Simplicidade e estilo

Elsa Peretti :: Vogue, 1974 :: photo by Duane Michals

 

Falecida em março de 2021 aos oitenta anos, Elsa Peretti foi sem dúvida a maior responsável pela imagem contemporânea da Tiffany & Co.. Desde sua primeira coleção para a marca, em 1974, a designer italiana criou belíssimos objetos e jóias que se caracterizam por uma simplicidade orgânica e por uma indiscutível elegância formal – atributos que mantiveram suas peças entre as mais vendidas da companhia por quase cinquenta anos.

 

Italiana de Firenze, Elsa desde muito cedo revelou seu espírito criativo, curioso e livre. Filha de um magnata da indústria do petróleo, ainda jovem distanciou-se dos pais conservadores ao passar um tempo na Suíça, lecionando italiano e ski. De volta à Itália, formou-se em design de interiores em Roma e, após romper um tradicional noivado, mudou-se para Milão e começou a trabalhar com o arquiteto Dado Torrigiani. No ano seguinte, 1963, mudou-se para Barcelona e iniciou carreira como modelo, ao mesmo tempo em que mergulhou no fascinante universo dos artistas e arquitetos catalães – em especial no de Gaudí, uma declarada influência. Fascinada pelas formas esculturais, viajou ao Japão e a Hong-Kong para imergir na arte e no simbolismo asiático; por fim, em 1968, emigrou para os Estados Unidos e foi viver em Nova Iorque (segundo ela, o melhor lugar para desfrutar da juventude naqueles anos).

 

Foi desfilando para Halston, Sant’ Angelo e De La Renta que Elsa começou a se interessar  pelo design de jóias e acessórios. Com seu jeito rebelde, o olhar refinado de esteta e a proximidade com o mundo da moda, rapidamente entendeu que a linguagem que estava surgindo no design de roupas (caracterizada pela aliança entre conforto, praticidade e sensualidade) deveria permear também os complementos do vestir. Começou então a modelar em cera formas abstratas, simples e orgânicas, inspiradas na natureza; depois, fundindo-as em prata, fazia delas belíssimas peças, atraentes pelo design clean e inovador e pela primorosa execução. Do primeiro colar ao contrato com a Tiffany foram apenas cinco anos – e no lançamento da primeira coleção para a famosa joalheria, suas peças já estavam todas esgotadas.

 

Elsa Peretti costumava dizer que sua obra vinha de sua vida. E não há dúvidas de que cada uma de suas criações reflete um jeito de ser e de ver o mundo: sua paixão pela natureza, de cujas formas se apropriava para depois reinventá-las; sua incansável curiosidade, que a movia em pesquisas acerca dos mais diversos materiais e processos de produção; a devoção ao artesanato, que fez de cada uma de suas criações resultado de um árduo e investigativo trabalho manual; e a eterna rebeldia, que manteve acesa em sua alma, e até o fim de seus dias, a chama do questionamento.

 

Ainda hoje, não há modelo mais perfeita para as peças de Elsa Peretti do que ela mesma. Estilo (que, segundo a própria designer, não condiz com excessos), beleza, simplicidade, competência, elegância e personalidade – para ver, usar, admirar e aprender.

 

Para saber mais:

http://elsaperettidesign.blogspot.com.br

https://www.tiffany.com.br/world-of-tiffany/about-elsa-peretti/

Villa-Lobos Superstar

 

Heitor Villa-Lobos, como todo grande criador, começou sua obra sob influência dos grandes mestres do estilo vigente à sua época (como Wagner e Puccini), para depois promover o rompimento com a obra acadêmica e criar uma linguagem inovadora, própria e única. Incorporando elementos do folclore, de cantos populares e da cultura indígena à música instrumental (solo, de câmara ou sinfônica), abraçou as questões mais relevantes do modernismo, dando uma nova dimensão à chamada música nacionalista e colocando a música brasileira no cenário mundial. E em toda sua história, o compositor nunca percorreu um caminho linear – explorou várias possibilidades estilísticas e brincou com as mais inusitadas combinações de instrumentos, sempre de forma livre e em constante evolução.

 

Composto hoje por alguns dos maiores músicos brasileiros da atualidade (Rodolfo Stroeter, Paulo Bellinati, Nelson Ayres, Ricardo Mosca e Teco Cardoso), o grupo Pau Brasil sempre teve como objetivo pesquisar novas formas para a música instrumental brasileira. Desde sua criação em 1979, a releitura de gêneros e estilos e o cruzamento entre o tradicional e o contemporâneo para a criação de um repertório ‘visceralmente brasileiro’ são parte intrínseca de sua identidade – e, junto com a excelência técnica, a elegância na interpretação e o bom gosto na definição do repertório, fizeram do grupo uma referência na música instrumental brasileira, com reconhecimento internacional. Além de composições autorais, o Pau Brasil tem (re)leituras de Baden Powel, Jobim, Moacir Santos e Hermeto, entre outros, e de suas parcerias musicais fazem parte nomes como Gilberto Gil, Monica Salmaso, Naná Vasconcelos e Toots Thielemans, passando por Osesp e Jazz Sinfônica.

 

No início de 2012, o Pau Brasil lançou o excepcional ‘Villa-Lobos Superstar’ (em parceria com o quarteto de cordas Ensemble SP e com participação da voz de Renato Braz). Com magníficos arranjos de Ayres e Bellinati, o álbum traz uma releitura sensível de obras como as Bachianas Brasileiras nº 4 (Prelúdio e Cantiga) e nº5 (completas), além de várias outras canções, todas em belíssimas e emocionantes interpretações. E a surpreendente inserção de um quarteto de cordas numa formação tradicionalmente jazzística, acrescida dos pontos de luz criados pela voz de Renato Braz, conferem ao ao álbum uma linguagem como a de Villa-Lobos: inovadora e única.

 

Ao reler Villa-Lobos com tanta competência, o Pau Brasil não apenas demonstra conhecimento acerca da obra do compositor, mas sobretudo a leva adiante, na medida em que, como o próprio Villa-Lobos faria, afirma seu apreço à história, revela seu talento para a inovação e reitera sua vontade de evoluir sempre.

 

Para saber mais: http://www.grupopaubrasil.com.br

 

Inovando nossa história

Fábio Galeazzo :: Mosaico :: Conspiração BR :: 2012

 

Segundo alguns historiadores, o primeiro registro da azulejaria no Brasil data de cerca de 1620, quando peças de cerâmica vidrada vieram de Portugal para ornamentar o Convento de Santo Amaro de Água-Fria, em Olinda. A partir de então – seja pela força com que representava a cultura da metrópole, seja por sua beleza plástica ou por suas características de conforto térmico (bastante adequadas ao nosso clima) –, o azulejo foi sendo cada vez mais incorporado às construções brasileiras.

 

Presentes inicialmente em painéis nas edificações de uso religioso ou governamental, em poucas décadas as belíssimas peças passaram a ser importadas não apenas de Portugal, mas também da França e da Holanda (países que tinham em sua produção de azulejos importante forma de expressão artística) e começaram a revestir também fachadas de construções urbanas.

 

Ainda no final do século XIX, o azulejo começou a ser produzido no Brasil – mas foi a partir do início do século XX nossa produção tornou-se regular. E muito embora nesse período alguns arquitetos tenham abandonado o uso desse material (numa rejeição a elementos representativos do período colonial), o movimento moderno brasileiro, preocupado em ‘casar tradição com modernidade e fazer dos materiais nacionais e tradicionais ponte entre o colonial e a vanguarda’ *, (re)incorporou o azulejo à sua arquitetura. A partir desse momento, a azulejaria nacional passou a ser uma forte expressão artística de nossa própria cultura, por meio da qual se representavam, junto a formas geométricas, elementos de nossa paisagem, nossa fauna e nossa flora.

 

Sob essa perspectiva histórica, os azulejos desenhados pelo designer Fábio Galeazzo e produzidos pela Azulejaria Brasil (Cerâmica Antigua) ganham dimensão ainda maior. Numa coleção batizada de Conspiração BR (20 estampas subdivididas em 4 temas), Galeazzo resgata e relê, com maestria, um dos mais importantes elementos de nossa arquitetura.

 

Da escolha do formato (15cm X 15 cm, o mais tradicional em nossa produção), passando pela definição dos temas (que vão das imagens presentes na Festa do Divino às estampas tradicionalmente encontradas na chita brasileira) até a montagem da paleta de cores, Galeazzo revela profundo conhecimento, extrema sensibilidade e uma enorme capacidade de inovação, e obtém resultados plásticos de beleza incontestável.

 

Aliando domínio técnico e teórico, sensibilidade e talento, Galeazzo demonstra que o design de interiores pode, sim, a um só tempo, ser inovador e contar história, ser lúdico e propagar cultura – sem deixar de proporcionar beleza aos ambientes, prazer aos olhos e conforto à alma.

 

Para saber mais:

https://fabiogaleazzo.com.br/portfolio/conspiracao-br/

http://www.antigua.com.br/

 

* Marcele Cristiane da Silveira, “O Azulejo na Modernidade Arquitetônica”, dissertação de mestrado, FAUUSP, 2008.

Um não-guia de estilo

La Parisienne :: Inès de la Fressange et Sophie Gachet :: Ed. Flammarion :: 2010

 

Desde seu lançamento, em 2010, muito já se falou sobre o livro de Inès de la Fressange e Sophie Gachet. De fato, ele é ótimo: o texto tem humor, graça e vivacidade; as ilustrações (feitas pela própria Inès) trazem certa delicadeza e uma quase autoironia; as fotos (de autoria das duas autoras) revelam um olhar particular e despretensioso sobre objetos e lugares; e as informações… ora, quem não gostaria de ter uma agenda com endereços dos melhores e menos óbvios produtos e serviços de Paris?

 

A um olhar mais atento, porém, o livro mostra ser muito mais do que um ‘guia de estilo’ – designação que não existe na publicação original (simplesmente ‘La Parisienne’), mas foi agregada ao título em sua tradução para o inglês (‘Parisian chic: a style guide by Inès de la Fressange’), e adotada também na versão em português (‘A Parisiense: o guia de estilo de Inès de la Fressange’).

 

A palavra ‘guia’ traz implícita a ideia de uma obra com regras e instruções que, seguidas, são capazes de garantir o sucesso de determinado empreendimento ou atitude. Mas a noção de que existe uma fórmula, uma receita para ser ‘chic’ (!) ou para ter ‘estilo’ é diametralmente oposta ao pensamento que percorre o livro – e isso fica claro logo em seu início: ‘É preciso saber tomar liberdades com as afirmações categóricas… Algumas regras foram feitas para serem quebradas… Você gosta de vestido laranja com sapatos amarelos? Vá em frente, vai chegar um dia que vão querer copiá-la!’

 

O grande mérito do livro está, na verdade, em estimular a reflexão e o entendimento sobre si mesmo, e em valorizar a expressão individual – seja no modo de vestir, de morar ou de consumir. Ler algo como: ‘(A parisiense) não faz o gênero de torrar todo seu salário num must-have. Primeiro porque não tem dinheiro, e depois porque considera que tem tanto talento quanto um estilista: por que pagar caro por uma produção que ela mesma poderia ter imaginado?’ é muito mais instrutivo do que saber qual a visão particular de Inès a respeito de como combinar sandálias e vestidos.

 

Ou ainda: ‘Por que pensar que é absolutamente necessário pagar milhões para ter arte em casa? Enquadre os desenhos preferidos dos seus filhos… e para qualquer pedaço de papel a que você queira dar importância, os quadros de acrílico magnéticos transformarão até um recado rabiscado num guardanapo…’  É relevante saber de onde são os quadros de acrílico magnéticos? Não, relevante é a noção de que cada um decide aquilo que quer emoldurar – aquilo que, para si, tem valor.

 

Ter estilo é conhecer a si mesmo e ter clareza de suas preferências; saber o que lhe proporciona prazer, o que lhe agrada, o que coexiste em harmonia com seu jeito de se mover, de pensar, de agir, de viver. E fazer de cada escolha, portanto, uma expressão da própria individualidade. Ter estilo é ser consciente de ser único – e desfrutar dessa condição com alegria e prazer.

 

Para saber mais:

‘A parisiense, o guia de estilo de Inès de la Fressange com Sophie Gachet’,
 Ed. Intrínseca, 2011

Ouvindo a própria voz

Bobby McFerrin :: photo Carol Friedman

 

‘É isso que você quer fazer? É desse jeito que você imagina explorar a música?’

 

Bobby McFerrin conta que, ainda jovem, impactado ao ouvir o trabalho que Keith Jarrett fazia ao piano, eram essas as perguntas que vinham à sua mente. A vulnerabilidade de uma pessoa sozinha num palco sempre o tinha fascinado, e ele se perguntava se seria capaz de, como Jarrett, captar a essência de uma música, de suas harmonias, e de captar a sua própria essência – para então, ao cantar, fazê-lo como Jarrett fazia ao piano: com sua verdade e à sua maneira, pessoal e única.

 

Foram quase três anos reclusos, sozinho, cantando, gravando, ouvindo e (re)conhecendo sua própria voz. Durante os dois primeiros, Bobby sequer ouvia outros cantores – temia ser influenciado por algum outro jeito de cantar, e acreditava que isso o distanciaria dele mesmo. Precisava descobrir-se, saber e ter propriedade sobre o som que emanava, conhecer e explorar as possibilidades da própria voz.

 

Também a capacidade de improvisação era para ele um desafio a vencer. Queria descobrir o prazer de se manter em movimento sem saber exatamente aonde chegar… deixar-se ir como uma criança, sem se pautar pelo controle dos conhecimentos teóricos. E então passou outros tantos anos exercitando seu próprio jeito de improvisar – nas palavras dele, ‘exercitando a superação do medo de improvisar, do medo de assumir riscos, de parecer tolo e de não ter ideias suficientes’.

 

Hoje, mais de trinta anos depois, Bobby McFerrin é (re)conhecido em todo o mundo como um dos maiores talentos da música contemporânea. Além da genialidade musical, em cada nota que sua voz emite, e em cada gesto seu, transparecem também uma naturalidade e uma elegância raríssimas, decorrentes da perfeita harmonia existente entre o que faz, o que aparenta e quem verdadeiramente é.

 

A verdade de Bobby McFerrin pode ser também uma alegoria para cada um de nós. Afinal, ser e saber-se único, ouvir a própria voz, expressar sua essência, não temer o desconhecido e experimentar a alegria de se manter em movimento… nada é mais belo, elegante e prazeroso. E é isso o que realmente importa.

 

Para saber mais: http://bobbymcferrin.com/

 

Para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=ktotbE4rN2g (entrevista)

Silencioso entendimento

Issey Miyake by Irving Penn

 

O americano Irving Penn foi o um dos grandes responsáveis pela construção da imagem da mulher ocidental da segunda metade do século XX. Tendo ingressado na Vogue ao final da década de 40 pelas mãos de Alexander Liberman (com a função de ‘dar ideias para as capas’), acabou por se firmar como talentoso criador de imagens de moda, repletas do glamour e da sensualidade aos quais aspirava a sociedade americana do pós-guerra.

 

Se por um lado seu olhar quase aristocrático privilegiava poses de rígido formalismo – que remetiam às fotografias das décadas anteriores –, por outro lado o minimalismo e o despojamento percebidos nas imagens que criava sem dúvida mostravam o caráter inovador de seu trabalho. Mesmo quando a própria moda era construída por excessos, pelo olhar sensível de Penn filtrava-se o supérfluo, e o resultado eram sempre imagens de grande elegância e sofisticada simplicidade.

 

Nascido em Hiroshima 7 anos antes de a cidade ser destruída pela guerra, Issey Miyake é sem dúvida um dos mais geniais designers contemporâneos. Muito além do rótulo de ‘designer japonês’ que a imprensa internacional lhe costuma atribuir, Miyake jamais restringiu-se à identidade nacional, buscando sempre o equilíbrio entre tradição e inovação para criar projetos universais. ‘Eu crio não para expressar meu ego ou personalidade, mas para tentar trazer respostas àqueles que estão se perguntando sobre nossa era e como deveríamos viver nela.’

 

Partindo de um conceito simples e minimalista – ‘fazer roupa a partir de um pedaço de pano’ – o trabalho de Miyake resulta do antigo princípio de envolver uma figura tridimensional com material bidimensional utilizando-se de dobras. Aliando tecidos japoneses a cortes ocidentais, a novas tecnologias e ao conceito de funcionalidade, seu less is more constrói arquitetonicamente formas simples, elegantes e de rara beleza.

 

Ao longo de mais de 20 anos, entre 1975 e 1998, Irving Penn retratou o trabalho de Issey Miyake. A união entre esses dois artistas de origens culturais tão diferentes foi registrada em 1999 no belíssimo livro ‘Irving Penn regards the works of Issey Miyake’, de Midori Kitamura e Mark Holborn, e que depois gerou uma exposição na 21-21 Design Sight em Tóquio, Japão.

 

Esse encontro, que a princípio pareceria insólito, produziu centenas de imagens arrebatadoras, na medida em que o trabalho de um acabou se tornando espelho para o trabalho do outro. Sob o olhar de Penn, as poses das modelos fizeram das roupas de Miyake verdadeiras esculturas, em cenas que mais se parecem com fragmentos de uma dança; Miyake, por sua vez, ofereceu a Penn a chance de exercitar seu rigor formal com texturas, formas e máscaras vindas de outra cultura. E da união desses dois ‘mestres da redução’, como os definiu Holborn na introdução do livro, surgiram imagens secas, exatas e cortantes, que não oferecem espaço para nada além do essencial.

 

O resultado dessa bela parceria, a que Miyake poeticamente chamou de ‘silencioso entendimento’, comprova que os conceitos de beleza e elegância podem, sim, ser universais – e podem delicadamente tocar as mais diferentes almas por toda a eternidade.

À mesa

Henri Matisse :: La Desserte (Harmonie Rouge) :: 1908 :: ©hermitagemuseum.org

 

O ser humano talvez já nem se lembre de que o vestir teve, um dia, um significado apenas funcional em sua vida – proteger o corpo das intempéries. Passado esse primeiro e longínquo momento, no decorrer dos séculos o vestir foi incorporando outras significações – sociais, religiosas, ou mesmo ideológicas e políticas – até se tornar, como é hoje em dia, um ato carregado de códigos, rituais e cuidados.

 

Em relação ao comer, a história não difere muito – se o alimento teve, um dia, função apenas de garantir sobrevivência ao ser humano, com o passar do tempo ganhou desdobramentos e, permeado por questões econômicas, sociais, religiosas ou geográficas, o alimentar-se também adquiriu seus códigos, rituais e cuidados.

 

Ao olharmos essa evolução de modos e costumes, podemos ainda observar um outro aspecto, mais sutil e não menos relevante: a necessidade do ser humano de conferir maior prazer a atos que, por essenciais à sua própria existência, lhe são obrigatórios. À medida que o homem adquiriu consciência de sua própria existência e percepção de seus gostos e prazeres, não lhe foi mais possível suportar a infinita repetição, mecânica e cotidiana, de afazeres que não propiciassem conforto também à sua alma. Ampliar o sentido desses afazeres tornou-se necessidade imperiosa.

 

A quaisquer atos e realizações do ser humano, bem como às diversas maneiras de nos relacionarmos com eles e entre nós mesmos, podemos conferir beleza e, por decorrência, propiciarmo-nos prazer. Na introdução de seu livro ‘A beleza salvará o mundo’ (Ed. Difel, 2011), o filósofo Tzvetan Todorov explica que a beleza, seja a de uma paisagem, a de um encontro ou a de uma obra de arte, não remete a algo para além dessas coisas, mas nos faz apreciá-las enquanto tais – e, assim, nos permite experimentar a sensação de habitar plena e exclusivamente o presente.

 

Estar à mesa para desfrutar de uma refeição é uma das mais frequentes e ricas oportunidades que temos de experimentar tal sensação – e é espantoso ver quantas pessoas a desperdiçam diariamente, se relacionando com o alimentar-se como o faziam aqueles nossos ancestrais.

 

À mesa, a forma dos objetos dispostos, o paladar de um certo alimento, o encontro com o outro, ou o encontro consigo mesmo, tudo são possibilidades de desfrutarmos dessa plenitude – no dizer de Todorov, ‘sensação fulgaz e ao mesmo tempo infinitamente desejável, pois graças a ela nossa existência não decorre em vão; graças a esses momentos preciosos, ela se torna mais bela e mais rica de sentidos.’

 

Sejamos, pois, atentos e generosos conosco mesmos, lembrando diariamente que cada refeição representa uma chance de nos encontrarmos com o belo, de conferir prazer a nós mesmos e, assim, de ampliar o sentido de nossa existência.

Aforismos contemporâneos

Mira Schendel :: sem título (da série ‘Escritos’) :: 1965 :: ©moma.org

 

Pequenos esclarecimentos àqueles homens e mulheres adultos, bem nascidos, bem nutridos e tão abastados quanto mal criados, que a cada dia permeiam mais o cotidiano urbano. (A propósito de uma conversa que, particular que seria, em ambiente social me foi impingida aos ouvidos pelas centenas de decibéis com que emanava).

 

Ser não é sinônimo de ter.

 

Bolsa não é troféu.

 

Sapato não é pedestal.

 

Sala de cinema não é parque de diversões, e mesa de restaurante não é tribuna.

 

Intervenção estética não é assunto de utilidade pública.

 

Crachá de empresa não é medalha de honra ao mérito.

 

Os conceitos de ‘exibição’ e ‘elegância’ são excludentes quando aplicados a pessoas.

 

Pode-se converter identidade em imagem. O inverso, porém, não é verdadeiro.

 

Cada personal contratado é uma incompetência assumida.

 

Decote e comprimento de saia (ou vestido) crescem em proporção direta. Nível alcoólico e adequação, em inversa.

 

Presença de palavrão significa ausência de vocabulário.

 

É preciso ser bonita(o) para ser modelo, mas não é preciso ser modelo para ser bonita(o).

 

O uso de gentileza e cortesia não guarda relação de proporcionalidade com o nível socioeconômico do interlocutor.

 

Em tempo:

 

Elegância: sf. ‘distinção de porte, de maneiras, garbo’. XVI. Do lat. elegantia –æ: requinte, bom gosto, asseio, beleza de formas.

 

Elegante: adj. ‘belo de formas, cuidado no trajo, educado, polido’. XVI. Do lat. elegans –antis: que sabe escolher, bem escolhido, distinto, esmerado, conveniente, honrado.

Distinção: sf. ‘discriminação, separação, diferença’: discrimen, -inis, separatio, distinctio, discretio. XVI. Do lat. distinctio –onis.

A força e a beleza das palavras

Jenny Holzer :: Xenon on Berlin’s Matthäikirche :: 2001

 

Nascida em Ohio, em 1950, Jenny Holzer é uma artista que ao longo das últimas décadas vem consolidando um lindíssimo e impactante trabalho nas artes visuais. Embora tenha navegado pelo abstracionismo no início de sua carreira, quando se mudou para New York Holzer elegeu a palavra como força motriz de sua obra, e passou a se utilizar de mídias não convencionais, como outdoors, painéis de LED e projeções luminosas, para fazer chegar ao espectador as duas dimensões que compõem uma palavra: a forma e o conteúdo.

 

Os textos de que faz uso têm as mais diferentes origens: muitos são seus próprios escritos, outros são poemas internacionalmente conhecidos, outros ainda têm como fonte documentos governamentais. Mas Holzer se utiliza dessa diversidade para trabalhar  em uma vertente única, que fala de valores universais e estabelece conexões que tocam profundamente a todos nós: o público e o privado, o corpo político e o corpo físico, o global  e o particular.

 

Mais impressionante, porém, é o contraponto que Holzer constrói, em cada obra, entre forma e conteúdo: vemos, ao um só tempo, sensibilidade e força, gigantismo e fluidez, efemeridade e perenidade – tudo isso com um resultado plástico de beleza indiscutível.

 

Frente a uma obra de Holzer, não há como ficar indiferente. A força de sua palavra invade, da forma mais bela, nossos olhos, nossa mente e também nossa alma.

 

Para saber mais: www.jennyholzer.com

 

 

Múltiplas escolhas

Pantone guide :: ©Pantone.com

 

Catálogos referenciais vêm sendo utilizados desde o século XVI como instrumentos de trabalho por todas as áreas das artes decorativas. Tendo como finalidade experimentação, documentação, comercialização ou divulgação, são peça dotadas de uma beleza muito particular pois, reunindo inúmeras possibilidades de cores, desenhos, formas ou texturas, trazem aos olhos a percepção da variedade – e, fazendo-o dentro de certa ordem criteriosa, possibilitam relfexão, compreensão e prazer. (Citando Montesquieu: ‘Não basta mostrar muitas coisas à alma: é preciso fazê-lo numa ordem, pois assim nos lembramos do que vimos e começamos a imaginar o que veremos; a alma assim se felicita por sua amplitude e sua capacitade de penetração.‘)

 

Sobre esse tema, em 2008 o Cooper-Hewitt Museum exibiu uma belíssima exposição chamada ‘Multiple Choices – From Sample to Product’ (‘Múltiplas Escolhas – Do Modelo ao Produto‘). Os itens expostos iam de catálogos de vendas com modelos de botões de uma indústria francesa no século XVIII, passando por placas cerâmicas com referências das cores das porcelanas de Sèvres, até os atuais Pantone® Guides – cadernos, livros e objetos de beleza ímpar, capazes de encher os olhos e tirar o fôlego.

 

O contato com o universo de cores, formas e suas infinitas associações é uma experiência multisensorial capaz de produzir os mais diferentes efeitos sobre nós. Resultantes das diferentes reflexões da luz que incidem sobre um objeto e chegam a nossos olhos para então serem decodificadas pelo cérebro, as cores provocam diferentes estímulos e sensações. Um mesmo elemento, bi ou tridimensional, que nos seja apresentado em diferentes cores terá sobre nós efeitos diversos – da alegria à tristeza, da calma à excitação. Um belo exemplo disso é o PantoneHotel, inaugurado em 2010 em Bruxelas. Convidando a ‘experimentar a cidade por meio da lente das cores’, o hotel atribuiu a cada um de seus 7 andares diferentes paletas cromáticas, objetivando assim proporcionar a seus hóspedes diferentes sensações – nesse caso, cuidadosamente estudadas para se converterem em diferentes prazeres.

 

Saiba mais em:

http://www.pantonehotel.com/