Forma, função e fantasia

Stacking Vessels :: ©Utopia&Utility

 

‘Nosso propósito é enriquecer a vida por meio da beleza.’

 

A frase de Pia Wüstenberg traduz precisamente o que sentimos quando nos deparamos com alguma de suas criações: como num sopro, a vida se enche de beleza e encantamento.

 

Designer de produtos com formação no Royal College of Arts, em 2012 Pia fundou, juntamente com seu irmão Moritz, a Utopia&Utility, uma empresa que cria e produz objetos utilitários e decorativos de altíssimo valor estético – e que carregam também em si um enorme valor ético.

 

Por meio de seus projetos, Pia e Moritz buscam (re)valorizar o que eles chamam de habilidades tácitas – aquele conhecimento específico, profundo e apaixonado que os verdadeiros artesãos têm pelos materiais com o quais trabalham e pelo seu ofício. Com criações que invariavelmente unem materiais tradicionais e diferentes entre si (como vidro, metal, madeira ou cerâmica), eles trabalham com uma rede de artesãos espalhados por toda a Europa. No processo de produção, cada peça viaja por diversas pequenas oficinas, passando por inúmeras mãos talentosas e especializadas antes de chegar ao armazém da empresa, na Alemanha.

 

Não bastasse resgatar a tradição dos artífices e, por meio de seu modelo de negócio, promover o crescimento econômico de pequenas oficinas, a Utopia&Utility insere um pensamento inovador em seus objetos, capaz de transformar por completo a convencional percepção que teríamos acerca deles. Além dos impactantes contrapontos (peso versus leveza, opacidade versus transparência, rusticidade versus polidez), resultantes das inusitadas justaposições entre diferentes materiais, as formas elegantes, os encaixes precisos, as belíssimas combinações de cores e texturas e os acabamentos inesperados imprimem a cada objeto a força de uma obra de arte, manufaturada e única.

 

Por fim, muitas dessas peças nos convidam ainda a uma interação – um jogo lúdico por meio do qual, ao separar cada uma das partes que a compõem, nos surpreendemos com novos objetos, cada qual igualmente belo e íntegro em sua forma, projetado inclusive para abarcar outras funções.

 

Ao reunir, na estruturação de seu trabalho, imperativos éticos e estéticos de uma maneira tão orgânica e equilibrada, Pia e Moritz resgatam o conceito platônico de beleza: cada um de seus objetos, ao proporcionar tal prazer e arrebatamento, nos fala diretamente à alma e se coloca como um ‘esplendor da verdade’.

 

Para saber mais, acesse www.utopiaandutility.eu

Philocalie

Philocalie :: Éditions de l’Embellissement :: Paris, 2013

 

Em grego antigo, ‘philocalie‘ é um termo que significa ‘amor pela beleza’. Não por acaso, foi o nome escolhido por Valérie Solvit para o belíssimo livro que lançou com apoio da L’Óreal de Paris (‘Philocalie’, ©Éditions de l’Embellissement, Paris, 2013).

 

Diretora de uma agência de comunicação parisiense e particularmente dedicada à criação de livros que combinam arte, economia e cultura, Valérie pediu a oitenta personalidades, entre artistas, escritores, filósofos, fotógrafos, designers e arquitetos, que apresentassem sua visão sobre a Beleza – não a beleza cosmética, mas a Beleza em seu sentido universal, que transpassa tempos e culturas.

 

De Pierre Bergé aos irmãos Campana, de Charlotte Gainsbourg a Jack Lang, de Christian de Pontzamparc a Monique Lévi-Strauss, o ecletismo das personalidades convidadas a abordar o tema é tão surpreendente quanto as abordagens apresentadas. E o resultado é uma obra artístico-literária absolutamente rica, em forma e conteúdo. Peça quase artesanal produzida em edição limitada, o belíssimo livro de 30cm X 40cm traz um conjunto inédito de fotografias, ilustrações e textos impecavelmente selecionados, justapostos sob uma sofisticada direção de arte.

 

Navegando por suas páginas, belíssimas já por si, nos deparamos com as mais diversas expressões da Beleza: a beleza da maternidade, a beleza do silêncio, a beleza das palavras e do significado das coisas… a beleza da obra de Picasso, a da cidade de Veneza e a da noite numa floresta… a beleza que é mistério, a beleza que é qualquer, a beleza que simplesmente é…

 

Ao revelar olhares tão plurais sobre o mesmo tema, o livro demonstra que a busca pela Beleza, inata em todos nós, permeia cotidianamente nossas visões, ações e relações, colocando-se como um importante conector entre nós e o mundo que nos cerca. E, ao nos oferecer a oportunidade de refletir sobre um tema tão caro e comum a todos, Philocalie celebra não apenas o amor pela Beleza, mas, sobretudo, o amor pela vida.

“Felicidade se acha é em horinhas de descuido”

Matisse :: Le Bonheur de Vivre :: 1905 :: ©henrimatisse.org

 

No aroma do café fresquinho

Na manteiga que derrete no pão

No cheiro de mato molhado

Na ducha fresca, no verão

Andando descalço pelo chão

No céu, num dia ensolarado

 

No beijo do namorado

Vendo estrelas, na madrugada

Na gargalhada da amiga

Numa chuva inesperada

Reunindo a filharada

Relembrando uma cantiga

 

No álbum, na foto antiga

Na praia, olhando o mar

No sofá, livro na mão

Ouvindo passarinho cantar

Pondo bolo para assar

Cantando uma canção

 

No silêncio da meditação

Ao fim da ginástica ou da corrida

Na mesa posta com carinho

Na casa organizada e florida

No abraço da filha querida

Na taça de um bom vinho

 

No aroma do café fresquinho

Na manteiga que derrete no pão

Basta apenas perceber

Em cada pequena ação

Tem uma diferente emoção

Tem uma pontinha de prazer

 

* Essa frase está no conto ‘Barra da Vaca’, do livro ‘Tutameia (Terceiras estórias)’, de 1967 – último livro publicado em vida por João Guimarães Rosa.

 

A estetização do mundo

Zin Lim :: ID#30 :: ©SaatchiArt

 

‘Não estamos mais no tempo em que produção industrial e cultura remetiam a universos separados, radicalmente inconciliáveis; estamos no momento em que sistemas de produção, de distribuição e de consumo são impregnados, penetrados, remodelados por operações de natureza fundamentalmente estética. O estilo, a beleza, a mobilização dos gostos e das sensibilidades se impõem cada dia mais como imperativos estratégicos das marcas: é um modo de produção estético que define o capitalismo de hiperconsumo.’

 

Em seu livro ‘A estetização do mundo’ (escrito em parceria com o crítico de arte Jean Serroy), o filósofo Gilles Lipovetsky propõe um olhar inovador sobre a relação entre a economia liberal e a vida estética contemporânea. Em pouco mais de 400 páginas, Lipovetsky fala com brilhantismo sobre um dos grandes paradoxos do capitalismo de consumo: se por um lado produz efeitos inegavelmente desastrosos nos planos moral, social e econômico, por outro, ao explorar racionalmente e de maneira generalizada as propriedades estético-imaginárias (objetivando o lucro e a conquista de mercados), ele potencializa as dimensões criativas, intuitivas e emocionais, estilizando o universo cotidiano.

 

Segundo Lipovetsky, esse capitalismo contemporâneo busca construir uma imagem artista para seus autores: ‘os jardineiros se tornaram paisagistas; os cabeleireiros, hair designers; os cozinheiros, criadores culinários…’. Diferentemente da época fordista, em que o foco era a produção material, nesse novo modelo o foco é o imaterial – o intangível, o imaginário, o sonho. Assim, apelando para a sensibilidade dos consumidores, arte e estética estariam postas a serviço do mercado, criando-se o que o autor chama de ‘capitalismo artista’.

 

De maneira didática e acessível, Lipovetsky traça um breve fio histórico (da Antiguidade clássica até os dias de hoje) para então expor sua ótima análise sobre as relações contemporâneas entre indústria, consumo, marca, arte e design. Elegante e provocativo, aponta o hiperindividualismo, potencializado pelo compartilhamento em rede de vidas estetizadas, como elo fundamental nessa cadeia de interações complementares e interdependentes.

 

Considerado um dos mais importantes pensadores de nosso tempo, com olhar especialmente voltado às questões de sociologia e filosofia do consumo, da moda e do luxo, Lipovetsky amplia nossa compreensão acerca deste mundo em que ‘tudo segue a lógica da moda: é efêmero e sedutor’, e nos põe em cheque em relação a um de nossos mais primitivos instintos: a eterna busca pela beleza e pelo prazer que ela proporciona à nossa alma.

 

Do mesmo autor, são também excelentes leituras ‘A era do vazio’ (Editora Manole), ‘O império do efêmero’ (Companhia de Bolso) e ‘O capitalismo estético na era da globalização’ (Edições 70 – Brasil).

A beleza da imperfeição

©Richard Avedon :: portrait of Marella Agnelli :: 1959

 

Ao longo da História ocidental, o conceito de Beleza sempre esteve associado à ideia da perfeição. Na Grécia Antiga, a definição do belo estava estruturalmente ligada às noções de ordem, simetria e clareza, e à presença de proporções definidas como harmônicas. Já na Idade Média, o Cristianismo deu uma dimensão simbólica à Beleza, ao interpretá-la como um atributo divino, tal qual a bondade e a verdade – nesse sentido, também ligada à ideia de perfeição. E embora com o Renascimento tenham surgido concepções relativistas, incorporando ao conceito de Beleza aspectos culturais e sócio-econômicos, foi apenas a partir do século XVII que a subjetividade passou a permear a noção do belo (fazendo emergir então a ideia de ‘gosto’).

 

Na segunda metade do século XVIII, as convulsões sociais na Europa criaram um ambiente propício para o renascimento dos ideais de Beleza da Grécia e Roma Antigas, amplamente utilizados nas imagens de divulgação da Revolução Francesa e do Império Napoleônico. E foi justamente nesse momento que surgiu Kant, o primeiro pensador a deslocar o centro de existência da Beleza do objeto para o sujeito. A divisão que Kant estabelece entre ‘juízo de conhecimento’ (o que emite conceitos baseados nas propriedades do objeto) e ‘juízo estético’ (decorrente da reação pessoal do contemplador diante do objeto) fincou as bases da estética contemporânea. O belo deixa de estar apenas naquilo que se vê, e passa a estar também nos olhos que vêem.

 

O pensamento kantiano abriu caminho para as grandes rupturas estéticas ocorridas entre o final do século XIX e início do século XX. Ao conceito do belo foram incorporadas as ideias de singularidade, individualidade, prazer, emoção, potência, coragem, vitalidade etc.. Pudemos entender que existe Beleza na perfeição, mas que não é preciso haver perfeição para que exista a Beleza. Aguçamos nossa capacidade de percepção e ampliamos a possibilidade de conferir prazer à nossa alma. Passamos a admirar a voz cristalina de Nat King Cole tanto quanto a voz insegura de Chet Baker; as proporções clássicas do rosto de Grace Kelly, e os traços exóticos e voluptuosos de Sophia Loren; a Beleza densa do trabalho de Raushenberg e a quase superficial da pop art de Warhol.

 

Passadas poucas décadas, no entanot, o caminho que parecia de liberdade curiosamente acabou nos conduzindo a um aprisionamento. Estimulada por uma indústria que, interdisciplinarmente, se estrutura na massificação e na hipervalorização da juventude para gerar lucros, a busca por um ideal de Beleza – a busca pela Beleza perfeita – nunca foi tão exacerbada quanto hoje. Num processo insano e sem fim, homens e mulheres se lançam numa jornada rumo àquilo que nada é senão uma construção imaginária coletiva. E ao abandonar sua própria Beleza para (tentar) chegar a outra, vivem eternamente insatisfeitos, vagando no meio desse caminho.

 

É preciso resgatar a riqueza da pluralidade e a Beleza que reside na imperfeição. Lembrar da estranheza de Dovima. Dos olhos de Serge Gainsbourg, dos dentes de Lauren Hutton. Da boca de Mick Jagger, das sobrancelhas de Frida Kahlo e das formas de Grace Jones. E lembrar sobretudo das palavras de Leonard Cohen, que em sua canção ‘Anthem’, de 1992, diz:

 

‘… Forget your perfect offering

There is a crack in everythin

That’s how the light gets in’

(Em livre tradução:

‘… Esqueça a perfeição

Em tudo há uma fresta

E é por ela que entra a luz’)

Cantando os espaços, construindo a canção

Zaha Hadid :: JS Bach Chamber Music Hall, Manchester, UK :: photo ©Luke Hayes

 

Vem de longe a busca de filósofos, historiadores e teóricos pelo estabelecimento de uma conexão entre música e arquitetura. Dois mil e quinhentos anos atrás, Pitágoras já havia conceituado a harmonia matemática como peça fundamental para explicar toda a criação, a existência e a operação do universo. Segundo o filósofo grego, a ‘relação agradável de proporções’ faria com que todas as coisas vibrassem numa grande harmonia universal, assim como as notas numa música.

 

Algumas dessas relações de proporções estabelecidas por Pitágoras acabaram definindo relações espaciais canônicas da arquitetura clássica, assim como definiram também os ‘modos’ musicais predominantes até a Idade Moderna. Na arquitetura e na música ocidentais, a beleza de uma obra, durante séculos, foi pautada pelo conceito pitagórico de harmonia entre seus elementos.

 

Esse entendimento começou a ser questionado, na música, a partir surgimento do sistema tonal, que possibilitou a exploração de outras relações de proporção e intervalos, antes considerados desarmônicos e, portanto, incorretos. Da tonalidade, a música caminhou para a atonalidade, até chegar à sua dissolução e à dodecafonia, com criadores como Schoenberg e John Cage.

 

Paralelamente, as mudanças sociais e políticas decorrentes da ascensão da burguesia na Europa acenderam o desejo de libertação das regras formais do classicismo e a busca por uma expressão individual e pela inovação, permitindo o surgimento de uma nova arquitetura – que, rompendo o compromisso com a simetria e as relações de proporções antes definidas como belas (corretas), culminou, séculos depois, em experências como as de Frank Gehry ou Daniel Liebeskind. Hoje, a noção do belo – seja na música, seja na arquitetura – está pautada por novos e diversos conceitos.

 

Cada qual à sua maneira, música e arquitetura são composições estéticas que resultam da associação entre diferentes elementos, organizada e regida segundo determinados princípios. Altura, extensão, proporção, alternância, repetição, arranjo, ritmo, intensidade, densidade, textura, contraste, harmonia, equilíbrio, tensão… são todos constituidores de uma obra musical, e também constituidores de uma obra arquitetônica. A qualidade da obra, bem como sua beleza, decorre do conhecimento, da competência e da sensibilidade de seu autor no entrelaçar desses elementos.

 

Se, ao longo da História, arquitetura e música revelam ter percorrido trajetórias paralelas (e não apenas no que diz respeito à evolução do conhecimento, mas também em suas respectivas relações com a sociedade), atualmente parecem estar seguindo caminhos divergentes: se por um lado a qualidade em uma obra de arquitetura vem sendo socialmente cada vez mais percebida e exigida, por outro parece não importar que nossa produção musical esteja cada vez mais desprovida de atributos. Hoje, perseguimos e exaltamos a qualidade e a beleza de casas, edifícios, teatros e arenas, mas está fora da pauta discutir a qualidade e a beleza da música executada nesses espaços.

 

Em algum momento, nossa sociedade deixou de entender a música como composição estética, relegando-a simplesmente ao território do entretenimento. Uma pena. Ao prescindir da qualidade e da beleza em nossa produção musical, estamos dia a dia perdendo a oportunidade de ampliar nosso conhecimento, nossos prazeres e o sentido de nossa existência.

Dos lugares que nos habitam

J. M. W. Turner :: Venice: San Giorgio Maggiore – Early Morning :: 1819 :: ©tate.org.uk

 

Da ‘Odisséia’ de Homero às ‘Cidades Invisíveis’ de Calvino, são incontáveis os belíssimos encontros ocorridos, ao longo de nossa História, entre literatura e viagem. Diferentemente dos guias, que têm por objetivo fornecer informações de ordem prática sobre uma determinada cidade ou um lugar, a literatura de viagem, por meio da narrativa de experiências, descobertas e reflexões, coloca a aventura pessoal numa dimensão universal, capaz de instigar a imaginação, despertar sensações e inspirar desejos.

 

Assim como pessoas, lugares não têm vida senão por meio das relações que neles e por eles se contróem. Narrativas épicas, relatos de exílios, romances ficcionais e até mesmo alguns diários de viagem jogam luz sobre essas relações e têm papel fundamental na ampliação de nossa capacidade de perceber, sentir e imaginar o mundo que habitamos. Seria o mesmo nosso olhar sobre a Sícilia sem a leitura do texto de Lampedusa? E nossa percepção de Paris, sem as memórias de Hemingway? Temos consciência da infinita diversidade de lugares, paisagens, pessoas e culturas que habitam nosso mundo, mas são as experiências frente a essa diversidade que falam à nossa alma, e não seu entendimento racional.

 

Cada um de nós traz dentro de si um profundo arcabouço de imagens, sensações, palavras ou aromas que relacionamos a lugares, vivenciados ou sonhados, dos mais próximos aos mais distantes. Mistura de memórias, desejos e impressões, é um acervo que, de maneira não linear, vamos montando ao longo da vida; dentro de nós, permanece em silêncio, adormecido – mas a menor referência a qualquer dos lugares que nos habitam faz esse universo despertar.

 

Nesse sentido, a experiência de uma viagem tem início muito antes da efetiva partida. A escolha por um destino, a decisão sobre o meio de transporte, a análise de possibilidades e montagem da agenda, a inclusão (ou não) de uma companhia… Cada passo dado desde o primeiro instante de elaboração de uma viagem é resultado não apenas de um repertório cultural, mas principalmente desse universo onírico e sensorial que nos habita. Quanto mais amplo for esse universo, portanto, mais bela poderemos tornar a experiência vivenciada – e maior será o prazer conferido à nossa alma.

Simplicidade e estilo

Elsa Peretti :: Vogue, 1974 :: photo by Duane Michals

 

Falecida em março de 2021 aos oitenta anos, Elsa Peretti foi sem dúvida a maior responsável pela imagem contemporânea da Tiffany & Co.. Desde sua primeira coleção para a marca, em 1974, a designer italiana criou belíssimos objetos e jóias que se caracterizam por uma simplicidade orgânica e por uma indiscutível elegância formal – atributos que mantiveram suas peças entre as mais vendidas da companhia por quase cinquenta anos.

 

Italiana de Firenze, Elsa desde muito cedo revelou seu espírito criativo, curioso e livre. Filha de um magnata da indústria do petróleo, ainda jovem distanciou-se dos pais conservadores ao passar um tempo na Suíça, lecionando italiano e ski. De volta à Itália, formou-se em design de interiores em Roma e, após romper um tradicional noivado, mudou-se para Milão e começou a trabalhar com o arquiteto Dado Torrigiani. No ano seguinte, 1963, mudou-se para Barcelona e iniciou carreira como modelo, ao mesmo tempo em que mergulhou no fascinante universo dos artistas e arquitetos catalães – em especial no de Gaudí, uma declarada influência. Fascinada pelas formas esculturais, viajou ao Japão e a Hong-Kong para imergir na arte e no simbolismo asiático; por fim, em 1968, emigrou para os Estados Unidos e foi viver em Nova Iorque (segundo ela, o melhor lugar para desfrutar da juventude naqueles anos).

 

Foi desfilando para Halston, Sant’ Angelo e De La Renta que Elsa começou a se interessar  pelo design de jóias e acessórios. Com seu jeito rebelde, o olhar refinado de esteta e a proximidade com o mundo da moda, rapidamente entendeu que a linguagem que estava surgindo no design de roupas (caracterizada pela aliança entre conforto, praticidade e sensualidade) deveria permear também os complementos do vestir. Começou então a modelar em cera formas abstratas, simples e orgânicas, inspiradas na natureza; depois, fundindo-as em prata, fazia delas belíssimas peças, atraentes pelo design clean e inovador e pela primorosa execução. Do primeiro colar ao contrato com a Tiffany foram apenas cinco anos – e no lançamento da primeira coleção para a famosa joalheria, suas peças já estavam todas esgotadas.

 

Elsa Peretti costumava dizer que sua obra vinha de sua vida. E não há dúvidas de que cada uma de suas criações reflete um jeito de ser e de ver o mundo: sua paixão pela natureza, de cujas formas se apropriava para depois reinventá-las; sua incansável curiosidade, que a movia em pesquisas acerca dos mais diversos materiais e processos de produção; a devoção ao artesanato, que fez de cada uma de suas criações resultado de um árduo e investigativo trabalho manual; e a eterna rebeldia, que manteve acesa em sua alma, e até o fim de seus dias, a chama do questionamento.

 

Ainda hoje, não há modelo mais perfeita para as peças de Elsa Peretti do que ela mesma. Estilo (que, segundo a própria designer, não condiz com excessos), beleza, simplicidade, competência, elegância e personalidade – para ver, usar, admirar e aprender.

 

Para saber mais:

http://elsaperettidesign.blogspot.com.br

https://www.tiffany.com.br/world-of-tiffany/about-elsa-peretti/

Poeira no vento

Dorothea Lange :: Dust Storm Near Mills :: 1935

 

O valor maior da riqueza material reside no fato de que, por meio dela, podemos garantir o atendimento às necessidades básicas de nossa existência. Quanto maior a riqueza, maiores o acesso, o nível de conforto e a qualidade que podemos conferir à nossa saúde, à alimentação, à moradia e à educação (esta, em suas três dimensões: pessoal, social e cultural). Seria lógico, portanto, imaginar que enriquecimento material e o sócio-cultural devessem caminhar juntos.

 

Num passado não muito remoto, à medida em que ampliava seu poder aquisitivo, a burguesia ascendente buscava reproduzir o modo de vida aristocrático, no qual reconhecia diferenciais qualitativos. A aspiração não se restringia aos bens materiais: muito mais do que aos objetos, aspirava-se a um certo modo de ser e proceder, percebido como mais belo, elegante e prazeroso. Frequentar óperas e saraus, patrocinar a produção artística ou ter os melhores preceptores para os filhos eram, para essa burguesia, desejos tão fortes quanto vestir rendas francesas ou exibir cristais alemães. Mais do que por possibilitar a aquisição de objetos, o enriquecimento material era almejado por significar acesso a um valorizado universo de conhecimento, cultura e informação.

 

Em significativa parcela das classes ascendentes na sociedade contemporânea, porém, curiosamente observamos um comportamento bem diverso. Vemos hoje pessoas aumentando suas possibilidades financeiras e, em consequência, os tamanhos de seus automóveis e casas, intensificando os cuidados com saúde e corpo, sofisticando os alimentos e bebidas à mesa, multiplicando as roupas no closet… mas parece não existir, para boa parte dessas pessoas, preocupação alguma com a elevação de seu nível de educação e cultura. O enriquecimento material parece ter um objetivo em si mesmo – obter coisas materialmente mais ricas (= caras). Como consequência, vemos uma sociedade a cada dia mais embrutecida, mesquinha e arrogante, em que pessoas que sabem de cor os nomes das mais sofisticadas marcas de roupas e de automóveis não sabem citar um só nome significativo nas artes ou na literatura, expressam-se por meio de vocabulário pobre (quando não chulo) e são incapazes de uma atitude gentil.

 

Educação e cultura são meios para refletir sobre nossa existência, construir, discutir e transmitir valores, e ampliar a consciência acerca de nós mesmos, do outro e do mundo. Elas nos possibilitam aguçar os sentidos e refinar a percepção, tornando-nos capazes de ver e apreciar a beleza – de uma obra, de um pensamento ou de uma atitude; também permitem que sentimentos como gentileza, delicadeza e solidariedade aflorem nas relações, tornando-as amorosas e construtivas; ainda, colocam-nos numa perspectiva histórica, possibilitando o desenvolvimento de um olhar crítico e o fortalecimento de valores universais como verdade, liberdade e igualdade.

 

Por si, a riqueza material é como poeira no vento – não têm valor algum. Somente por meio da educação e da cultura podemos nos tornar pessoas melhores – capazes, então, de formar uma sociedade melhor, mais agradável e prazerosa para se viver.

Villa-Lobos Superstar

 

Heitor Villa-Lobos, como todo grande criador, começou sua obra sob influência dos grandes mestres do estilo vigente à sua época (como Wagner e Puccini), para depois promover o rompimento com a obra acadêmica e criar uma linguagem inovadora, própria e única. Incorporando elementos do folclore, de cantos populares e da cultura indígena à música instrumental (solo, de câmara ou sinfônica), abraçou as questões mais relevantes do modernismo, dando uma nova dimensão à chamada música nacionalista e colocando a música brasileira no cenário mundial. E em toda sua história, o compositor nunca percorreu um caminho linear – explorou várias possibilidades estilísticas e brincou com as mais inusitadas combinações de instrumentos, sempre de forma livre e em constante evolução.

 

Composto hoje por alguns dos maiores músicos brasileiros da atualidade (Rodolfo Stroeter, Paulo Bellinati, Nelson Ayres, Ricardo Mosca e Teco Cardoso), o grupo Pau Brasil sempre teve como objetivo pesquisar novas formas para a música instrumental brasileira. Desde sua criação em 1979, a releitura de gêneros e estilos e o cruzamento entre o tradicional e o contemporâneo para a criação de um repertório ‘visceralmente brasileiro’ são parte intrínseca de sua identidade – e, junto com a excelência técnica, a elegância na interpretação e o bom gosto na definição do repertório, fizeram do grupo uma referência na música instrumental brasileira, com reconhecimento internacional. Além de composições autorais, o Pau Brasil tem (re)leituras de Baden Powel, Jobim, Moacir Santos e Hermeto, entre outros, e de suas parcerias musicais fazem parte nomes como Gilberto Gil, Monica Salmaso, Naná Vasconcelos e Toots Thielemans, passando por Osesp e Jazz Sinfônica.

 

No início de 2012, o Pau Brasil lançou o excepcional ‘Villa-Lobos Superstar’ (em parceria com o quarteto de cordas Ensemble SP e com participação da voz de Renato Braz). Com magníficos arranjos de Ayres e Bellinati, o álbum traz uma releitura sensível de obras como as Bachianas Brasileiras nº 4 (Prelúdio e Cantiga) e nº5 (completas), além de várias outras canções, todas em belíssimas e emocionantes interpretações. E a surpreendente inserção de um quarteto de cordas numa formação tradicionalmente jazzística, acrescida dos pontos de luz criados pela voz de Renato Braz, conferem ao ao álbum uma linguagem como a de Villa-Lobos: inovadora e única.

 

Ao reler Villa-Lobos com tanta competência, o Pau Brasil não apenas demonstra conhecimento acerca da obra do compositor, mas sobretudo a leva adiante, na medida em que, como o próprio Villa-Lobos faria, afirma seu apreço à história, revela seu talento para a inovação e reitera sua vontade de evoluir sempre.

 

Para saber mais: http://www.grupopaubrasil.com.br