Tudo é um

Lygia Clark :: ‘O dentro é o fora’ :: 1963

 

Uma trajetória sem começo nem fim

Um lugar que é dentro e fora

Um tempo que é antes, depois e agora

Uma forma única, que se manifesta em mim

 

Desde sua criação em 1858, a enigmática fita de Möbius vem fascinando os mais diversos pensadores – de matemáticos a filósofos, de engenheiros a artistas. Criada pelo alemão August Ferdinand Möbius durante seus estudos sobre a teoria geométrica dos poliedros, é obtida a partir da colagem das duas extremidades de uma fita, depois de uma delas ter sido rotacionada em cento e oitenta graus. Como resultado, tem-se um objeto não orientável que possui apenas um lado e uma única borda e que, por materializar um percurso sem início ou término, é reconhecido hoje como signo universal do infinito.

Além de plasticamente bela, a fita de Möbius instiga e convoca à reflexão por romper com conceitos que pareciam definitivos: dentro e fora, em cima e embaixo, começo e fim. Essa ambiguidade espacial alude também a uma ambiguidade temporal – se não existem dois lados, também não existe um antes e um depois –, conduzindo por fim à ambiguidade existencial: o sujeito e o objeto, o eu e o outro. Dissolve-se o sentido de dualidade e oposição – tudo está infinitamente conectado. Tudo é um.

 

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O SobreTodasAsCoisas nasceu em 2011 em decorrência de um trabalho orientado de autoconhecimento. Naquele momento, na tentativa de entender meu percurso pessoal e profissional, busquei interrelacionar e dar forma concreta e consistente às incontáveis atividades e reflexões a que me dedicava e que me pareciam, até então, dispersas e desconexas. O que meus anos como modelo profissional (e minha paixão por moda) teriam a ver com minha constante dedicação à leitura e à escrita? Como relacionar meu trabalho em branding e design gráfico com meus estudos musicais? Para onde convergiriam  cursos e aprendizados sobre temas tão heterogêneos quanto antropologia,  técnicas de produção em vidro, arte contemporânea e poesia haiku?

Esse processo reflexivo e analítico trouxe à luz uma evidência: a estética sempre havia sido o fio condutor de minha trajetória. E falo de estética como valor, nascido de uma ética – uma maneira específica de ver e de se relacionar com o mundo. Um valor que, ao adquirir consistência e significado, se transforma em atitude perante a vida.

Na observação dos pequenos itens que compõem meu universo cotidiano, a cada mínima escolha, nunca me foi possível prescindir da estética – da Beleza – como valor a admirar e perseguir. Como uma fita de Möbius, o valor estético mostrou ser o caminho único que une todas as coisas de minha vida. Todas as coisas sempre foram, em verdade, uma só.

 

***

 

A busca pela Beleza é inata em todos nós. A Beleza permeia cotidianamente nossas visões, ações e relações, e  se estabelece como importante vínculo entre nós e o mundo que nos cerca. Pode estar presente em todas as coisas – sons, imagens, formas, palavras, lugares, atitudes –, despertando nossos sentidos e provocando emoções, paixões e prazeres.  É um valor a observar, investigar, discutir, decifrar, entender, aprender, construir, procurar, desfrutar.

Neste momento em que completa dez anos, o SobreTodasAsCoisas renova sua imagem e expande sua atuação: incorpora a fita de Möbius à sua identidade visual, reafirmando sua visão de mundo e seus valores estruturais; e, ao estender seu perfil a outras redes sociais, potencializa seu alcance e possibilita a diversificação de suas atividades para além da produção de conteúdo (novidades em breve!).

Sigo em minha trajetória única e infinita pela busca da Beleza, compartilhando meu olhar estético sobre as coisas da vida. E ao dividir descobertas, reflexões e aprendizados, espero poder apurar percepções e sentidos, contribuindo assim para a ampliação de nossos prazeres – os meus, os de todos, e os de cada um de nós.

Slow life

Kinfolk :: ©Citizen Atelier

 

Slow Movement começou a aparecer no final do século XX tendo como elemento central o estabelecimento de uma nova relação homem-tempo. Não surgiu como movimento social coletivo, estruturado, mas como resultado de ações pontuais de pessoas ou pequenos grupos de diversos segmentos da sociedade que buscavam substituir modelos culturais pautados por eficiência e pela síndrome do tempo por outros mais holísticos e integrativos. Em linhas gerais, veio como reação aos ‘impactos negativos da globalização econômica e cultural, especialmente no que concerne aos desequilíbrios gerados pela aceleração desmedida dos procedimentos e relações sociais, para propor uma nova relação do homem consigo, com seu meio, seus sistemas de produção, de concepção de valores e de ordenamento institucional, sempre a partir da transformação da relação da sociedade com o tempo.’ *  Ou seja, mais do que pregar desaceleração, o slow movement trazia o conceito de qualificação do tempo.

 

Sob essa perspectiva, o pensamento slow conectou-se com a ideia de qualidade de vida: descobrindo o que é mais importante para nós mesmos, podemos estruturar nosso jeito de viver – nosso lifestyle – de forma a garantir mais tempo para as coisas de que gostamos, aquelas que realmente queremos fazer, aquilo que achamos mais benéfico, belo, divertido, prazeroso. A descoberta da real importância das coisas e do prazer que cada uma pode nos dar (e que nada mais é do que a reflexão sobre si mesmo) acaba conferindo significado às escolhas e colocando-as em outra dimensão, já que passam a traduzir a verdade e a unicidade de uma determinada existência.

 

Foi justamente esse esprit du temps que a revista Kinfolk soube captar tão bem. Criada em 2011 por um grupo de amigos liderado por Nathan Williams em Portland, Oregon, em menos de cinco anos passou de publicação independente a uma das mais influentes referências estéticas contemporâneas. Poucos meses após o tímido lançamento do perfil @Kinfolk no Instagram, a primeira edição impressa foi lançada por uma editora de San Francisco; sete números depois, suas operações já eram transferidas para a Dinamarca onde, por meio de sua própria editora, Williams passou a lançar edições trimestrais com cerca de cento e setenta páginas primorosamente impressas e conteúdo dedicado às diversas instâncias do ‘lifestyle’: moda, decoração, arte, trabalho, cultura, entretenimento. Desde então, cada número da Kinfolk é estruturado em torno de um tema – o mais recente, da edição Spring 2021 #39, é ‘Juventude’; edições anteriores já trouxeram questões como ‘Mudança’, ‘Intimidade’ e ‘Educação’, falaram de cidades como ‘Tóquio’ e ‘Paris’, e abordaram assuntos como ‘Arquitetura’ e ‘Esportes’.

 

Em entrevista concedida em 2016 à revista dezeen, Nathan Williams contou que o foco inicial da Kinfolk era ‘comida’ – a ideia era dar à revista um ar de ‘mesa de amigos’, onde se compartilham alimentos e ideias. Com o passar do tempo, no entanto, pesquisas e entrevistas indicaram que os leitores se conectavam à revista não exatamente por esse ‘clima’, mas por associar seu conteúdo à qualidade de vida. A partir dessa informação, Williams e sua equipe criativa (atualmente distribuída por Copenhague, Tóquio, Londres e Nova Iorque) redesenharam todo o escopo editorial da revista, e esse enfoque, atrelado aos princípios do Slow Movement, definiu os rumos da publicação. Hoje, a Kinfolk é uma potência que se multiplica para além da versão impressa: posts diários no site, no Instagram e no Facebook; livros temáticos; campanhas, filmes e publicações tailor made para clientes globais; eventos internacionais e até uma galeria no coração de Copenhague – a Kinfolk Gallery, projetada pelo Norm Architects como espaço colaborativo e multifuncional que acolhe exposições de arte, lojas pop-up, palestras, desfiles de moda, oficinas etc..

 

Segundo Williams, ‘as revistas de interiores que assinamos e que chegam ao nosso escritório geralmente se concentram no design e no estilo, quase sempre deixando de fora as pessoas, suas vidas e as experiências que acontecem em suas casas. Nós, quando trabalhamos nos livros e em cada edição da revista, buscamos realmente captar um estilo de vida, traduzir a pessoa que mora em um determinado espaço, o que aquela faz, por que organizou a casa daquela maneira, como aquilo funciona, por que aquelas escolhas dão certo dentro de seu modo de viver… Nunca fotografaremos ou apresentaremos uma casa sem incluir um retrato do proprietário da casa’.

 

Por esse jeito tão próprio olhar para as pessoas e os assuntos de que trata, a Kinfolk acabou construindo uma linguagem muito particular. Os textos, mais extensos e profundos do que os da maioria das revistas de mesmo segmento, as fotografias de estética analógica (que colocam as imagens no campo do real, do concreto e imperfeito), a curadoria dos temas e seus conteúdos específicos, tudo na Kinfolk tem a intenção de transportar o leitor para um lugar calmo, lento e tranquilo, onde esse leitor tem a possibilidade de estabelecer uma conexão real com o que está vendo e lendo. A ideia não é exibir indivíduos, objetos, ambientes ou lugares (a exibição distancia) mas conferir significado a eles (o significado aproxima).

 

Decupada em inúmeras vertentes e talvez por isso equivocadamente banalizada (slow food, slow travelslow schoolslow fashion, slow cities…), a cultura slow na verdade trata de valores mais profundos. Carl Honoré, autor de ‘In praise of slow** e um dos primeiros a jogar luz sobre o movimento, diz que ‘não se trata de fazer tudo a um ritmo de caracol. Trata-se de tentar fazer tudo à velocidade certa. Saboreando as horas e minutos em vez de apenas contá-los. Fazendo tudo o que for possível, em vez de ser o mais rápido possível. É sobre ter qualidade em detrimento da quantidade em tudo, desde o trabalho até a comida e a criação dos filhos’.

 

Talvez este momento difícil, em que sociedades inteiras, em todo o planeta, estão sendo obrigadas a alterar seu ritmo de vida, nos dê a oportunidade de refletir sobre nossa relação com o tempo e de recuperar nossa autonomia em relação a ele. Entender o que de fato é relevante, dar sentido às nossas escolhas, reorganizar e moldar a vida de forma a garantir mais tempo para as pessoas com quem nos importamos, para as coisas de que gostamos. E aprender a usufruir desse tempo com integridade e presença, e não simplesmente preocupados com a próxima tarefa a cumprir.

 

Para saber mais:

kinfolk.com

ted.com/speakers/carl_honore

 

* Extrato do texto ‘Slow movement: reação ao descompasso entre ritmos sociais e biológicos’,  de Rafael Chequer Bauer, Alexandre Panosso Netto e Luiz Gonzaga Godoi Trigo, publicado na Revista de Estudos Culturais da Escola de Comunicação, Artes e Humanidades da USP (EACH-USP), edição nº 2 :: Dossiê Temporalidades, 2018

 

** ‘In praise of slow’  foi lançado no Brasil pela Editora Record em 2005, sob o título ‘Devagar’

Joia de artista

Frank Stella:: bague :: 2010 :: Collection Diane Venet • photo ©MAD_Paris

 

A ourivesaria esteve intimamente ligada a outras formas de expressão visual desde a pré-História. Diversas culturas, ao longo de séculos, representaram seus deuses, valores, hábitos e modos de vida por meio de pinturas, esculturas, vestimentas ou adornos – linguagens igualmente legítimas, reconhecidas e valorizadas. A partir do Renascimento, no entanto, essas atividades começaram a se diferenciar, com pintores e escultores passando a ser considerados artistas, e ourives, simplesmente artesãos.

 

Do século XVI em diante, as disciplinas tomaram rumos independentes, cada qual atrelada à evolução técnica e material inerente à sua própria execução, bem como à evolução do pensamento e do olhar de seus respectivos artistas ou artesãos. Já no final do século XIX, com a abertura das artes plásticas/visuais ao imaterial, ao conceitual e ao efêmero, a diferença entre as duas formas de expressão parecia intransponível: se por um lado o valor atribuído a uma obra de arte já não estava mais no campo objetivo ou mensurável, por outro a ourivesaria, mesmo produzindo peças únicas, permanecia com seu valor vinculado a seus materiais, frequentemente medido em quilates.

 

Mas eis que, no século XX, artistas reconhecidos por seus trabalhos em pintura, escultura e até em cinema, se interessaram pela joalheria. Seja por encomenda de algum museu ou galeria, para presentear um ente querido ou simplesmente pela oportunidade de se exercitar frente às restrições de um material ou de uma diferente escala, grandes nomes das artes moderna e contemporânea criaram peças para serem usadas no pescoço, no pulso, nas orelhas ou nos dedos.

A belíssima exposição ‘De Calder a Koons, bijoux d’artistes’, organizada pelo Musée des Arts Décoratifs de Paris (MAD_Paris) em 2018, trouxe a público duzentas e trinta peças da coleção particular de Diane Venet, colecionadora de joias de artistas há mais de trinta anos. E por meio de trabalhos de Max Ernst, Pablo Picasso, Frank Stella e Louise Bourgeois, entre outros – inclusive o brasileiro Tunga –, foi possível constatar como, mesmo obrigado a se adaptar às exigências óbvias de uma joia (como tamanho, peso, portabilidade etc.), cada artista é capaz de reafirmar seu vocabulário visual, imprimindo sua própria linguagem e sua identidade à peça criada.

Escultura para o corpo, feita com exclusividade e paixão, cada joia de artista carrega em si uma história muito particular – e ocupa, também por isso, um lugar único no universo da criação humana. Não está inserida no contexto da alta joalheria, no da joia de fantasia, tampouco no contexto do design, com sua produção em larga escala. Também não se associa ao trabalho dos joalheiros independentes, que consideram o objeto ‘joia’ um campo de expressão em si mesmo. A joia de artista é preciosa por sua raridade e sua carga simbólica. E usar uma dessas peças não é um ato inócuo – de certo modo, é uma forma de se apropriar um pouco do gênio do artista que a criou, ampliando assim a dimensão e conferindo outro significado ao (simples?) ato de se enfeitar.

Diálogo sensível

Tapio Wirkkala :: Lehti :: 1951

 

A ideia do belo como algo indiscutível, reconhecido como tal a qualquer tempo e por qualquer cultura, permeia desde sempre o imaginário humano. Da matemática das proporções na Grécia Antiga ao conceito contemporâneo de liberdade e pluralidade, a busca do homem por entender e construir a beleza absoluta esteve presente todo o tempo (sobre o tema, disserto um pouco mais em meu texto ‘A beleza da imperfeição‘).

 

Nesse percurso, a natureza se impôs como grande espelho. O entendimento universal de que a ela seria intrínseca a perfeição (e, portanto, a beleza) fez com que suas formas, cores e texturas fossem incessantemente estudadas e copiadas, não apenas no campo das artes, da arquitetura e do design, mas também no da matemática e no das ciências.

 

Um dos grandes estudiosos da natureza no século XX foi Tapio Wirkkala, o principal nome do design finlandês. Embora tenha viajado muito ao longo da vida, representando seu país em inúmeras exposições e premiações pelo mundo, era nas florestas do interior da Finlândia que o Wirkkala passava a maior parte de seu tempo. Em meio à natureza, sua personalidade contemplativa e reservada encontrava inspiração – as folhas das árvores, as espirais das conchas, os blocos de gelo e as formas de pássaros e peixes eram temas para seu trabalho.

 

Nascido em Häggo em 1915, desde muito cedo Wirkkala demonstrou excepcional habilidade com as mãos e grande talento para desenho. Aos 15 anos começou a estudar escultura e aos 30, já trabalhando como ‘artista comercial’, obteve o primeiro lugar em um concurso de design em vidro promovido pela iitala – premiação essa que inaugurou uma sólida parceria profissional com a empresa, que duraria até sua morte, em 1985.

 

A consagração mundial veio em 1951, quando, na Trienal Internacional de Milão, Wirkkala recebeu três Grand Prix: um por seu desenho para o Pavilhão Finlandês na própria mostra; outro, para o vaso de vidro ‘Kantarelli‘; e outro ainda para ‘Lehti‘ (‘folha’, em finlandês), um de seus primeiros trabalhos em madeira compensada. No mesmo ano, ‘Lehti‘ recebeu também o importante Lunning Prize, e foi considerado o objeto mais belo do mundo pela conceituada revista americana House Beautiful.

 

Versátil, hábil, curioso e extremamente produtivo, Wirkkala exercitou seu talento nos mais diversos materiais – além de vidro e madeira, trabalhou com metal, cerâmica, plástico e papel. Costumava dizer que ‘os materiais têm suas próprias leis, não escritas‘, e que o designer deveria entender essas leis para ‘estar em harmonia com o material que escolhe’.

 

E talvez seja a (perfeita) harmonia o grande diferencial da obra do artista. Não bastasse o profundo entendimento dos materiais, sua relação com as formas da natureza era tão íntima que lhe possibilitou traduzir o universo rural de seu país em objetos extremamente belos e elegantes, cujos desenhos esculturais são também uma lição de funcionalidade e estrutura. Na obra de Wirkkala, a forma não é apenas um objetivo estético – nasce naturalmente do diálogo sensível entre olhos, pensamento, mãos e material.

 

Hoje, suas criações estão presentes nos principais museus e coleções de todo o mundo, assim como muitos dos utensílios que desenhou continuam a ser produzidos em larga escala, permeando milhares de residências ao redor do planeta. Por meio das mãos de Tapio Wirkkala, talvez o ser humano tenha finalmente conseguido construir o belo absoluto, indiscutível e atemporal – mesmo que seja esse um espelho da natureza.

Imensidão azul

Deborah Paiva :: Menina com guarda-chuva :: 2014

 

Descobri a pintura de Deborah Paiva quando vi, pela primeira vez, a imagem que ilustra este texto. Eram meados de 2015 e a imagem me saltou aos olhos em uma rede social, por meio de uma amiga em comum. No mesmo instante vieram à minha mente, todos misturados, os azuis de Kieslowski, o cotidiano de Hopper, as cenas capturadas por  Sophie Calle para sua série ‘Voir la mer‘ e os bordados de Louise Bourgeois que compõem a ‘Ode a la Bièvre‘. Uma imagem que me tocou (e ainda toca) por entrelaçar, com elegância e delicadeza, silêncio e solidão, melancolia e contemplação, intimidade e imensidão.

 

A obra integrava a exposição ‘A liberdade é azul’, que Deborah tinha acabado de inaugurar no Museu de Arte Contemporânea de Campinas. Além dessa, outras pinturas de grandes dimensões e infinitos azuis colocavam o observador perto – mas não dentro – de situações cotidianas, cujos personagens (em sua maioria femininos) se mostravam paradoxalmente desprovidos de persona: nenhuma face, nenhuma narrativa explícita, nenhuma história revelada. Apenas momentos congelados de um cotidiano comum – e comum não apenas por sua frugalidade, mas também pela possibilidade de pertencer a qualquer pessoa, personagem ou observador.

 

Menos de dois anos depois, a artista inaugurou outra belíssima exposição na Galeria Rabieh, em São Paulo. Em ‘Um dia comum’, Deborah continuava observando o mundo com seu olhar sensível e atento, capaz de capturar em cenas corriqueiras e aparentemente banais o momento preciso em que a existência humana toca a eternidade – aquele instante fugaz em que tudo ao nosso redor parece entrar em estado de suspensão para que exista apenas um universo interior.

 

Ferreira Gullar (1930-2016) costumava dizer que a verdadeira arte traz em sua essência uma complexa uma alquimia, que é a capacidade de transformar ‘sofrimento em alegria, isto é, em beleza’ (1). Para ele, ‘a arte sempre teve (e tem) a ver com a beleza, porque, do contrário, não nos daria prazer’. E é essa alquimia de que fala Gullar que se percebe na obra de Deborah. Não bastasse o caráter universal das cenas que retrata, a artista transforma solidão e melancolia em lindos azuis, rosas delicados ou cinzas sutis, e (re)constrói, com beleza, poesia e personalidade, a vida de cada personagem – e a de cada um de nós.

 

Como disse Ferreira Gullar em sua frase mais famosa, ‘a arte existe porque a vida não basta’. Artistas como Deborah, ao traduzirem em beleza nosso cotidiano, ampliam os prazeres de nossa vida – e a dimensão de nossa existência.

 

(1) ‘Arte como alquimia‘, texto de Ferreira Gullar publicado no jornal Folha de S. Paulo em 19 de abril de 2015

 

Este texto não teria sido escrito sem a leitura prévia dos seguintes artigos:
Sobre inflexões na pintura de Deborah Paiva‘, Afonso Henrique Martins Luz, Galeria Virgílio, São Paulo, 2012; ‘Exercício de olhar, Aracy Amaral, Museu Lasar Segall, 2012; ‘Um dia comum‘, Douglas de Freitas, Galeria Rabieh, 2017.

Forma, função e fantasia

Stacking Vessels :: ©Utopia&Utility

 

‘Nosso propósito é enriquecer a vida por meio da beleza.’

 

A frase de Pia Wüstenberg traduz precisamente o que sentimos quando nos deparamos com alguma de suas criações: como num sopro, a vida se enche de beleza e encantamento.

 

Designer de produtos com formação no Royal College of Arts, em 2012 Pia fundou, juntamente com seu irmão Moritz, a Utopia&Utility, uma empresa que cria e produz objetos utilitários e decorativos de altíssimo valor estético – e que carregam também em si um enorme valor ético.

 

Por meio de seus projetos, Pia e Moritz buscam (re)valorizar o que eles chamam de habilidades tácitas – aquele conhecimento específico, profundo e apaixonado que os verdadeiros artesãos têm pelos materiais com o quais trabalham e pelo seu ofício. Com criações que invariavelmente unem materiais tradicionais e diferentes entre si (como vidro, metal, madeira ou cerâmica), eles trabalham com uma rede de artesãos espalhados por toda a Europa. No processo de produção, cada peça viaja por diversas pequenas oficinas, passando por inúmeras mãos talentosas e especializadas antes de chegar ao armazém da empresa, na Alemanha.

 

Não bastasse resgatar a tradição dos artífices e, por meio de seu modelo de negócio, promover o crescimento econômico de pequenas oficinas, a Utopia&Utility insere um pensamento inovador em seus objetos, capaz de transformar por completo a convencional percepção que teríamos acerca deles. Além dos impactantes contrapontos (peso versus leveza, opacidade versus transparência, rusticidade versus polidez), resultantes das inusitadas justaposições entre diferentes materiais, as formas elegantes, os encaixes precisos, as belíssimas combinações de cores e texturas e os acabamentos inesperados imprimem a cada objeto a força de uma obra de arte, manufaturada e única.

 

Por fim, muitas dessas peças nos convidam ainda a uma interação – um jogo lúdico por meio do qual, ao separar cada uma das partes que a compõem, nos surpreendemos com novos objetos, cada qual igualmente belo e íntegro em sua forma, projetado inclusive para abarcar outras funções.

 

Ao reunir, na estruturação de seu trabalho, imperativos éticos e estéticos de uma maneira tão orgânica e equilibrada, Pia e Moritz resgatam o conceito platônico de beleza: cada um de seus objetos, ao proporcionar tal prazer e arrebatamento, nos fala diretamente à alma e se coloca como um ‘esplendor da verdade’.

 

Para saber mais, acesse www.utopiaandutility.eu

Philocalie

Philocalie :: Éditions de l’Embellissement :: Paris, 2013

 

Em grego antigo, ‘philocalie‘ é um termo que significa ‘amor pela beleza’. Não por acaso, foi o nome escolhido por Valérie Solvit para o belíssimo livro que lançou com apoio da L’Óreal de Paris (‘Philocalie’, ©Éditions de l’Embellissement, Paris, 2013).

 

Diretora de uma agência de comunicação parisiense e particularmente dedicada à criação de livros que combinam arte, economia e cultura, Valérie pediu a oitenta personalidades, entre artistas, escritores, filósofos, fotógrafos, designers e arquitetos, que apresentassem sua visão sobre a Beleza – não a beleza cosmética, mas a Beleza em seu sentido universal, que transpassa tempos e culturas.

 

De Pierre Bergé aos irmãos Campana, de Charlotte Gainsbourg a Jack Lang, de Christian de Pontzamparc a Monique Lévi-Strauss, o ecletismo das personalidades convidadas a abordar o tema é tão surpreendente quanto as abordagens apresentadas. E o resultado é uma obra artístico-literária absolutamente rica, em forma e conteúdo. Peça quase artesanal produzida em edição limitada, o belíssimo livro de 30cm X 40cm traz um conjunto inédito de fotografias, ilustrações e textos impecavelmente selecionados, justapostos sob uma sofisticada direção de arte.

 

Navegando por suas páginas, belíssimas já por si, nos deparamos com as mais diversas expressões da Beleza: a beleza da maternidade, a beleza do silêncio, a beleza das palavras e do significado das coisas… a beleza da obra de Picasso, a da cidade de Veneza e a da noite numa floresta… a beleza que é mistério, a beleza que é qualquer, a beleza que simplesmente é…

 

Ao revelar olhares tão plurais sobre o mesmo tema, o livro demonstra que a busca pela Beleza, inata em todos nós, permeia cotidianamente nossas visões, ações e relações, colocando-se como um importante conector entre nós e o mundo que nos cerca. E, ao nos oferecer a oportunidade de refletir sobre um tema tão caro e comum a todos, Philocalie celebra não apenas o amor pela Beleza, mas, sobretudo, o amor pela vida.

A estetização do mundo

Zin Lim :: ID#30 :: ©SaatchiArt

 

‘Não estamos mais no tempo em que produção industrial e cultura remetiam a universos separados, radicalmente inconciliáveis; estamos no momento em que sistemas de produção, de distribuição e de consumo são impregnados, penetrados, remodelados por operações de natureza fundamentalmente estética. O estilo, a beleza, a mobilização dos gostos e das sensibilidades se impõem cada dia mais como imperativos estratégicos das marcas: é um modo de produção estético que define o capitalismo de hiperconsumo.’

 

Em seu livro ‘A estetização do mundo’ (escrito em parceria com o crítico de arte Jean Serroy), o filósofo Gilles Lipovetsky propõe um olhar inovador sobre a relação entre a economia liberal e a vida estética contemporânea. Em pouco mais de 400 páginas, Lipovetsky fala com brilhantismo sobre um dos grandes paradoxos do capitalismo de consumo: se por um lado produz efeitos inegavelmente desastrosos nos planos moral, social e econômico, por outro, ao explorar racionalmente e de maneira generalizada as propriedades estético-imaginárias (objetivando o lucro e a conquista de mercados), ele potencializa as dimensões criativas, intuitivas e emocionais, estilizando o universo cotidiano.

 

Segundo Lipovetsky, esse capitalismo contemporâneo busca construir uma imagem artista para seus autores: ‘os jardineiros se tornaram paisagistas; os cabeleireiros, hair designers; os cozinheiros, criadores culinários…’. Diferentemente da época fordista, em que o foco era a produção material, nesse novo modelo o foco é o imaterial – o intangível, o imaginário, o sonho. Assim, apelando para a sensibilidade dos consumidores, arte e estética estariam postas a serviço do mercado, criando-se o que o autor chama de ‘capitalismo artista’.

 

De maneira didática e acessível, Lipovetsky traça um breve fio histórico (da Antiguidade clássica até os dias de hoje) para então expor sua ótima análise sobre as relações contemporâneas entre indústria, consumo, marca, arte e design. Elegante e provocativo, aponta o hiperindividualismo, potencializado pelo compartilhamento em rede de vidas estetizadas, como elo fundamental nessa cadeia de interações complementares e interdependentes.

 

Considerado um dos mais importantes pensadores de nosso tempo, com olhar especialmente voltado às questões de sociologia e filosofia do consumo, da moda e do luxo, Lipovetsky amplia nossa compreensão acerca deste mundo em que ‘tudo segue a lógica da moda: é efêmero e sedutor’, e nos põe em cheque em relação a um de nossos mais primitivos instintos: a eterna busca pela beleza e pelo prazer que ela proporciona à nossa alma.

 

Do mesmo autor, são também excelentes leituras ‘A era do vazio’ (Editora Manole), ‘O império do efêmero’ (Companhia de Bolso) e ‘O capitalismo estético na era da globalização’ (Edições 70 – Brasil).

A beleza da imperfeição

©Richard Avedon :: portrait of Marella Agnelli :: 1959

 

Ao longo da História ocidental, o conceito de Beleza sempre esteve associado à ideia da perfeição. Na Grécia Antiga, a definição do belo estava estruturalmente ligada às noções de ordem, simetria e clareza, e à presença de proporções definidas como harmônicas. Já na Idade Média, o Cristianismo deu uma dimensão simbólica à Beleza, ao interpretá-la como um atributo divino, tal qual a bondade e a verdade – nesse sentido, também ligada à ideia de perfeição. E embora com o Renascimento tenham surgido concepções relativistas, incorporando ao conceito de Beleza aspectos culturais e sócio-econômicos, foi apenas a partir do século XVII que a subjetividade passou a permear a noção do belo (fazendo emergir então a ideia de ‘gosto’).

 

Na segunda metade do século XVIII, as convulsões sociais na Europa criaram um ambiente propício para o renascimento dos ideais de Beleza da Grécia e Roma Antigas, amplamente utilizados nas imagens de divulgação da Revolução Francesa e do Império Napoleônico. E foi justamente nesse momento que surgiu Kant, o primeiro pensador a deslocar o centro de existência da Beleza do objeto para o sujeito. A divisão que Kant estabelece entre ‘juízo de conhecimento’ (o que emite conceitos baseados nas propriedades do objeto) e ‘juízo estético’ (decorrente da reação pessoal do contemplador diante do objeto) fincou as bases da estética contemporânea. O belo deixa de estar apenas naquilo que se vê, e passa a estar também nos olhos que vêem.

 

O pensamento kantiano abriu caminho para as grandes rupturas estéticas ocorridas entre o final do século XIX e início do século XX. Ao conceito do belo foram incorporadas as ideias de singularidade, individualidade, prazer, emoção, potência, coragem, vitalidade etc.. Pudemos entender que existe Beleza na perfeição, mas que não é preciso haver perfeição para que exista a Beleza. Aguçamos nossa capacidade de percepção e ampliamos a possibilidade de conferir prazer à nossa alma. Passamos a admirar a voz cristalina de Nat King Cole tanto quanto a voz insegura de Chet Baker; as proporções clássicas do rosto de Grace Kelly, e os traços exóticos e voluptuosos de Sophia Loren; a Beleza densa do trabalho de Raushenberg e a quase superficial da pop art de Warhol.

 

Passadas poucas décadas, no entanot, o caminho que parecia de liberdade curiosamente acabou nos conduzindo a um aprisionamento. Estimulada por uma indústria que, interdisciplinarmente, se estrutura na massificação e na hipervalorização da juventude para gerar lucros, a busca por um ideal de Beleza – a busca pela Beleza perfeita – nunca foi tão exacerbada quanto hoje. Num processo insano e sem fim, homens e mulheres se lançam numa jornada rumo àquilo que nada é senão uma construção imaginária coletiva. E ao abandonar sua própria Beleza para (tentar) chegar a outra, vivem eternamente insatisfeitos, vagando no meio desse caminho.

 

É preciso resgatar a riqueza da pluralidade e a Beleza que reside na imperfeição. Lembrar da estranheza de Dovima. Dos olhos de Serge Gainsbourg, dos dentes de Lauren Hutton. Da boca de Mick Jagger, das sobrancelhas de Frida Kahlo e das formas de Grace Jones. E lembrar sobretudo das palavras de Leonard Cohen, que em sua canção ‘Anthem’, de 1992, diz:

 

‘… Forget your perfect offering

There is a crack in everythin

That’s how the light gets in’

(Em livre tradução:

‘… Esqueça a perfeição

Em tudo há uma fresta

E é por ela que entra a luz’)

Cantando os espaços, construindo a canção

Zaha Hadid :: JS Bach Chamber Music Hall, Manchester, UK :: photo ©Luke Hayes

 

Vem de longe a busca de filósofos, historiadores e teóricos pelo estabelecimento de uma conexão entre música e arquitetura. Dois mil e quinhentos anos atrás, Pitágoras já havia conceituado a harmonia matemática como peça fundamental para explicar toda a criação, a existência e a operação do universo. Segundo o filósofo grego, a ‘relação agradável de proporções’ faria com que todas as coisas vibrassem numa grande harmonia universal, assim como as notas numa música.

 

Algumas dessas relações de proporções estabelecidas por Pitágoras acabaram definindo relações espaciais canônicas da arquitetura clássica, assim como definiram também os ‘modos’ musicais predominantes até a Idade Moderna. Na arquitetura e na música ocidentais, a beleza de uma obra, durante séculos, foi pautada pelo conceito pitagórico de harmonia entre seus elementos.

 

Esse entendimento começou a ser questionado, na música, a partir surgimento do sistema tonal, que possibilitou a exploração de outras relações de proporção e intervalos, antes considerados desarmônicos e, portanto, incorretos. Da tonalidade, a música caminhou para a atonalidade, até chegar à sua dissolução e à dodecafonia, com criadores como Schoenberg e John Cage.

 

Paralelamente, as mudanças sociais e políticas decorrentes da ascensão da burguesia na Europa acenderam o desejo de libertação das regras formais do classicismo e a busca por uma expressão individual e pela inovação, permitindo o surgimento de uma nova arquitetura – que, rompendo o compromisso com a simetria e as relações de proporções antes definidas como belas (corretas), culminou, séculos depois, em experências como as de Frank Gehry ou Daniel Liebeskind. Hoje, a noção do belo – seja na música, seja na arquitetura – está pautada por novos e diversos conceitos.

 

Cada qual à sua maneira, música e arquitetura são composições estéticas que resultam da associação entre diferentes elementos, organizada e regida segundo determinados princípios. Altura, extensão, proporção, alternância, repetição, arranjo, ritmo, intensidade, densidade, textura, contraste, harmonia, equilíbrio, tensão… são todos constituidores de uma obra musical, e também constituidores de uma obra arquitetônica. A qualidade da obra, bem como sua beleza, decorre do conhecimento, da competência e da sensibilidade de seu autor no entrelaçar desses elementos.

 

Se, ao longo da História, arquitetura e música revelam ter percorrido trajetórias paralelas (e não apenas no que diz respeito à evolução do conhecimento, mas também em suas respectivas relações com a sociedade), atualmente parecem estar seguindo caminhos divergentes: se por um lado a qualidade em uma obra de arquitetura vem sendo socialmente cada vez mais percebida e exigida, por outro parece não importar que nossa produção musical esteja cada vez mais desprovida de atributos. Hoje, perseguimos e exaltamos a qualidade e a beleza de casas, edifícios, teatros e arenas, mas está fora da pauta discutir a qualidade e a beleza da música executada nesses espaços.

 

Em algum momento, nossa sociedade deixou de entender a música como composição estética, relegando-a simplesmente ao território do entretenimento. Uma pena. Ao prescindir da qualidade e da beleza em nossa produção musical, estamos dia a dia perdendo a oportunidade de ampliar nosso conhecimento, nossos prazeres e o sentido de nossa existência.