou-se para Barcelona e iniciou carreira como modelo, ao mesmo tempo em que mergulhou no fascinante universo dos artistas e arquitetos catalães – em especial no de Gaudí, uma declarada influência. Fascinada pelas formas esculturais, viajou ao Japão e a Hong-Kong para imergir na arte e no simbolismo asiático; por fim, em 1968, emigrou para os Estados Unidos e foi viver em Nova Iorque (segundo ela, o melhor lugar para desfrutar da juventude naqueles anos).

 

Foi desfilando para Halston, Sant’ Angelo e De La Renta que Elsa começou a se interessar  pelo design de jóias e acessórios. Com seu jeito rebelde, o olhar refinado de esteta e a proximidade com o mundo da moda, rapidamente entendeu que a linguagem que estava surgindo no design de roupas (caracterizada pela aliança entre conforto, praticidade e sensualidade) deveria permear também os complementos do vestir. Começou então a modelar em cera formas abstratas, simples e orgânicas, inspiradas na natureza; depois, fundindo-as em prata, fazia delas belíssimas peças, atraentes pelo design clean e inovador e pela primorosa execução. Do primeiro colar ao contrato com a Tiffany foram apenas cinco anos – e no lançamento da primeira coleção para a famosa joalheria, suas peças já estavam todas esgotadas.

 

Elsa Peretti costumava dizer que sua obra vinha de sua vida. E não há dúvidas de que cada uma de suas criações reflete um jeito de ser e de ver o mundo: sua paixão pela natureza, de cujas formas se apropriava para depois reinventá-las; sua incansável curiosidade, que a movia em pesquisas acerca dos mais diversos materiais e processos de produção; a devoção ao artesanato, que fez de cada uma de suas criações resultado de um árduo e investigativo trabalho manual; e a eterna rebeldia, que manteve acesa em sua alma, e até o fim de seus dias, a chama do questionamento.

 

Ainda hoje, não há modelo mais perfeita para as peças de Elsa Peretti do que ela mesma. Estilo (que, segundo a própria designer, não condiz com excessos), beleza, simplicidade, competência, elegância e personalidade – para ver, usar, admirar e aprender.

 

Para saber mais:

http://elsaperettidesign.blogspot.com.br

https://www.tiffany.com.br/world-of-tiffany/about-elsa-peretti/

Silencioso entendimento

Issey Miyake by Irving Penn

 

O americano Irving Penn foi o um dos grandes responsáveis pela construção da imagem da mulher ocidental da segunda metade do século XX. Tendo ingressado na Vogue ao final da década de 40 pelas mãos de Alexander Liberman (com a função de ‘dar ideias para as capas’), acabou por se firmar como talentoso criador de imagens de moda, repletas do glamour e da sensualidade aos quais aspirava a sociedade americana do pós-guerra.

 

Se por um lado seu olhar quase aristocrático privilegiava poses de rígido formalismo – que remetiam às fotografias das décadas anteriores –, por outro lado o minimalismo e o despojamento percebidos nas imagens que criava sem dúvida mostravam o caráter inovador de seu trabalho. Mesmo quando a própria moda era construída por excessos, pelo olhar sensível de Penn filtrava-se o supérfluo, e o resultado eram sempre imagens de grande elegância e sofisticada simplicidade.

 

Nascido em Hiroshima 7 anos antes de a cidade ser destruída pela guerra, Issey Miyake é sem dúvida um dos mais geniais designers contemporâneos. Muito além do rótulo de ‘designer japonês’ que a imprensa internacional lhe costuma atribuir, Miyake jamais restringiu-se à identidade nacional, buscando sempre o equilíbrio entre tradição e inovação para criar projetos universais. ‘Eu crio não para expressar meu ego ou personalidade, mas para tentar trazer respostas àqueles que estão se perguntando sobre nossa era e como deveríamos viver nela.’

 

Partindo de um conceito simples e minimalista – ‘fazer roupa a partir de um pedaço de pano’ – o trabalho de Miyake resulta do antigo princípio de envolver uma figura tridimensional com material bidimensional utilizando-se de dobras. Aliando tecidos japoneses a cortes ocidentais, a novas tecnologias e ao conceito de funcionalidade, seu less is more constrói arquitetonicamente formas simples, elegantes e de rara beleza.

 

Ao longo de mais de 20 anos, entre 1975 e 1998, Irving Penn retratou o trabalho de Issey Miyake. A união entre esses dois artistas de origens culturais tão diferentes foi registrada em 1999 no belíssimo livro ‘Irving Penn regards the works of Issey Miyake’, de Midori Kitamura e Mark Holborn, e que depois gerou uma exposição na 21-21 Design Sight em Tóquio, Japão.

 

Esse encontro, que a princípio pareceria insólito, produziu centenas de imagens arrebatadoras, na medida em que o trabalho de um acabou se tornando espelho para o trabalho do outro. Sob o olhar de Penn, as poses das modelos fizeram das roupas de Miyake verdadeiras esculturas, em cenas que mais se parecem com fragmentos de uma dança; Miyake, por sua vez, ofereceu a Penn a chance de exercitar seu rigor formal com texturas, formas e máscaras vindas de outra cultura. E da união desses dois ‘mestres da redução’, como os definiu Holborn na introdução do livro, surgiram imagens secas, exatas e cortantes, que não oferecem espaço para nada além do essencial.

 

O resultado dessa bela parceria, a que Miyake poeticamente chamou de ‘silencioso entendimento’, comprova que os conceitos de beleza e elegância podem, sim, ser universais – e podem delicadamente tocar as mais diferentes almas por toda a eternidade.

À mesa

Henri Matisse :: La Desserte (Harmonie Rouge) :: 1908 :: ©hermitagemuseum.org

 

O ser humano talvez já nem se lembre de que o vestir teve, um dia, um significado apenas funcional em sua vida – proteger o corpo das intempéries. Passado esse primeiro e longínquo momento, no decorrer dos séculos o vestir foi incorporando outras significações – sociais, religiosas, ou mesmo ideológicas e políticas – até se tornar, como é hoje em dia, um ato carregado de códigos, rituais e cuidados.

 

Em relação ao comer, a história não difere muito – se o alimento teve, um dia, função apenas de garantir sobrevivência ao ser humano, com o passar do tempo ganhou desdobramentos e, permeado por questões econômicas, sociais, religiosas ou geográficas, o alimentar-se também adquiriu seus códigos, rituais e cuidados.

 

Ao olharmos essa evolução de modos e costumes, podemos ainda observar um outro aspecto, mais sutil e não menos relevante: a necessidade do ser humano de conferir maior prazer a atos que, por essenciais à sua própria existência, lhe são obrigatórios. À medida que o homem adquiriu consciência de sua própria existência e percepção de seus gostos e prazeres, não lhe foi mais possível suportar a infinita repetição, mecânica e cotidiana, de afazeres que não propiciassem conforto também à sua alma. Ampliar o sentido desses afazeres tornou-se necessidade imperiosa.

 

A quaisquer atos e realizações do ser humano, bem como às diversas maneiras de nos relacionarmos com eles e entre nós mesmos, podemos conferir beleza e, por decorrência, propiciarmo-nos prazer. Na introdução de seu livro ‘A beleza salvará o mundo’ (Ed. Difel, 2011), o filósofo Tzvetan Todorov explica que a beleza, seja a de uma paisagem, a de um encontro ou a de uma obra de arte, não remete a algo para além dessas coisas, mas nos faz apreciá-las enquanto tais – e, assim, nos permite experimentar a sensação de habitar plena e exclusivamente o presente.

 

Estar à mesa para desfrutar de uma refeição é uma das mais frequentes e ricas oportunidades que temos de experimentar tal sensação – e é espantoso ver quantas pessoas a desperdiçam diariamente, se relacionando com o alimentar-se como o faziam aqueles nossos ancestrais.

 

À mesa, a forma dos objetos dispostos, o paladar de um certo alimento, o encontro com o outro, ou o encontro consigo mesmo, tudo são possibilidades de desfrutarmos dessa plenitude – no dizer de Todorov, ‘sensação fulgaz e ao mesmo tempo infinitamente desejável, pois graças a ela nossa existência não decorre em vão; graças a esses momentos preciosos, ela se torna mais bela e mais rica de sentidos.’

 

Sejamos, pois, atentos e generosos conosco mesmos, lembrando diariamente que cada refeição representa uma chance de nos encontrarmos com o belo, de conferir prazer a nós mesmos e, assim, de ampliar o sentido de nossa existência.

Aforismos contemporâneos

Mira Schendel :: sem título (da série ‘Escritos’) :: 1965 :: ©moma.org

 

Pequenos esclarecimentos àqueles homens e mulheres adultos, bem nascidos, bem nutridos e tão abastados quanto mal criados, que a cada dia permeiam mais o cotidiano urbano. (A propósito de uma conversa que, particular que seria, em ambiente social me foi impingida aos ouvidos pelas centenas de decibéis com que emanava).

 

Ser não é sinônimo de ter.

 

Bolsa não é troféu.

 

Sapato não é pedestal.

 

Sala de cinema não é parque de diversões, e mesa de restaurante não é tribuna.

 

Intervenção estética não é assunto de utilidade pública.

 

Crachá de empresa não é medalha de honra ao mérito.

 

Os conceitos de ‘exibição’ e ‘elegância’ são excludentes quando aplicados a pessoas.

 

Pode-se converter identidade em imagem. O inverso, porém, não é verdadeiro.

 

Cada personal contratado é uma incompetência assumida.

 

Decote e comprimento de saia (ou vestido) crescem em proporção direta. Nível alcoólico e adequação, em inversa.

 

Presença de palavrão significa ausência de vocabulário.

 

É preciso ser bonita(o) para ser modelo, mas não é preciso ser modelo para ser bonita(o).

 

O uso de gentileza e cortesia não guarda relação de proporcionalidade com o nível socioeconômico do interlocutor.

 

Em tempo:

 

Elegância: sf. ‘distinção de porte, de maneiras, garbo’. XVI. Do lat. elegantia –æ: requinte, bom gosto, asseio, beleza de formas.

 

Elegante: adj. ‘belo de formas, cuidado no trajo, educado, polido’. XVI. Do lat. elegans –antis: que sabe escolher, bem escolhido, distinto, esmerado, conveniente, honrado.

Distinção: sf. ‘discriminação, separação, diferença’: discrimen, -inis, separatio, distinctio, discretio. XVI. Do lat. distinctio –onis.

Por que Chanel

Coco Chanel :: ©Chanel.com

 

Quase 100 anos após suas primeiras criações, Chanel ainda é reverenciada no mundo da moda – e também fora dele. Numa era em que produtos, pensamentos e relações são cada vez mais efêmeros, há de se pensar sobre o porquê dessa longa permanência.

 

Libertando a mulher dos trajes rígidos do final do século XIX (que privilegiavam a ostentação em detrimento do conforto), Chanel reproduziu, em escala industrial, sua própria imagem – uma imagem diferenciada, em absoluta sintonia com sua personalidade e com o momento histórico em que vivia. E nisso reside o segredo de sua permanência no imaginário coletivo por todo esse tempo: não somos fascinados por suas roupas, seus colares ou seu perfume – somos fascinados por sua identidade, tão forte quanto única, e que nos é revelada por meio dos objetos que usou e (re)produziu.

 

Dizem que a intensidade da presença de Chanel anulava a de suas rivais. Mas sem dúvida  tal fascínio não vinha dos objetos que escolhia para seu vestir… esses eram escolhas pessoais e conscientes, decorrentes da intensidade de seu pensar – e do entendimento de que, também pelo vestir, expressava a própria identidade.

 

Ironicamente, a produção industrial de um estilo pessoal e único tornou-se um paradoxo – a ponto de a própria Chanel, a certa altura, ter afirmado: ‘Já não sou o que era: devo ser o que me tornei.’ A ânsia por uma imagem socialmente reconhecida e valorizada, aliada à falta de conhecimento e de reflexão sobre si mesmo, faz hoje com que milhares de pessoas creditem a bolsas, sapatos e roupas a capacidade de lhes conferir personalidade e identidade, numa total inversão de papéis.

 

Como já escrevi no texto ‘Do vestir’ (jan, 2011), o belo está em sermos e sabermo-nos únicos. Belo, portanto, não é ter Chanel – belo é ser Chanel.

Sem sapatos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Uma das imagens mais associadas à ideia de liberdade é a imagem de alguém descalço. Além de parecer uma certa forma de irreverência e não-obediência a padrões estabelecidos, caminhar sem sapatos é, de fato, um ato capaz de proporcionar prazerosas sensações de bem-estar físico, conforto e relaxamento. De científicas a místicas, as explicações são inúmeras.

 

Nossos pés são estruturas complexas e repletas de terminações nervosas que se conectam, por meio de ramificações, a diversos órgãos do corpo, à coluna vertebral, à cabeça e aos membros superiores e inferiores. A prática de cuidar do corpo pelo ato de tocar e estimular essas terminações tem o nome de reflexologia e vem sendo utilizada nas culturas orientais há milhares de anos.

 

Caminhar sem sapatos, especialmente sobre superfícies irregulares (areia, pequenas pedras, grama), nos faz massagear diferentes pontos do pé e estimular diferentes partes do corpo, favorecendo o bom funcionamento do organismo e estimulando a capacidade de concentração, a coordenação motora, a mobilidade e o equilíbrio.

 

Outros dizem que, ao pisarmos sobre solo úmido com pés descalços, descarregamos na terra o excesso de eletricidade estática corporal acumulada, obtendo dessa forma a sensação de relaxamento.

 

Já os mais místicos dizem que ao caminhar descalços aumentamos o fluxo de nossa energia vital (ou nosso Chi, Qi, Prana, Baraka ou Orenda, entre outros sinônimos), pelo contato direto que estabelecemos com a Terra, uma de suas fontes naturais – e o prazer que sentimos viria justamente do restabelecimento dessa conexão com o universo natural a que pertencemos.

 

Discutir e investigar as fontes de nossos prazeres é, muitas vezes, apenas saber identificar essas fontes, para assim podermos ampliar o espaço que elas ocupam em nossas vidas. Nem sempre importam suas origens ou a decodificação de seus processos… importa estarmos atentos às suas manifestações, garantindo que continuem vivas e presentes em nosso cotidiano.