A magia permanece

Keith Jarrett :: © Henry Leutwyler / ECM Records

 

No dia 30 de outubro de 2020, foi lançado Budapest Concert, o mais recente álbum de Keith Jarrett, gravação do concerto de abertura de sua última turnê europeia.¹  Poucos dias antes do lançamento, em entrevista concedida ao The New York Times, Jarrett afirmou sentir-se o John Coltrane dos pianistas: ‘Todos os saxofonistas que vieram depois de Coltrane mostraram o quanto devem a ele. Mas nenhum criou, de fato, uma música própria – foram apenas diferentes maneiras de imitá-lo.’

 

Para alguém que não conheça a obra de Jarrett, a fala pode parecer pretensiosa, mas quem alguma vez já o ouviu ao piano sabe que sua genialidade é um divisor de águas na história da música. Seu álbum The Köln Concert, gravado ao vivo na Casa de Ópera de Colônia em 1975, instituiu uma nova forma de jazz, definida por peças autorais, extensas e improvisadas no momento da performance (as quatro peças que compõem esse álbum só tiveram suas transcrições autorizadas pelo autor quase vinte anos depois). Até hoje, The Köln Concert detém o recorde de álbum de piano solo mais vendido da história, em qualquer gênero (três milhões e quinhentas mil cópias).

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Nascido na Pensilvânia em 1945, Keith Jarrett começou a estudar piano antes dos três anos de idade; aos cinco, estava em programas de novos talentos na televisão americana e aos sete, em seu primeiro recital, tocou Mozart, Bach, Beethoven e Saint-Saëns, encerrando a performance com duas composições próprias. Na adolescência, já com uma sólida formação erudita, passou a se dedicar aos estudos de jazz, tendo ingressado, logo em seguida, na prestigiada Berklee College of Music, em Boston. Um ano depois, foi contratado por Art Blakey para tocar com os Jazz Messengers em Nova Iorque (quando então conheceu o baterista Jack DeJohnette, com quem acabou estabelecendo uma duradoura parceria musical, complementada em 1983 pelo baixista Gary Peacock na formação do Standards Trio). Em pouco tempo, líder de pequenos grupos jazzísticos e já gravando suas próprias composições, Jarrett foi convidado a integrar a banda de Miles Davis, a quem até hoje cita como influência determinante em sua vida profissional e pessoal, e também na estruturação de seu pensamento sobre música e improvisação. (Anos mais tarde, Bobby McFerrin, outro gigante da música contemporânea, declararia o quanto a maneira pessoal e única de Keith Jarrett captar a essência de uma música, e de captar a própria essência enquanto músico, havia sido fundamental em sua formação – história que já contei neste blog, no texto ‘Ouvindo a própria voz‘.)

 

Considerado o mais importante músico vivo, Keith Jarrett é também o que mais soube conciliar, com regularidade e incomparável competência, música erudita, música popular e jazz. Sua imensa obra – quase duzentos álbuns, se considerados aqueles em que não é o bandleader – inclui desde releituras de temas de musicais da Broadway e clássicos da canção popular americana até obras referenciais da música erudita ocidental, como ‘O cravo bem temperado’ e as Variações Goldberg, de J. S. Bach. Suas performances sempre se caracterizaram por serem únicas, muito intensas e surpreendentes – somados à sua inquestionável capacidade criativa, atributos do piano, da sala de concertos, o mood do público e até mesmo peculiaridades da cidade onde estava se apresentando eram influências para as escolhas de Jarrett durante um concerto. ‘Não faço ideia do que vou tocar, antes de uma apresentação. E se tenho alguma ideia musical, digo ‘não’ a ela.’ Em cada show, a entrega total de Jarrett – física, intelectual, emocional e psicológica – ganhava a dimensão de magia: os sons extraídos do piano pareciam ser a transmutação da própria alma do artista.

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Jarrett se apresentou pela última vez no Carnegie Hall, em janeiro de 2017. Fazia poucos dias que os Estados Unidos estavam sob administração de um controverso (já ex) presidente, e o artista começou sua apresentação com um discurso crítico, complementado por comentários viscerais nos intervalos entre os longos arcos musicais. Semanas depois, um outro concerto que aconteceria no mesmo Carnegie Hall foi cancelado, assim como todas as futuras apresentações daquela turnê. A genérica alegação de sua gravadora citava problemas de saúde (Jarrett tinha um diagnóstico de síndrome da fadiga crônica desde 1997).

 

E foi apenas nessa recente entrevista ao The New York Times que Keith Jarrett revelou detalhes sobre sua condição física: um primeiro e leve derrame em 2017, seguido de outro acidente vascular grave no ano seguinte. Passados quase três anos, Jarrett ainda tem o corpo parcialmente paralisado, caminha com dificuldade, apoiado em uma bengala, e acredita que nunca mais voltará a tocar sua música. ‘No momento, não sinto que sou um pianista. É tudo que posso dizer a esse respeito.’

 

Essa perspectiva escancara uma condição brutal, frustrante e dolorosa. Assim como Callas e sua voz, ou Picasso e suas atividades plásticas, Keith Jarrett e seu piano foram, até então, uma existência indissociável – como também foi a relação entre o artista e seu público. Nesse concerto do Carnegie Hall, Jarrett chegou a agradecer à plateia por tê-lo feito chorar de emoção; e foi a certeza de uma conexão especial com os espectadores no concerto de Budapeste que o impeliu a registrar aquele momento.

 

O legado de Keith Jarrett permanecerá por dezenas de gerações – álbuns de estúdio, registros de concertos, transcrições de suas músicas, entrevistas… mas a magia de um encontro entre o artista, seu piano e seu público talvez agora só possa existir na memória e no coração de quem, como eu, teve a oportunidade de vivenciar essa experiência.

 

Obrigada, Keith Jarrett. Levarei para sempre um pouquinho de sua mágica dentro de mim.

 

¹ A ideia inicial de Jarrett e sua gravadora era lançar apenas Munich 2016, registro da apresentação de encerramento dessa mesma turnê e de fato lançado em 2019; no entanto, o pianista estava tão entusiasmado com sua performance no Béla Bartók National Concert Hall que não apenas quis divulgá-la, como quase batizou o respectivo álbum de The Gold Standards.

Minha cidade, meus caminhos

©Cássio Vasconcellos :: séria aéreas #1 2010-2014 :: São Paulo #4

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nasci e vivo em São Paulo, dirijo (e gosto de dirigir) há mais de trinta anos, e há algum tempo venho me percebendo na contramão da grande maioria dos motoristas de minha cidade. Explico: não sou usuária do Waze. Aliás, não tenho nenhum apreço pelo aplicativo, e por vários motivos. Primeiro, por uma enorme dificuldade em obedecer a comandos: ‘Em 300 metros, vire à direita.’ ‘Vire à direita’. Não sei consigo lidar com o imperativo.

 

Depois, minha formação em arquitetura e urbanismo me fez desenvolver uma relação carinhosa com mapas e guias de rua. Gosto de ler, analisar, deduzir a geografia, estudar possibilidades de caminhos, imaginar as paisagens… Conheço razoavelmente a cidade, ou pelo menos as regiões pelas quais circulo, e tenho um mapa mental dessas áreas bastante detalhado. Quando preciso me deslocar por outras, desconhecidas, consulto previamente a cartografia digital, estudo as associações entre caminhos capazes de me conduzir ao endereço inédito, e me lanço ao desconhecido. Sim, há nisso uma certa aventura, um risco (calculado) de me perder… mas a sensação de plenitude ao desbravar ruas e avenidas até então estrangeiras é, para mim, indescritível – sinto como se me apropriasse cada vez mais desta minha cidade.

 

Por fim, eu e Waze temos diferentes pontos de vista sobre o deslocamento: ele pensa o deslocamento pelo critério da rapidez, eu penso pelo critério da beleza (e também pelo da memória afetiva). Enquanto ele se preocupa em não ‘perder’ um minuto a mais no trânsito, eu me preocupo em qualificar os minutos que, já sei, necessariamente serão dispendidos em meu trajeto.

 

São Paulo é uma megalópole com um modelo de mobilidade ainda calcado em veículos individuais motorizados e sistema de transporte público extremamente deficitário. Qualquer deslocamento por automóvel leva sempre mais tempo do que deveria (ou gostaríamos), e lutar contra essa realidade só aumenta nosso nível de stress. Ou seja, fato posto, é preciso lidar com ele – e da melhor maneira possível.

 

Se a cidade oferece um trânsito superlativo e caótico, por outro oferece também imagens capazes de alegrar, surpreender e emocionar. Uma avenida com árvores centenárias; diversos prédios e diferentes arquiteturas; a rua onde morava o primeiro namorado; a outra, por onde caminhava ao levar os filhos à escola. O que se ganha em prazer, não há dúvida, é muito mais relevante do que os minutos economizados em caminhos mais rápidos.

 

E há ainda uma imensa satisfação ao experimentar a cidade que habitamos. Lembrando Calvino, ‘cidade não é apenas um conceito geográfico, mas um símbolo complexo e inesgotável da experiência humana’. Percorrer suas ruas, (re)conhecer cruzamentos, deduzir traçados, descobrir histórias, perder-se e (re)encontrar-se – é também nisso que reside a riqueza da vida urbana. Cruzar a cidade como autômato, obedecendo a comandos de virar à esquerda ou à direita sem se relacionar com esses espaços, e sem interrelacioná-los, é escolher um caminho reducionista – não apenas para o deslocamento, mas também para a vida.

 

Permita-se. Desfrute. Caminhar por São Paulo não pelo trajeto mais rápido, mas por aquele capaz de falar com sua alma, é uma experiência transformadora. Paisagens, sons, cores, formas, cheiros; por meio dos sentidos, é possível acionar a memória, resgatar vínculos, refazer caminhos, lembrar sua história. É possível também tornar-se mais próximo, mais íntimo da cidade – descobrí-la como àquele amigo que, quanto mais perto está, mais querido se faz.

 

Acredite: percorrer a cidade dessa maneira é bem mais prazeroso e enriquecedor do que obedecendo a um robô autoritário, que sequer vive aqui.

Dos lugares que nos habitam

J. M. W. Turner :: Venice: San Giorgio Maggiore – Early Morning :: 1819 :: ©tate.org.uk

 

Da ‘Odisséia’ de Homero às ‘Cidades Invisíveis’ de Calvino, são incontáveis os belíssimos encontros ocorridos, ao longo de nossa História, entre literatura e viagem. Diferentemente dos guias, que têm por objetivo fornecer informações de ordem prática sobre uma determinada cidade ou um lugar, a literatura de viagem, por meio da narrativa de experiências, descobertas e reflexões, coloca a aventura pessoal numa dimensão universal, capaz de instigar a imaginação, despertar sensações e inspirar desejos.

 

Assim como pessoas, lugares não têm vida senão por meio das relações que neles e por eles se contróem. Narrativas épicas, relatos de exílios, romances ficcionais e até mesmo alguns diários de viagem jogam luz sobre essas relações e têm papel fundamental na ampliação de nossa capacidade de perceber, sentir e imaginar o mundo que habitamos. Seria o mesmo nosso olhar sobre a Sícilia sem a leitura do texto de Lampedusa? E nossa percepção de Paris, sem as memórias de Hemingway? Temos consciência da infinita diversidade de lugares, paisagens, pessoas e culturas que habitam nosso mundo, mas são as experiências frente a essa diversidade que falam à nossa alma, e não seu entendimento racional.

 

Cada um de nós traz dentro de si um profundo arcabouço de imagens, sensações, palavras ou aromas que relacionamos a lugares, vivenciados ou sonhados, dos mais próximos aos mais distantes. Mistura de memórias, desejos e impressões, é um acervo que, de maneira não linear, vamos montando ao longo da vida; dentro de nós, permanece em silêncio, adormecido – mas a menor referência a qualquer dos lugares que nos habitam faz esse universo despertar.

 

Nesse sentido, a experiência de uma viagem tem início muito antes da efetiva partida. A escolha por um destino, a decisão sobre o meio de transporte, a análise de possibilidades e montagem da agenda, a inclusão (ou não) de uma companhia… Cada passo dado desde o primeiro instante de elaboração de uma viagem é resultado não apenas de um repertório cultural, mas principalmente desse universo onírico e sensorial que nos habita. Quanto mais amplo for esse universo, portanto, mais bela poderemos tornar a experiência vivenciada – e maior será o prazer conferido à nossa alma.