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A vertigem das listas

Alighiero Boetti:: ‘Untitled’ :: 1987 :: photo ©Christie’s

 

O título deste texto foi roubado de um dos livros mais apaixonantes de Umberto Eco. ‘A vertigem das listas’, publicado no Brasil em 2010, dá continuidade a um projeto editorial que teve início com ‘História da Beleza’ e ‘História da Feiúra’ (ambos também disponíveis em português) e, assim como seus antecessores, consiste de um ensaio crítico acompanhado de uma antologia literária e de uma belíssima seleção de trabalhos artísticos, que ilustram e ancoram os textos apresentados.

 

Umberto Eco conta que o livro surgiu de um pedido que recebeu do Museu do Louvre para organizar ‘uma série de palestras, exposições, leituras públicas, concertos e projeções’  sobre algum tema de sua livre escolha. E ele propôs as listas (ou elencos, ou catálogos de enumeração), uma preferência que nasceu de seus estudos sobre textos medievais e joyceanos, e que aparece em quase todos os seus romances.

 

No ensaio, Eco reflete sobre como a ideia dos catálogos mudou no decorrer do tempo e como, de um período a outro, expressou o espírito de cada era. O autor, porém, estabelece antes uma distinção entre ‘listas práticas’ (os convidados de uma festa ou o catálogo de uma biblioteca), e ‘listas poéticas’ (aquelas que se propõem a uma finalidade artística, seja qual for a forma de arte, como a Biblioteca de Babel de Borges ou os nomes bordados nos mantos de Bispo do Rosário). Enquanto as primeiras teriam função referencial e objetivo prático, elencando coisas segundo um modelo de organização e fechando-se de forma harmônica e completa, as outras conduziriam a um universo subjetivo, capaz de nos abrir sucessivas portas e levar ao infinito.

 

Quais são as letras de um alfabeto? E as palavras que com elas construímos? Quantas são minhas memórias? E as estrelas do céu?

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‘Alta fidelidade’ é um livro de Nick Hornby sobre o qual muito já se falou. Publicado em 1995 e levado às telas do cinema cinco anos depois pelas mãos de Stephen Frears, tem como narrador Rob Fleming – um londrino de trinta e cinco anos, proprietário de uma loja de discos à beira da falência, viciado em cultura pop e que não consegue pensar a vida senão em termos de listas dos ‘cinco melhores de todos os tempos’: livros, filmes, bandas, cantores, álbuns, solos de guitarra, notícias, amantes, separações etc.. Et cetera.

 

À época desses lançamentos, criar listas – mentais ou em rodas de amigos – virou febre. Todos queríamos discutir os ‘cinco melhores’ de nossas vidas, em todos os assuntos. No entanto, a brincadeira que divertia também gerava angústia, pois para cada lista de coisas escolhidas, outra ainda maior se montava: a das coisas rejeitadas.

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Qualquer processo individual de seleção e escolha, se feito com consciência, é um exercício de autoconhecimento. Por meio da reflexão – por que este e não aquele? – podemos ampliar o entendimento acerca de nosso momento de vida, de nossa própria visão de mundo, de nossos valores, emoções e prazeres, o que talvez ajude a nos tornarmos um pouco mais seguros diante de novas escolhas.

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Esse exercício de enumeração é sedutor, e pode abrir um leque de infinitas listas em nosso imaginário: músicas, autores, poemas, pinturas, receitas, lugares a visitar… E uma mesma lista pode inclusive adquirir as duas formas, prática ou poética. Como? Os ingredientes culinários registrados em uma lista de compras domésticas, por exemplo, têm caráter puramente prático, mas presentes em um livro sobre culinária mediterrânea podem adquirir valor poético. Da mesma maneira, a lista de nomes dos soldados norteamericanos mortos na guerra do Iraque têm dimensão poética na obra de Jenny Holzer, mas reduz-se ao âmbito prático quando em um documento oficial do Governo dos Estados Unidos.

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Listar nossos cinco, dez ou vinte melhores livros, filmes, canções, o que for, é fazer o esboço de um esprit du temps particular – um recorte que expressa os sentimentos e reflexões de quem somos neste momento. Não retrata quem somos, mas quem ‘estamos’.

 

Talvez amanhã não façamos as mesmas escolhas, pois talvez amanhã não sejamos mais quem somos hoje. Viver é manter-se em movimento, caminhar, evoluir. Não se congelar no próprio saber, nas próprias crenças; é manter-se vendo e revendo filmes, ouvindo e reouvindo canções, lendo e relendo livros, descobrindo e redescobrindo coisas, pessoas, lugares, prazeres. Sobretudo, viver é continuar aprendendo, reaprendendo, e sempre olhando para dentro de si como quem olha para uma lista poética de histórias, gostos, valores, imagens e memórias. Uma lista que termina em et cetera.

A magia permanece

Keith Jarrett :: © Henry Leutwyler / ECM Records

 

No dia 30 de outubro de 2020, foi lançado Budapest Concert, o mais recente álbum de Keith Jarrett, gravação do concerto de abertura de sua última turnê europeia.¹  Poucos dias antes do lançamento, em entrevista concedida ao The New York Times, Jarrett afirmou sentir-se o John Coltrane dos pianistas: ‘Todos os saxofonistas que vieram depois de Coltrane mostraram o quanto devem a ele. Mas nenhum criou, de fato, uma música própria – foram apenas diferentes maneiras de imitá-lo.’

 

Para alguém que não conheça a obra de Jarrett, a fala pode parecer pretensiosa, mas quem alguma vez já o ouviu ao piano sabe que sua genialidade é um divisor de águas na história da música. Seu álbum The Köln Concert, gravado ao vivo na Casa de Ópera de Colônia em 1975, instituiu uma nova forma de jazz, definida por peças autorais, extensas e improvisadas no momento da performance (as quatro peças que compõem esse álbum só tiveram suas transcrições autorizadas pelo autor quase vinte anos depois). Até hoje, The Köln Concert detém o recorde de álbum de piano solo mais vendido da história, em qualquer gênero (três milhões e quinhentas mil cópias).

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Nascido na Pensilvânia em 1945, Keith Jarrett começou a estudar piano antes dos três anos de idade; aos cinco, estava em programas de novos talentos na televisão americana e aos sete, em seu primeiro recital, tocou Mozart, Bach, Beethoven e Saint-Saëns, encerrando a performance com duas composições próprias. Na adolescência, já com uma sólida formação erudita, passou a se dedicar aos estudos de jazz, tendo ingressado, logo em seguida, na prestigiada Berklee College of Music, em Boston. Um ano depois, foi contratado por Art Blakey para tocar com os Jazz Messengers em Nova Iorque (quando então conheceu o baterista Jack DeJohnette, com quem acabou estabelecendo uma duradoura parceria musical, complementada em 1983 pelo baixista Gary Peacock na formação do Standards Trio). Em pouco tempo, líder de pequenos grupos jazzísticos e já gravando suas próprias composições, Jarrett foi convidado a integrar a banda de Miles Davis, a quem até hoje cita como influência determinante em sua vida profissional e pessoal, e também na estruturação de seu pensamento sobre música e improvisação. (Anos mais tarde, Bobby McFerrin, outro gigante da música contemporânea, declararia o quanto a maneira pessoal e única de Keith Jarrett captar a essência de uma música, e de captar a própria essência enquanto músico, havia sido fundamental em sua formação – história que já contei neste blog, no texto ‘Ouvindo a própria voz‘.)

 

Considerado o mais importante músico vivo, Keith Jarrett é também o que mais soube conciliar, com regularidade e incomparável competência, música erudita, música popular e jazz. Sua imensa obra – quase duzentos álbuns, se considerados aqueles em que não é o bandleader – inclui desde releituras de temas de musicais da Broadway e clássicos da canção popular americana até obras referenciais da música erudita ocidental, como ‘O cravo bem temperado’ e as Variações Goldberg, de J. S. Bach. Suas performances sempre se caracterizaram por serem únicas, muito intensas e surpreendentes – somados à sua inquestionável capacidade criativa, atributos do piano, da sala de concertos, o mood do público e até mesmo peculiaridades da cidade onde estava se apresentando eram influências para as escolhas de Jarrett durante um concerto. ‘Não faço ideia do que vou tocar, antes de uma apresentação. E se tenho alguma ideia musical, digo ‘não’ a ela.’ Em cada show, a entrega total de Jarrett – física, intelectual, emocional e psicológica – ganhava a dimensão de magia: os sons extraídos do piano pareciam ser a transmutação da própria alma do artista.

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Jarrett se apresentou pela última vez no Carnegie Hall, em janeiro de 2017. Fazia poucos dias que os Estados Unidos estavam sob administração de um controverso (já ex) presidente, e o artista começou sua apresentação com um discurso crítico, complementado por comentários viscerais nos intervalos entre os longos arcos musicais. Semanas depois, um outro concerto que aconteceria no mesmo Carnegie Hall foi cancelado, assim como todas as futuras apresentações daquela turnê. A genérica alegação de sua gravadora citava problemas de saúde (Jarrett tinha um diagnóstico de síndrome da fadiga crônica desde 1997).

 

E foi apenas nessa recente entrevista ao The New York Times que Keith Jarrett revelou detalhes sobre sua condição física: um primeiro e leve derrame em 2017, seguido de outro acidente vascular grave no ano seguinte. Passados quase três anos, Jarrett ainda tem o corpo parcialmente paralisado, caminha com dificuldade, apoiado em uma bengala, e acredita que nunca mais voltará a tocar sua música. ‘No momento, não sinto que sou um pianista. É tudo que posso dizer a esse respeito.’

 

Essa perspectiva escancara uma condição brutal, frustrante e dolorosa. Assim como Callas e sua voz, ou Picasso e suas atividades plásticas, Keith Jarrett e seu piano foram, até então, uma existência indissociável – como também foi a relação entre o artista e seu público. Nesse concerto do Carnegie Hall, Jarrett chegou a agradecer à plateia por tê-lo feito chorar de emoção; e foi a certeza de uma conexão especial com os espectadores no concerto de Budapeste que o impeliu a registrar aquele momento.

 

O legado de Keith Jarrett permanecerá por dezenas de gerações – álbuns de estúdio, registros de concertos, transcrições de suas músicas, entrevistas… mas a magia de um encontro entre o artista, seu piano e seu público talvez agora só possa existir na memória e no coração de quem, como eu, teve a oportunidade de vivenciar essa experiência.

 

Obrigada, Keith Jarrett. Levarei para sempre um pouquinho de sua mágica dentro de mim.

 

¹ A ideia inicial de Jarrett e sua gravadora era lançar apenas Munich 2016, registro da apresentação de encerramento dessa mesma turnê e de fato lançado em 2019; no entanto, o pianista estava tão entusiasmado com sua performance no Béla Bartók National Concert Hall que não apenas quis divulgá-la, como quase batizou o respectivo álbum de The Gold Standards.

Cantando os espaços, construindo a canção

Zaha Hadid :: JS Bach Chamber Music Hall, Manchester, UK :: photo ©Luke Hayes

 

Vem de longe a busca de filósofos, historiadores e teóricos pelo estabelecimento de uma conexão entre música e arquitetura. Dois mil e quinhentos anos atrás, Pitágoras já havia conceituado a harmonia matemática como peça fundamental para explicar toda a criação, a existência e a operação do universo. Segundo o filósofo grego, a ‘relação agradável de proporções’ faria com que todas as coisas vibrassem numa grande harmonia universal, assim como as notas numa música.

 

Algumas dessas relações de proporções estabelecidas por Pitágoras acabaram definindo relações espaciais canônicas da arquitetura clássica, assim como definiram também os ‘modos’ musicais predominantes até a Idade Moderna. Na arquitetura e na música ocidentais, a beleza de uma obra, durante séculos, foi pautada pelo conceito pitagórico de harmonia entre seus elementos.

 

Esse entendimento começou a ser questionado, na música, a partir surgimento do sistema tonal, que possibilitou a exploração de outras relações de proporção e intervalos, antes considerados desarmônicos e, portanto, incorretos. Da tonalidade, a música caminhou para a atonalidade, até chegar à sua dissolução e à dodecafonia, com criadores como Schoenberg e John Cage.

 

Paralelamente, as mudanças sociais e políticas decorrentes da ascensão da burguesia na Europa acenderam o desejo de libertação das regras formais do classicismo e a busca por uma expressão individual e pela inovação, permitindo o surgimento de uma nova arquitetura – que, rompendo o compromisso com a simetria e as relações de proporções antes definidas como belas (corretas), culminou, séculos depois, em experências como as de Frank Gehry ou Daniel Liebeskind. Hoje, a noção do belo – seja na música, seja na arquitetura – está pautada por novos e diversos conceitos.

 

Cada qual à sua maneira, música e arquitetura são composições estéticas que resultam da associação entre diferentes elementos, organizada e regida segundo determinados princípios. Altura, extensão, proporção, alternância, repetição, arranjo, ritmo, intensidade, densidade, textura, contraste, harmonia, equilíbrio, tensão… são todos constituidores de uma obra musical, e também constituidores de uma obra arquitetônica. A qualidade da obra, bem como sua beleza, decorre do conhecimento, da competência e da sensibilidade de seu autor no entrelaçar desses elementos.

 

Se, ao longo da História, arquitetura e música revelam ter percorrido trajetórias paralelas (e não apenas no que diz respeito à evolução do conhecimento, mas também em suas respectivas relações com a sociedade), atualmente parecem estar seguindo caminhos divergentes: se por um lado a qualidade em uma obra de arquitetura vem sendo socialmente cada vez mais percebida e exigida, por outro parece não importar que nossa produção musical esteja cada vez mais desprovida de atributos. Hoje, perseguimos e exaltamos a qualidade e a beleza de casas, edifícios, teatros e arenas, mas está fora da pauta discutir a qualidade e a beleza da música executada nesses espaços.

 

Em algum momento, nossa sociedade deixou de entender a música como composição estética, relegando-a simplesmente ao território do entretenimento. Uma pena. Ao prescindir da qualidade e da beleza em nossa produção musical, estamos dia a dia perdendo a oportunidade de ampliar nosso conhecimento, nossos prazeres e o sentido de nossa existência.

Villa-Lobos Superstar

 

Heitor Villa-Lobos, como todo grande criador, começou sua obra sob influência dos grandes mestres do estilo vigente à sua época (como Wagner e Puccini), para depois promover o rompimento com a obra acadêmica e criar uma linguagem inovadora, própria e única. Incorporando elementos do folclore, de cantos populares e da cultura indígena à música instrumental (solo, de câmara ou sinfônica), abraçou as questões mais relevantes do modernismo, dando uma nova dimensão à chamada música nacionalista e colocando a música brasileira no cenário mundial. E em toda sua história, o compositor nunca percorreu um caminho linear – explorou várias possibilidades estilísticas e brincou com as mais inusitadas combinações de instrumentos, sempre de forma livre e em constante evolução.

 

Composto hoje por alguns dos maiores músicos brasileiros da atualidade (Rodolfo Stroeter, Paulo Bellinati, Nelson Ayres, Ricardo Mosca e Teco Cardoso), o grupo Pau Brasil sempre teve como objetivo pesquisar novas formas para a música instrumental brasileira. Desde sua criação em 1979, a releitura de gêneros e estilos e o cruzamento entre o tradicional e o contemporâneo para a criação de um repertório ‘visceralmente brasileiro’ são parte intrínseca de sua identidade – e, junto com a excelência técnica, a elegância na interpretação e o bom gosto na definição do repertório, fizeram do grupo uma referência na música instrumental brasileira, com reconhecimento internacional. Além de composições autorais, o Pau Brasil tem (re)leituras de Baden Powel, Jobim, Moacir Santos e Hermeto, entre outros, e de suas parcerias musicais fazem parte nomes como Gilberto Gil, Monica Salmaso, Naná Vasconcelos e Toots Thielemans, passando por Osesp e Jazz Sinfônica.

 

No início de 2012, o Pau Brasil lançou o excepcional ‘Villa-Lobos Superstar’ (em parceria com o quarteto de cordas Ensemble SP e com participação da voz de Renato Braz). Com magníficos arranjos de Ayres e Bellinati, o álbum traz uma releitura sensível de obras como as Bachianas Brasileiras nº 4 (Prelúdio e Cantiga) e nº5 (completas), além de várias outras canções, todas em belíssimas e emocionantes interpretações. E a surpreendente inserção de um quarteto de cordas numa formação tradicionalmente jazzística, acrescida dos pontos de luz criados pela voz de Renato Braz, conferem ao ao álbum uma linguagem como a de Villa-Lobos: inovadora e única.

 

Ao reler Villa-Lobos com tanta competência, o Pau Brasil não apenas demonstra conhecimento acerca da obra do compositor, mas sobretudo a leva adiante, na medida em que, como o próprio Villa-Lobos faria, afirma seu apreço à história, revela seu talento para a inovação e reitera sua vontade de evoluir sempre.

 

Para saber mais: http://www.grupopaubrasil.com.br

 

Esqueça todos seus clichês

ZAZ

 

Uma voz doce e rouca que canta com entusiasmo e simplicidade de menina, mas atitude e competência de mulher.

 

O canto inovador de Isabelle Geoffroy – ou Zaz, como é conhecida – é uma tradução musical do mundo contemporâneo, onde fronteiras entre oriente e ocidente, tradição e inovação, acústico e eletrônico já não se distinguem, e nem fazem mais sentido. Com simplicidade, elegância e uma identidade muito própria, Zaz traz em sua música as mais diversas influências: do jazz ao blues, da tradicional música francesa aos cantos mouriscos, dos sons africanos ao ritmo latino. O resultado é potente: uma música inovadora, carregada de personalidade, emoção e alegria.

 

Seu primeiro álbum, lançado no início de 2010, ficou por meses entre os mais vendidos na Europa, e colocou Zaz entre as grandes revelações da música francesa contemporânea. Sua canção de mais sucesso, ‘Je veux‘, traz o arroubo e o frescor da juventude, em sua ode à liberdade e sua crítica aos padrões estabelecidos na sociedade de consumo. Romantismos e contradições à parte, num cenário musical permeado por lugares-comuns, ouvir uma voz poderosa e bem humorada como a de Zaz cantando ‘oubliez tous vos clichés‘ é um delicioso e divertido prazer.

 

O mesmo álbum traz um belíssimo cover de ‘Dans ma rue‘, originalmente gravada pela grande voz rouca da música francesa, Edith Piaf. E se na voz de Piaf a canção era lindamente noturna e melancólica, na voz de Zaz adquire outra forma beleza – agora, solar e vibrante, mesmo com a tristeza presente na história que se canta.

 

Em mais uma prova de seu talento, Zaz corajosamente regravou ainda em ‘Recto Verso‘, seu álbum segunte, a famosa ‘La Vie en Rose’, talvez o maior sucesso de Piaf – reiterando não apenas sua competência musical, mas também sua capacidade de conferir frescor e imprimir sua forte personalidade artística a uma das canções mais reproduzidas da história da música francesa (e mundial).

 

C’est ça: oubliez les cliches – et vivre la différence!

 

Para ver e ouvir: https://www.youtube.com/watch?v=qIMGuSZbmFI

 

Para saber mais: http://www.zazofficial.com

Ouvindo a própria voz

Bobby McFerrin :: photo Carol Friedman

 

‘É isso que você quer fazer? É desse jeito que você imagina explorar a música?’

 

Bobby McFerrin conta que, ainda jovem, impactado ao ouvir o trabalho que Keith Jarrett fazia ao piano, eram essas as perguntas que vinham à sua mente. A vulnerabilidade de uma pessoa sozinha num palco sempre o tinha fascinado, e ele se perguntava se seria capaz de, como Jarrett, captar a essência de uma música, de suas harmonias, e de captar a sua própria essência – para então, ao cantar, fazê-lo como Jarrett fazia ao piano: com sua verdade e à sua maneira, pessoal e única.

 

Foram quase três anos reclusos, sozinho, cantando, gravando, ouvindo e (re)conhecendo sua própria voz. Durante os dois primeiros, Bobby sequer ouvia outros cantores – temia ser influenciado por algum outro jeito de cantar, e acreditava que isso o distanciaria dele mesmo. Precisava descobrir-se, saber e ter propriedade sobre o som que emanava, conhecer e explorar as possibilidades da própria voz.

 

Também a capacidade de improvisação era para ele um desafio a vencer. Queria descobrir o prazer de se manter em movimento sem saber exatamente aonde chegar… deixar-se ir como uma criança, sem se pautar pelo controle dos conhecimentos teóricos. E então passou outros tantos anos exercitando seu próprio jeito de improvisar – nas palavras dele, ‘exercitando a superação do medo de improvisar, do medo de assumir riscos, de parecer tolo e de não ter ideias suficientes’.

 

Hoje, mais de trinta anos depois, Bobby McFerrin é (re)conhecido em todo o mundo como um dos maiores talentos da música contemporânea. Além da genialidade musical, em cada nota que sua voz emite, e em cada gesto seu, transparecem também uma naturalidade e uma elegância raríssimas, decorrentes da perfeita harmonia existente entre o que faz, o que aparenta e quem verdadeiramente é.

 

A verdade de Bobby McFerrin pode ser também uma alegoria para cada um de nós. Afinal, ser e saber-se único, ouvir a própria voz, expressar sua essência, não temer o desconhecido e experimentar a alegria de se manter em movimento… nada é mais belo, elegante e prazeroso. E é isso o que realmente importa.

 

Para saber mais: http://bobbymcferrin.com/

 

Para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=ktotbE4rN2g (entrevista)

O planeta blue na estrada do sol

 

Esse é o título de um show acústico que Milton Nascimento apresentou no Teatro de Cultura Artística, em São Paulo, em outubro de 1991. Foram apenas 3 apresentações que, gravadas, deram origem a um álbum de mesmo nome, infelizmente muito pouco conhecido do público e, hoje em dia, fora das prateleiras e das plataformas de streaming.

 

Na maioria de seus trabalhos, Milton sempre privilegiou a interpretação de suas próprias composições. Nesse, diferentemente, coloca-se como intérprete, cantando e tocando (violão, piano e sanfoninha) canções de outros compositores – das 11 que compõem o cd, apenas quatro são de sua autoria. E é nessa surpresa que reside um enorme encantamento.

 

O cantar de Milton transcende qualquer expectativa. Músico de sensibilidade ímpar e dotado de uma voz cristalina, suas interpretações são tão apaixonadas quanto apaixonantes. Com total domínio técnico e extrema propriedade no uso da emoção, Milton faz emergir, de maneira surpreendente e arrebatadora, a essência de cada composição. Como resultado, nos chegam  como inéditas canções que antes julgávamos conhecidas.

 

O que canta em Milton não é apenas sua voz – é, sobretudo, sua alma. E cada palavra que ele entoa chega também à nossa alma, na exata medida do prazer que uma canção pode e deve proporcionar às pessoas.

 

Para degustar: Hello Goodbye (Lennon & McCartney)

Feitiço

 

‘A cidade enfeitiçada’ foi a primeira música de Paulo Gusmão que ouvi. Tal foi meu encantamento – pelo título inspirador, pela composição sublime e por seu arranjo tão sofisticado – que logo decidi buscar informações sobre o compositor que até então desconhecia.

 

O título da música batiza também seu respectivo álbum – uma ode ao Rio de Janeiro, lançada em 2009. Não menos inspiradores são os títulos das outras faixas que ali encontramos: ‘Flor de outono’, ‘O brilho do vagalume’, ‘Sua silhueta sutil’… sem falar em ‘Romance em Vila Humaitá’, delicadamente desmembrada em três atos. São quinze composições cativantes, que encantam e emocionam. Melodias e harmonias que chegam aos nossos ouvidos com leveza e suavidade, parecendo flutuar. Arranjos que estabelecem diálogos sutis entre sanfona, flauta, violão e outros instrumentos, como se cantassem uma história – e o ouvinte se sente imerso na atmosfera do cinema, invadido por imagens carregadas de graça e elegância.

 

Nascido na capital paulista, Paulo iniciou-se na música aos quinze anos. Estudou violão, guitarra, piano, flauta, baixo elétrico e canto, além de ter se dedicado também a percepção, harmonia, arranjo e orquestração. Instrumentista e compositor, já teve suas composições interpretadas por diversos corais, grupos, orquestras e bailarinos. Seu mais recente trabalho, lançado em 2020, o compositor volta à Cidade Maravilhosa, reafirmando sua personalidade em narrativas que sopram como a brisa – evoca Tom Jobim, a leveza tropical, amores românticos, encontros e despedidas, musicando lindamente o que diz o título do álbum: ‘O tempo que foi’.

 

‘A cidade enfeitiçada’, e toda obra de Paulo Gusmão, são o próprio feitiço – um encanto irresistível, magnético, fascinante. Música instrumental brasileira e contemporânea de altíssima qualidade, que toca o ouvido com doçura, a alma com beleza, e nos enche de imenso prazer.

 

Para conhecer e ouvir: www.paulogusmao.com.br.