Tempo, tempo, tempo

Robert Rauschenberg :: ‘Third Time’, 1961 :: ©Robert Rauschenberg Fondation

 

As mitologias tiveram papel fundamental na construção das culturas ocidentais. Com suas histórias sem começo, meio ou fim, sem tempo e sem lugar, elas desprezam os limites exigidos pela racionalidade e permitem que nos apropriemos de suas narrativas, colocando-as em nosso tempo e nosso lugar. Mitos não são fatos – eles ‘acontecem’ dentro (e fora) de nós, celebrando o eterno por meio do temporal, o permanente por meio do circunstancial, o absoluto pelo fragmentado, o necessário pelo contigente. É por sua verdade psicológica, e não pela histórica, que os mitos têm tamanha capacidade de adesão.

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Escrevo este texto em abril de 2020, no dia em que completo trinta dias em isolamento em função da pandemia da Sars-Covid-2019. São trinta dias com o cotidiano de atividades, deslocamentos, interações e escolhas totalmente alterado. No decorrer desse período, muitas vezes me peguei refletindo sobre o tempo – o tempo imposto e o desejado; o tempo das coisas, o do outro, o meu tempo; o tempo de agora, o passado e o futuro; o tempo fugaz e o infinito. O tempo.

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Na mitologia grega, a primeira referência a Tempo é representada por Aion, um ser incorpóreo, serpentino, que pulsa em contração e expulsão como numa respiração cósmica e infinita. Aion casa-se com Ananké (Necessário) e juntos botam o ‘ovo do mundo’, simbologia para a inevitabilidade do destino – tudo o que existe é filho do Tempo; por trás de tudo que ‘é como é’ (o Necessário) está uma pulsação (o Tempo), determinando que tudo aparece para depois desaparecer.

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Se Aion é o tempo cíclico e imensurável, Cronos é a representação do tempo linear e quantitativo. Filho de Gaia (Terra) e Urano (Céu), e responsável pela separação dos pais1, ele se casa com sua irmã Rheia (Fertilidade) e juntos geram seis filhos. Temendo ser destronado pelos descendentes, Cronos devora cada um logo após seu nascimento – apenas Zeus (Ordem e Justiça) é salvo pela mãe, que engana o marido ao lhe entregar uma pedra embrulhada como se fosse o caçula. Adulto, Zeus obriga o pai a ingerir uma poção mágica, que o faz vomitar os filhos deglutidos.

 

Cronos é o devorador do destino – aquele que tanto gera quanto destroi. Uma representação para a ideia de que tudo nasce do tempo, e nada resiste a ele.

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A terceira referência ao Tempo encontrada na mitologia grega é Kairós (Momento Certo/Momento Oportuno). Filho de Zeus (que, depois de derrotar o pai, torna-se Deus dos deuses) e Tyche (Sorte), é dotado de uma beleza estonteante e representado com asas nos pés e nas costas. Simboliza o tempo psicológico, volátil, ligeiro, o tempo da oportunidade e da mudança. É um tempo qualitativo, circular e não mensurável; o tempo da criação, rápido, efêmero.

 

Kairós é associado também à eternidade (soma de todos os tempos, onde estão todas as oportunidades), à sabedoria (o tempo aproveitado), a Eros (pois a oportunidade seria um ato amoroso do destino para conosco) e a Dionísio (na representação da alegria de estar vivo).

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Por fim, os gregos nos trazem ainda o mito de Acme (Apogeu) como outra referência ao Tempo. Uma das Horas – as filhas de Zeus e Themis (Justiça) que eram deusas do ano, das estações climáticas e da ordem natural da vida –, Acme é a simbologia para o tempo da maturidade: o ápice, o momento máximo de uma vida.

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A ideia de um tempo dividido em três – passado, presente e futuro – se impôs às civilizações ocidentais a partir do século VIII, com a consolidação das crenças judaico-cristãs. No entanto, apesar da universalidade presente em suas diversas simbologias, o tempo não teve a mesma percepção ou compreensão em todas as culturas. Algumas sociedades viveram sob a égide do tempo recursivo, em que o presente tinha por objetivo honrar o passado e a memória, dignificando os ancestrais. Outras tiveram uma concepção cíclica do tempo, segundo a qual nada desaparece – tudo retorna dentro de uma ordem maior, que fornece uma previsibilidade incompreensível mas com a qual é necessário estar em harmonia.

 

Hoje, vivemos um tempo cronológico entendido como linha reta e pensado como flecha. Mesmo que com diferentes contagens (cristãos, muçulmanos e judeus, por exemplo, guiam-se por calendários discordantes), toda a concepção de tempo está projetada para um espaço que não se habita. É uma trajetória em direção ao futuro, ao que ainda não existe nem existiu no passado. Por termos esse entendimento, buscamos antecipar o que ainda não aconteceu – ansiedade, tentativas de controle e imediatismo no usufruto do prazer decorrem dessa forma de compreensão do tempo.

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Muito tem se falado sobre como a sociedade vai se comportar após a pandemia. São diversas as perguntas: Como será o mundo pós-Covid-19? Que mudanças faremos? Como lidaremos com nosso cotidiano, com nossos afetos, com o consumo, a natureza, a espiritualidade? No entanto, talvez a indagação mais importante seja outra: como será nossa relação com o tempo?

 

Não acredito que simples mudanças de comportamento possam fazer surgir um mundo diferente,’pós-Covid-19. Para que se mude um percurso, é preciso mudar a cartografia, o modelo de percepção da realidade. Enquanto entendermos o tempo presente apenas como uma ponte entre passado (memória) e futuro (expectativa), nada irá mudar – continuaremos a caminhar ansiosos, sendo devorados por Cronos e ignorando Kairós, o tempo qualitativo capaz de conferir significado à nossa existência.

 

O tempo vale pela forma como está preenchido. Há momentos que não têm nenhuma importância, e outros que dão sentido à vida, por magníficos que são. Cabe a nós, todos e cada um, transformarmos nossa relação com o tempo de forma a desenhar um novo percurso. Assim, quem sabe, seremos capazes de perceber a beleza e a oportunidade que existe em cada instante, e preenchê-los com sabedoria e amor, conscientes de sua efemeridade e alegres pelo simples fato de estarmos vivos.

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1   Segundo o poeta grego Hesíodo (aprox. 750-650 a.C.), o princípio é o Caos, e dele surgem Gaia (a Terra), Tártaro (a Abismo), Eros (o Amor), Érebo (as Trevas) e Nix (a Noite). Gaia gera sozinha as Óreas (Montanhas), Ponto (o Mar) e Urano (o Céu) – este, seu igual, para ser quem que a cobriria completamente e com quem criaria um lar eterno para os deuses -bem-aventurados’.

 

Gaia e Urano geram dezoito criaturas, sendo doze titãs e Cronos o mais novo e terrível deles. Porém, capaz de prever o futuro, Urano passa a temer o poder dos filhos e decide encerrá-los de volta no ventre da mãe. Gemendo de dor e sem poder parir, Gaia implora aos titãs que libertem os irmãos e se vinguem do pai, mas apenas Cronos aceita a missão. Ela então retira aço de seu peito e, com ajuda de Nix, faz uma foice dentada e dá ao filho. Este se esconde, esperando a chegada da noite, quando seu pai mais uma vez descerá para cobrir a esposa. Surpreendido por Cronos, que o ataca e castra, Urano (Céu) é separado para sempre de Gaia (Terra).

Aforismos contemporâneos

Mira Schendel :: sem título (da série ‘Escritos’) :: 1965 :: ©moma.org

 

Pequenos esclarecimentos àqueles homens e mulheres adultos, bem nascidos, bem nutridos e tão abastados quanto mal criados, que a cada dia permeiam mais o cotidiano urbano. (A propósito de uma conversa que, particular que seria, em ambiente social me foi impingida aos ouvidos pelas centenas de decibéis com que emanava).

 

Ser não é sinônimo de ter.

 

Bolsa não é troféu.

 

Sapato não é pedestal.

 

Sala de cinema não é parque de diversões, e mesa de restaurante não é tribuna.

 

Intervenção estética não é assunto de utilidade pública.

 

Crachá de empresa não é medalha de honra ao mérito.

 

Os conceitos de ‘exibição’ e ‘elegância’ são excludentes quando aplicados a pessoas.

 

Pode-se converter identidade em imagem. O inverso, porém, não é verdadeiro.

 

Cada personal contratado é uma incompetência assumida.

 

Decote e comprimento de saia (ou vestido) crescem em proporção direta. Nível alcoólico e adequação, em inversa.

 

Presença de palavrão significa ausência de vocabulário.

 

É preciso ser bonita(o) para ser modelo, mas não é preciso ser modelo para ser bonita(o).

 

O uso de gentileza e cortesia não guarda relação de proporcionalidade com o nível socioeconômico do interlocutor.

 

Em tempo:

 

Elegância: sf. ‘distinção de porte, de maneiras, garbo’. XVI. Do lat. elegantia –æ: requinte, bom gosto, asseio, beleza de formas.

 

Elegante: adj. ‘belo de formas, cuidado no trajo, educado, polido’. XVI. Do lat. elegans –antis: que sabe escolher, bem escolhido, distinto, esmerado, conveniente, honrado.

Distinção: sf. ‘discriminação, separação, diferença’: discrimen, -inis, separatio, distinctio, discretio. XVI. Do lat. distinctio –onis.

Por que Chanel

Coco Chanel :: ©Chanel.com

 

Quase 100 anos após suas primeiras criações, Chanel ainda é reverenciada no mundo da moda – e também fora dele. Numa era em que produtos, pensamentos e relações são cada vez mais efêmeros, há de se pensar sobre o porquê dessa longa permanência.

 

Libertando a mulher dos trajes rígidos do final do século XIX (que privilegiavam a ostentação em detrimento do conforto), Chanel reproduziu, em escala industrial, sua própria imagem – uma imagem diferenciada, em absoluta sintonia com sua personalidade e com o momento histórico em que vivia. E nisso reside o segredo de sua permanência no imaginário coletivo por todo esse tempo: não somos fascinados por suas roupas, seus colares ou seu perfume – somos fascinados por sua identidade, tão forte quanto única, e que nos é revelada por meio dos objetos que usou e (re)produziu.

 

Dizem que a intensidade da presença de Chanel anulava a de suas rivais. Mas sem dúvida  tal fascínio não vinha dos objetos que escolhia para seu vestir… esses eram escolhas pessoais e conscientes, decorrentes da intensidade de seu pensar – e do entendimento de que, também pelo vestir, expressava a própria identidade.

 

Ironicamente, a produção industrial de um estilo pessoal e único tornou-se um paradoxo – a ponto de a própria Chanel, a certa altura, ter afirmado: ‘Já não sou o que era: devo ser o que me tornei.’ A ânsia por uma imagem socialmente reconhecida e valorizada, aliada à falta de conhecimento e de reflexão sobre si mesmo, faz hoje com que milhares de pessoas creditem a bolsas, sapatos e roupas a capacidade de lhes conferir personalidade e identidade, numa total inversão de papéis.

 

Como já escrevi no texto ‘Do vestir’ (jan, 2011), o belo está em sermos e sabermo-nos únicos. Belo, portanto, não é ter Chanel – belo é ser Chanel.

O suficiente

Piet Mondrian :: Composition C :: 1935

 

O ser humano precisa aprender o significado da palavra “suficiente“. O que é suficiente para mim? O que me basta? Esta pergunta é fundamental, terrível, crítica.‘ A provocação, feita pelo antropólogo Roberto DaMatta em janeiro de 2011 durante uma entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, nunca foi tão atual.

 

Vivemos uma época em que quase não há espaço para reflexão, e determinadas maneiras de ser e ter são difundidas como verdades únicas: a roupa que se ‘deve’ usar, o carro que se ‘deve’ ter, a música que se ‘deve’ ouvir, o lugar para onde se ‘deve’ viajar… São inúmeros meios de comunicação, sites, bloggers e afins difundindo ‘verdades’ sem reflexão, questionamento e, muitas vezes, sem cultura ou repertório. Pior, muitos  compartilhando mediante remuneração produtos e serviços sem esclarecer a seu público a real motivação daquele compartilhamento.

 

Pelas ruas da cidade, cenas patéticas: acompanhadas de um séquito duvidoso, aspirantes a influencers trocam de roupas dentro de tendas improvisadas, posam para fotos usando peças que não lhes pertencem, em frente a lugares que não frequentam, fingindo uma vida que não vivem.

 

Não bastasse a imposição de padrões de consumo de bens materiais, há algo ainda mais nocivo: a imposição de padrões corporais. Leio sobre ritidoplastia, implantes de pômulo, bichectomia, preenchimentos, harmonização facial. Não faz muito tempo, me deparei com relatos de mulheres que ouviram de seus ginecologistas e de outros ‘profissonais de saúde’ que suas vaginas eram inadequadas e que deveriam ser modificadas. O número de pessoas que sofrem e se culpam por não conseguirem reproduzir um determinado corpo, rosto ou modo de vida cresce dia a dia. Baixa autoestima, endividamento, transtorno de personalidade, ansiedade, depressão, bulimia e anorexia são apenas algumas das consequências desse mecanismo.

 

De nada adianta perseguir modelos artificialmente criados. Tudo que se busca sem consciência acaba em angústia – seja pela impossibilidade da conquista, ou mesmo pela própria conquista. Afinal, quem se satisfaz ao conquistar o que não quer, ou o que imaginava querer mas, de fato, nem sabe por quê? Como no famoso conto ‘O espelho‘, de Machado de Assis, o processo de distanciamento de si mesmo é infinito e conduz ao extremo de não nos reconhecermos mais senão por meio da imagem construída por (e para) outros.

 

Não devemos jamais negar nossa própria essência. É em seu caráter único que está o valor de cada ser humano. Ter consciência de quem somos e do que nos é suficiente equivale a ter liberdade. Olhar para dentro de si e perceber qual a medida e qual a maneira daquilo que queremos ser, ter, usar, sentir ou ouvir, é a única forma de ampliar nossa sensação de plenitude e os prazeres que podemos, a cada dia, conferir à nossa própria existência.