Um não-guia de estilo

La Parisienne :: Inès de la Fressange et Sophie Gachet :: Ed. Flammarion :: 2010

 

Desde seu lançamento, em 2010, muito já se falou sobre o livro de Inès de la Fressange e Sophie Gachet. De fato, ele é ótimo: o texto tem humor, graça e vivacidade; as ilustrações (feitas pela própria Inès) trazem certa delicadeza e uma quase autoironia; as fotos (de autoria das duas autoras) revelam um olhar particular e despretensioso sobre objetos e lugares; e as informações… ora, quem não gostaria de ter uma agenda com endereços dos melhores e menos óbvios produtos e serviços de Paris?

 

A um olhar mais atento, porém, o livro mostra ser muito mais do que um ‘guia de estilo’ – designação que não existe na publicação original (simplesmente ‘La Parisienne’), mas foi agregada ao título em sua tradução para o inglês (‘Parisian chic: a style guide by Inès de la Fressange’), e adotada também na versão em português (‘A Parisiense: o guia de estilo de Inès de la Fressange’).

 

A palavra ‘guia’ traz implícita a ideia de uma obra com regras e instruções que, seguidas, são capazes de garantir o sucesso de determinado empreendimento ou atitude. Mas a noção de que existe uma fórmula, uma receita para ser ‘chic’ (!) ou para ter ‘estilo’ é diametralmente oposta ao pensamento que percorre o livro – e isso fica claro logo em seu início: ‘É preciso saber tomar liberdades com as afirmações categóricas… Algumas regras foram feitas para serem quebradas… Você gosta de vestido laranja com sapatos amarelos? Vá em frente, vai chegar um dia que vão querer copiá-la!’

 

O grande mérito do livro está, na verdade, em estimular a reflexão e o entendimento sobre si mesmo, e em valorizar a expressão individual – seja no modo de vestir, de morar ou de consumir. Ler algo como: ‘(A parisiense) não faz o gênero de torrar todo seu salário num must-have. Primeiro porque não tem dinheiro, e depois porque considera que tem tanto talento quanto um estilista: por que pagar caro por uma produção que ela mesma poderia ter imaginado?’ é muito mais instrutivo do que saber qual a visão particular de Inès a respeito de como combinar sandálias e vestidos.

 

Ou ainda: ‘Por que pensar que é absolutamente necessário pagar milhões para ter arte em casa? Enquadre os desenhos preferidos dos seus filhos… e para qualquer pedaço de papel a que você queira dar importância, os quadros de acrílico magnéticos transformarão até um recado rabiscado num guardanapo…’  É relevante saber de onde são os quadros de acrílico magnéticos? Não, relevante é a noção de que cada um decide aquilo que quer emoldurar – aquilo que, para si, tem valor.

 

Ter estilo é conhecer a si mesmo e ter clareza de suas preferências; saber o que lhe proporciona prazer, o que lhe agrada, o que coexiste em harmonia com seu jeito de se mover, de pensar, de agir, de viver. E fazer de cada escolha, portanto, uma expressão da própria individualidade. Ter estilo é ser consciente de ser único – e desfrutar dessa condição com alegria e prazer.

 

Para saber mais:

‘A parisiense, o guia de estilo de Inès de la Fressange com Sophie Gachet’,
 Ed. Intrínseca, 2011

O poder da dúvida

Victor Brauner :: The Triumph of Doubt :: 1946 :: ©Art Institute of Chicago

 

Vivemos uma era de certezas – ou pseudocertezas. Modos de ser, de vestir, de se portar, respostas a questões ou atitudes frente a situações parecem ser únicos, óbvios e indiscutíveis. Em tempos de personal services (trainer, shopper, organizer, styler…!!!), livros de autoajuda e manuais de how-to – sem falar na bíblia contemporânea, o Instagram –, não atender ao must be, ao must have, ou não ter a imediata (e esperada) resposta a qualquer questionamento parece demonstração de ignorância ou fraqueza.

 

Em 2008, em entrevista a Franthiesco Ballerini, então correspondente do jornal O Estado de S. Paulo em Los Angeles – em um contexto de crítica à TV por seu potencial destrutivo da capacidade de reflexão – o premiado ator Alan Arkin fez uma interessante observação: ‘Hoje, quando se faz uma pergunta a um jovem, todos têm uma resposta, ninguém mais reflete para responder. Ninguém mais diz “deixe-me pensar sobre isso”. Até Einstein dizia isso o tempo inteiro, e ele era razoavelmente esperto.’

 

A dúvida é uma das maiores propulsoras do desenvolvimento humano, e a capacidade de reflexão um de nossos maiores patrimônios. Certezas e unanimidades não são apenas burras, mas também estagnantes – só é possível crescer, social e individualmente, por meio do constante questionamento. Quem não se permite dizer ‘não sei, preciso pensar sobre isso’, não conhece o prazer de ouvir a si mesmo – em toda sua alma, razão e sentimentos – e de construir a própria identidade.

 

Usufruir da liberdade de pensamento, exercitar competências emocionais e intelectuais, tomar propriedade sobre seu próprio modo de ser, de pensarm de vestir ou de se portar, bem como estar pleno e íntegro em respostas e atitudes perante a vida (ciente também das responsabilidades nelas implicadas) é um dos maiores prazeres que o ser humano pode proporcionar a si mesmo – e é a forma mais elegante de vivenciar a existência, cada qual tão própria quanto única.

Para onde olham nossos olhos

Arthur Bispo do Rosário :: Manto da Apresentação :: sem data

 

Presume-se que Arthur Bispo do Rosário tenha vivido por cerca de oitenta  anos – não se sabe exatamente o ano de seu nascimento. Desses, cinquenta foram vividos como interno da Colônia Juliano Moreira, antigo manicômio carioca, sendo vinte e cinco ininterruptamente, até sua morte em 1989.

 

Negro, neto de escravos, pobre e migrante, tentou sobreviver no Rio de Janeiro como servente, caseiro, porteiro de edifício, funcionário da antiga Light e segurança de políticos, até ser sentenciado como ‘louco do tipo esquizofrênico paranóico’. Em um contexto marcado pela ascensão do fascismo – inclusive no Brasil, onde a então atuante Liga Brasileira de Higiene Mental adotava uma política higienista, racista e xenófoba –, foi submetido a lobotomia, eletrochoques e castigos por uma psiquiatria que tratava de mutilar e excluir os que incomodavam a ordem reinante.

 

Sua obra veio a conhecimento público, em seu conjunto, apenas após sua morte – e o que se viu foi um legado artístico extremamente original, pautado por uma profunda criatividade temática e pelo uso de diversos materiais e formas, trazendo à luz uma vida até então desconhecida e cujo entendimento passa pela arte, e não pela loucura.

 

Apropriando-se conscientemente de seu exílio como forma de viabilizar sua autoexpressão, Bispo do Rosário transformou em arte todo e qualquer recurso material que teve à mão, demonstrando de maneira incontestável a capacidade inata que tem o homem de criar – a despeito de dificuldades técnicas, materiais, de conhecimento teórico ou de história pessoal. Pelas mãos do artista, garrafas, pentes, moedas, sapatos, canecas, colheres, vassouras, pedaços de tecidos (tirados de lençóis), linhas (para bordar, proveniente do desmanche de uniformes dos internos), deixavam sua função original para se tornarem veículos de sua obsessiva busca por ordenamento, estrutura e ritmo do tempo e do pensamento.

 

Nas palavras de Louise Bourgeois, ‘Bispo do Rosário tinha a capacidade de incorporar um objeto de sua vida de confinamento e transformá-lo num objeto simbólico de sua auto-expressão, mistério, beleza e liberdade’. Deparar-se com qualquer desses objetos é uma experiência invariavelmente carregada de grande emoção, pois não bastasse sua desconcertante beleza plástica, neles reconhecemos formas, palavras e significados que dialogam silenciosamente com a alma humana, despertando sentimentos universais e questionamentos existenciais.

 

Questionamentos, sim. Pois ao olhar para dentro de si, ouvir sua própria alma e se permitir dar vazão à sua essência criativa mesmo frente a imensas adversidades, Bispo do Rosário produziu beleza e colocou-se num lugar da História que a psiquiatria jamais alcançará. E então nos perguntamos para onde estão voltados nossos olhos, para o que estão atentos nossos ouvidos e por que, mesmo quando não há qualquer adversidade, tanto relutamos em deixar brotar a essência criativa que cada um de nós traz, de forma única e singular, dentro de si.

 

P.S.Em 1982, foi inaugurado no Rio de Janeiro o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea – http://www.rioecultura.com.br/instituicao/instituicao.asp?local_cod=119

 

Em 2007, a CosacNaify publicou o belíssimo livro ‘Arthur Bispo do Rosário – Século XX’, organizado por Wilson Lázaro, com textos de Emanuel Araújo, Louise Bourgeois, Paulo

 

Herkenhoff e Ricardo Aquino, e atualmente fora de catálogo.

Aforismos contemporâneos

Mira Schendel :: sem título (da série ‘Escritos’) :: 1965 :: ©moma.org

 

Pequenos esclarecimentos àqueles homens e mulheres adultos, bem nascidos, bem nutridos e tão abastados quanto mal criados, que a cada dia permeiam mais o cotidiano urbano. (A propósito de uma conversa que, particular que seria, em ambiente social me foi impingida aos ouvidos pelas centenas de decibéis com que emanava).

 

Ser não é sinônimo de ter.

 

Bolsa não é troféu.

 

Sapato não é pedestal.

 

Sala de cinema não é parque de diversões, e mesa de restaurante não é tribuna.

 

Intervenção estética não é assunto de utilidade pública.

 

Crachá de empresa não é medalha de honra ao mérito.

 

Os conceitos de ‘exibição’ e ‘elegância’ são excludentes quando aplicados a pessoas.

 

Pode-se converter identidade em imagem. O inverso, porém, não é verdadeiro.

 

Cada personal contratado é uma incompetência assumida.

 

Decote e comprimento de saia (ou vestido) crescem em proporção direta. Nível alcoólico e adequação, em inversa.

 

Presença de palavrão significa ausência de vocabulário.

 

É preciso ser bonita(o) para ser modelo, mas não é preciso ser modelo para ser bonita(o).

 

O uso de gentileza e cortesia não guarda relação de proporcionalidade com o nível socioeconômico do interlocutor.

 

Em tempo:

 

Elegância: sf. ‘distinção de porte, de maneiras, garbo’. XVI. Do lat. elegantia –æ: requinte, bom gosto, asseio, beleza de formas.

 

Elegante: adj. ‘belo de formas, cuidado no trajo, educado, polido’. XVI. Do lat. elegans –antis: que sabe escolher, bem escolhido, distinto, esmerado, conveniente, honrado.

Distinção: sf. ‘discriminação, separação, diferença’: discrimen, -inis, separatio, distinctio, discretio. XVI. Do lat. distinctio –onis.

A alma imoral

Clarice Niskier em A alma imoral :: photo Dalton Valério

 

‘Há um olhar que sabe discernir o certo do errado e o errado do certo. Há um olhar que enxerga quando a obediência significa desrespeito e a desobediência representa respeito. Há um olhar que reconhece os curtos caminhos longos e os longos caminhos curtos. Há um olhar que desnuda, que não hesita em afirmar que existem fidelidades perversas e traições de grande lealdade. Esse olhar é o da alma.’

 

‘A alma imoral’ é uma das mais belas e impactantes peças de teatro dos últimos anos – uma adaptação teatral elaborada e interpretada (de forma elegante e sensível) por Clarice Niskier, a partir do livro homônimo do rabino Nilton Bonder. Partindo do conceito de que, por sua própria essência, a alma humana é transgressora, o texto confunde, desconstrói e reconstrói visões milenares sobre o que sejam corpo e alma, certo e errado, obediência e desobediência, traído e traidor.

 

Bonder coloca a tomada de consciência do ser humano sobre sua própria existência como a origem do corpo moral, que passa a ser o guardião dos costumes, da conformidade e da adaptação – o mantenedor das tradições do passado, que por meio delas colabora para a reprodução da espécie. Já a alma – que carrega em si a rebeldia e a capacidade da mutação – é aquela que possibilita pensamentos e condutas que rompem com essa moral estabelecida, colaborando assim para evolução dessa espécie. Para ele, é a tensão gerada por essas duas naturezas conflitantes e interdependentes, e o diálogo que se constrói entre essas forças – a conservadora e a transgressora – que permite ao homem transcender a si mesmo.

 

‘Não há tradição sem traição. E não há traição sem tradição.’ Basta olhar para a história da humanidade para constatarmos, nas mais diversas formas da expressão humana, a beleza e a verdade dessa afirmação: de Michelangelo a Picasso, de Beethoven a Stockhausen, de Isadora Duncan a Pina Bausch, de Brunelleschi a Frank Gehry, de Shakespeare a Guimarães Rosa… a evolução humana depende fundamentalmente de atos que, pela ótica dos costumes e da tradição, são vistos como traições. Mas verdadeira traição seria não dar voz a nossas almas transgressoras, pois são elas que nos permitem o prazer e a evolução em nossa existência.

 

Sobre a peça: www.almaimoral.com

 

‘A alma imoral’, Nilton Bonder, 1998, Ed. Rocco.

 

 

Por que Chanel

Coco Chanel :: ©Chanel.com

 

Quase 100 anos após suas primeiras criações, Chanel ainda é reverenciada no mundo da moda – e também fora dele. Numa era em que produtos, pensamentos e relações são cada vez mais efêmeros, há de se pensar sobre o porquê dessa longa permanência.

 

Libertando a mulher dos trajes rígidos do final do século XIX (que privilegiavam a ostentação em detrimento do conforto), Chanel reproduziu, em escala industrial, sua própria imagem – uma imagem diferenciada, em absoluta sintonia com sua personalidade e com o momento histórico em que vivia. E nisso reside o segredo de sua permanência no imaginário coletivo por todo esse tempo: não somos fascinados por suas roupas, seus colares ou seu perfume – somos fascinados por sua identidade, tão forte quanto única, e que nos é revelada por meio dos objetos que usou e (re)produziu.

 

Dizem que a intensidade da presença de Chanel anulava a de suas rivais. Mas sem dúvida  tal fascínio não vinha dos objetos que escolhia para seu vestir… esses eram escolhas pessoais e conscientes, decorrentes da intensidade de seu pensar – e do entendimento de que, também pelo vestir, expressava a própria identidade.

 

Ironicamente, a produção industrial de um estilo pessoal e único tornou-se um paradoxo – a ponto de a própria Chanel, a certa altura, ter afirmado: ‘Já não sou o que era: devo ser o que me tornei.’ A ânsia por uma imagem socialmente reconhecida e valorizada, aliada à falta de conhecimento e de reflexão sobre si mesmo, faz hoje com que milhares de pessoas creditem a bolsas, sapatos e roupas a capacidade de lhes conferir personalidade e identidade, numa total inversão de papéis.

 

Como já escrevi no texto ‘Do vestir’ (jan, 2011), o belo está em sermos e sabermo-nos únicos. Belo, portanto, não é ter Chanel – belo é ser Chanel.