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Tempo, tempo, tempo

Robert Rauschenberg :: ‘Third Time’, 1961 :: ©Robert Rauschenberg Fondation

 

As mitologias tiveram papel fundamental na construção das culturas ocidentais. Com suas histórias sem começo, meio ou fim, sem tempo e sem lugar, elas desprezam os limites exigidos pela racionalidade e permitem que nos apropriemos de suas narrativas, colocando-as em nosso tempo e nosso lugar. Mitos não são fatos – eles ‘acontecem’ dentro (e fora) de nós, celebrando o eterno por meio do temporal, o permanente por meio do circunstancial, o absoluto pelo fragmentado, o necessário pelo contigente. É por sua verdade psicológica, e não pela histórica, que os mitos têm tamanha capacidade de adesão.

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Escrevo este texto em abril de 2020, no dia em que completo trinta dias em isolamento em função da pandemia da Sars-Covid-2019. São trinta dias com o cotidiano de atividades, deslocamentos, interações e escolhas totalmente alterado. No decorrer desse período, muitas vezes me peguei refletindo sobre o tempo – o tempo imposto e o desejado; o tempo das coisas, o do outro, o meu tempo; o tempo de agora, o passado e o futuro; o tempo fugaz e o infinito. O tempo.

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Na mitologia grega, a primeira referência a Tempo é representada por Aion, um ser incorpóreo, serpentino, que pulsa em contração e expulsão como numa respiração cósmica e infinita. Aion casa-se com Ananké (Necessário) e juntos botam o ‘ovo do mundo’, simbologia para a inevitabilidade do destino – tudo o que existe é filho do Tempo; por trás de tudo que ‘é como é’ (o Necessário) está uma pulsação (o Tempo), determinando que tudo aparece para depois desaparecer.

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Se Aion é o tempo cíclico e imensurável, Cronos é a representação do tempo linear e quantitativo. Filho de Gaia (Terra) e Urano (Céu), e responsável pela separação dos pais1, ele se casa com sua irmã Rheia (Fertilidade) e juntos geram seis filhos. Temendo ser destronado pelos descendentes, Cronos devora cada um logo após seu nascimento – apenas Zeus (Ordem e Justiça) é salvo pela mãe, que engana o marido ao lhe entregar uma pedra embrulhada como se fosse o caçula. Adulto, Zeus obriga o pai a ingerir uma poção mágica, que o faz vomitar os filhos deglutidos.

 

Cronos é o devorador do destino – aquele que tanto gera quanto destroi. Uma representação para a ideia de que tudo nasce do tempo, e nada resiste a ele.

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A terceira referência ao Tempo encontrada na mitologia grega é Kairós (Momento Certo/Momento Oportuno). Filho de Zeus (que, depois de derrotar o pai, torna-se Deus dos deuses) e Tyche (Sorte), é dotado de uma beleza estonteante e representado com asas nos pés e nas costas. Simboliza o tempo psicológico, volátil, ligeiro, o tempo da oportunidade e da mudança. É um tempo qualitativo, circular e não mensurável; o tempo da criação, rápido, efêmero.

 

Kairós é associado também à eternidade (soma de todos os tempos, onde estão todas as oportunidades), à sabedoria (o tempo aproveitado), a Eros (pois a oportunidade seria um ato amoroso do destino para conosco) e a Dionísio (na representação da alegria de estar vivo).

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Por fim, os gregos nos trazem ainda o mito de Acme (Apogeu) como outra referência ao Tempo. Uma das Horas – as filhas de Zeus e Themis (Justiça) que eram deusas do ano, das estações climáticas e da ordem natural da vida –, Acme é a simbologia para o tempo da maturidade: o ápice, o momento máximo de uma vida.

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A ideia de um tempo dividido em três – passado, presente e futuro – se impôs às civilizações ocidentais a partir do século VIII, com a consolidação das crenças judaico-cristãs. No entanto, apesar da universalidade presente em suas diversas simbologias, o tempo não teve a mesma percepção ou compreensão em todas as culturas. Algumas sociedades viveram sob a égide do tempo recursivo, em que o presente tinha por objetivo honrar o passado e a memória, dignificando os ancestrais. Outras tiveram uma concepção cíclica do tempo, segundo a qual nada desaparece – tudo retorna dentro de uma ordem maior, que fornece uma previsibilidade incompreensível mas com a qual é necessário estar em harmonia.

 

Hoje, vivemos um tempo cronológico entendido como linha reta e pensado como flecha. Mesmo que com diferentes contagens (cristãos, muçulmanos e judeus, por exemplo, guiam-se por calendários discordantes), toda a concepção de tempo está projetada para um espaço que não se habita. É uma trajetória em direção ao futuro, ao que ainda não existe nem existiu no passado. Por termos esse entendimento, buscamos antecipar o que ainda não aconteceu – ansiedade, tentativas de controle e imediatismo no usufruto do prazer decorrem dessa forma de compreensão do tempo.

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Muito tem se falado sobre como a sociedade vai se comportar após a pandemia. São diversas as perguntas: Como será o mundo pós-Covid-19? Que mudanças faremos? Como lidaremos com nosso cotidiano, com nossos afetos, com o consumo, a natureza, a espiritualidade? No entanto, talvez a indagação mais importante seja outra: como será nossa relação com o tempo?

 

Não acredito que simples mudanças de comportamento possam fazer surgir um mundo diferente,’pós-Covid-19. Para que se mude um percurso, é preciso mudar a cartografia, o modelo de percepção da realidade. Enquanto entendermos o tempo presente apenas como uma ponte entre passado (memória) e futuro (expectativa), nada irá mudar – continuaremos a caminhar ansiosos, sendo devorados por Cronos e ignorando Kairós, o tempo qualitativo capaz de conferir significado à nossa existência.

 

O tempo vale pela forma como está preenchido. Há momentos que não têm nenhuma importância, e outros que dão sentido à vida, por magníficos que são. Cabe a nós, todos e cada um, transformarmos nossa relação com o tempo de forma a desenhar um novo percurso. Assim, quem sabe, seremos capazes de perceber a beleza e a oportunidade que existe em cada instante, e preenchê-los com sabedoria e amor, conscientes de sua efemeridade e alegres pelo simples fato de estarmos vivos.

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1   Segundo o poeta grego Hesíodo (aprox. 750-650 a.C.), o princípio é o Caos, e dele surgem Gaia (a Terra), Tártaro (a Abismo), Eros (o Amor), Érebo (as Trevas) e Nix (a Noite). Gaia gera sozinha as Óreas (Montanhas), Ponto (o Mar) e Urano (o Céu) – este, seu igual, para ser quem que a cobriria completamente e com quem criaria um lar eterno para os deuses -bem-aventurados’.

 

Gaia e Urano geram dezoito criaturas, sendo doze titãs e Cronos o mais novo e terrível deles. Porém, capaz de prever o futuro, Urano passa a temer o poder dos filhos e decide encerrá-los de volta no ventre da mãe. Gemendo de dor e sem poder parir, Gaia implora aos titãs que libertem os irmãos e se vinguem do pai, mas apenas Cronos aceita a missão. Ela então retira aço de seu peito e, com ajuda de Nix, faz uma foice dentada e dá ao filho. Este se esconde, esperando a chegada da noite, quando seu pai mais uma vez descerá para cobrir a esposa. Surpreendido por Cronos, que o ataca e castra, Urano (Céu) é separado para sempre de Gaia (Terra).

Minha cidade, meus caminhos

©Cássio Vasconcellos :: séria aéreas #1 2010-2014 :: São Paulo #4

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nasci e vivo em São Paulo, dirijo (e gosto de dirigir) há mais de trinta anos, e há algum tempo venho me percebendo na contramão da grande maioria dos motoristas de minha cidade. Explico: não sou usuária do Waze. Aliás, não tenho nenhum apreço pelo aplicativo, e por vários motivos. Primeiro, por uma enorme dificuldade em obedecer a comandos: ‘Em 300 metros, vire à direita.’ ‘Vire à direita’. Não sei consigo lidar com o imperativo.

 

Depois, minha formação em arquitetura e urbanismo me fez desenvolver uma relação carinhosa com mapas e guias de rua. Gosto de ler, analisar, deduzir a geografia, estudar possibilidades de caminhos, imaginar as paisagens… Conheço razoavelmente a cidade, ou pelo menos as regiões pelas quais circulo, e tenho um mapa mental dessas áreas bastante detalhado. Quando preciso me deslocar por outras, desconhecidas, consulto previamente a cartografia digital, estudo as associações entre caminhos capazes de me conduzir ao endereço inédito, e me lanço ao desconhecido. Sim, há nisso uma certa aventura, um risco (calculado) de me perder… mas a sensação de plenitude ao desbravar ruas e avenidas até então estrangeiras é, para mim, indescritível – sinto como se me apropriasse cada vez mais desta minha cidade.

 

Por fim, eu e Waze temos diferentes pontos de vista sobre o deslocamento: ele pensa o deslocamento pelo critério da rapidez, eu penso pelo critério da beleza (e também pelo da memória afetiva). Enquanto ele se preocupa em não ‘perder’ um minuto a mais no trânsito, eu me preocupo em qualificar os minutos que, já sei, necessariamente serão dispendidos em meu trajeto.

 

São Paulo é uma megalópole com um modelo de mobilidade ainda calcado em veículos individuais motorizados e sistema de transporte público extremamente deficitário. Qualquer deslocamento por automóvel leva sempre mais tempo do que deveria (ou gostaríamos), e lutar contra essa realidade só aumenta nosso nível de stress. Ou seja, fato posto, é preciso lidar com ele – e da melhor maneira possível.

 

Se a cidade oferece um trânsito superlativo e caótico, por outro oferece também imagens capazes de alegrar, surpreender e emocionar. Uma avenida com árvores centenárias; diversos prédios e diferentes arquiteturas; a rua onde morava o primeiro namorado; a outra, por onde caminhava ao levar os filhos à escola. O que se ganha em prazer, não há dúvida, é muito mais relevante do que os minutos economizados em caminhos mais rápidos.

 

E há ainda uma imensa satisfação ao experimentar a cidade que habitamos. Lembrando Calvino, ‘cidade não é apenas um conceito geográfico, mas um símbolo complexo e inesgotável da experiência humana’. Percorrer suas ruas, (re)conhecer cruzamentos, deduzir traçados, descobrir histórias, perder-se e (re)encontrar-se – é também nisso que reside a riqueza da vida urbana. Cruzar a cidade como autômato, obedecendo a comandos de virar à esquerda ou à direita sem se relacionar com esses espaços, e sem interrelacioná-los, é escolher um caminho reducionista – não apenas para o deslocamento, mas também para a vida.

 

Permita-se. Desfrute. Caminhar por São Paulo não pelo trajeto mais rápido, mas por aquele capaz de falar com sua alma, é uma experiência transformadora. Paisagens, sons, cores, formas, cheiros; por meio dos sentidos, é possível acionar a memória, resgatar vínculos, refazer caminhos, lembrar sua história. É possível também tornar-se mais próximo, mais íntimo da cidade – descobrí-la como àquele amigo que, quanto mais perto está, mais querido se faz.

 

Acredite: percorrer a cidade dessa maneira é bem mais prazeroso e enriquecedor do que obedecendo a um robô autoritário, que sequer vive aqui.

Diálogo sensível

Tapio Wirkkala :: Lehti :: 1951

 

A ideia do belo como algo indiscutível, reconhecido como tal a qualquer tempo e por qualquer cultura, permeia desde sempre o imaginário humano. Da matemática das proporções na Grécia Antiga ao conceito contemporâneo de liberdade e pluralidade, a busca do homem por entender e construir a beleza absoluta esteve presente todo o tempo (sobre o tema, disserto um pouco mais em meu texto ‘A beleza da imperfeição‘).

 

Nesse percurso, a natureza se impôs como grande espelho. O entendimento universal de que a ela seria intrínseca a perfeição (e, portanto, a beleza) fez com que suas formas, cores e texturas fossem incessantemente estudadas e copiadas, não apenas no campo das artes, da arquitetura e do design, mas também no da matemática e no das ciências.

 

Um dos grandes estudiosos da natureza no século XX foi Tapio Wirkkala, o principal nome do design finlandês. Embora tenha viajado muito ao longo da vida, representando seu país em inúmeras exposições e premiações pelo mundo, era nas florestas do interior da Finlândia que o Wirkkala passava a maior parte de seu tempo. Em meio à natureza, sua personalidade contemplativa e reservada encontrava inspiração – as folhas das árvores, as espirais das conchas, os blocos de gelo e as formas de pássaros e peixes eram temas para seu trabalho.

 

Nascido em Häggo em 1915, desde muito cedo Wirkkala demonstrou excepcional habilidade com as mãos e grande talento para desenho. Aos 15 anos começou a estudar escultura e aos 30, já trabalhando como ‘artista comercial’, obteve o primeiro lugar em um concurso de design em vidro promovido pela iitala – premiação essa que inaugurou uma sólida parceria profissional com a empresa, que duraria até sua morte, em 1985.

 

A consagração mundial veio em 1951, quando, na Trienal Internacional de Milão, Wirkkala recebeu três Grand Prix: um por seu desenho para o Pavilhão Finlandês na própria mostra; outro, para o vaso de vidro ‘Kantarelli‘; e outro ainda para ‘Lehti‘ (‘folha’, em finlandês), um de seus primeiros trabalhos em madeira compensada. No mesmo ano, ‘Lehti‘ recebeu também o importante Lunning Prize, e foi considerado o objeto mais belo do mundo pela conceituada revista americana House Beautiful.

 

Versátil, hábil, curioso e extremamente produtivo, Wirkkala exercitou seu talento nos mais diversos materiais – além de vidro e madeira, trabalhou com metal, cerâmica, plástico e papel. Costumava dizer que ‘os materiais têm suas próprias leis, não escritas‘, e que o designer deveria entender essas leis para ‘estar em harmonia com o material que escolhe’.

 

E talvez seja a (perfeita) harmonia o grande diferencial da obra do artista. Não bastasse o profundo entendimento dos materiais, sua relação com as formas da natureza era tão íntima que lhe possibilitou traduzir o universo rural de seu país em objetos extremamente belos e elegantes, cujos desenhos esculturais são também uma lição de funcionalidade e estrutura. Na obra de Wirkkala, a forma não é apenas um objetivo estético – nasce naturalmente do diálogo sensível entre olhos, pensamento, mãos e material.

 

Hoje, suas criações estão presentes nos principais museus e coleções de todo o mundo, assim como muitos dos utensílios que desenhou continuam a ser produzidos em larga escala, permeando milhares de residências ao redor do planeta. Por meio das mãos de Tapio Wirkkala, talvez o ser humano tenha finalmente conseguido construir o belo absoluto, indiscutível e atemporal – mesmo que seja esse um espelho da natureza.

Forma, função e fantasia

Stacking Vessels :: ©Utopia&Utility

 

‘Nosso propósito é enriquecer a vida por meio da beleza.’

 

A frase de Pia Wüstenberg traduz precisamente o que sentimos quando nos deparamos com alguma de suas criações: como num sopro, a vida se enche de beleza e encantamento.

 

Designer de produtos com formação no Royal College of Arts, em 2012 Pia fundou, juntamente com seu irmão Moritz, a Utopia&Utility, uma empresa que cria e produz objetos utilitários e decorativos de altíssimo valor estético – e que carregam também em si um enorme valor ético.

 

Por meio de seus projetos, Pia e Moritz buscam (re)valorizar o que eles chamam de habilidades tácitas – aquele conhecimento específico, profundo e apaixonado que os verdadeiros artesãos têm pelos materiais com o quais trabalham e pelo seu ofício. Com criações que invariavelmente unem materiais tradicionais e diferentes entre si (como vidro, metal, madeira ou cerâmica), eles trabalham com uma rede de artesãos espalhados por toda a Europa. No processo de produção, cada peça viaja por diversas pequenas oficinas, passando por inúmeras mãos talentosas e especializadas antes de chegar ao armazém da empresa, na Alemanha.

 

Não bastasse resgatar a tradição dos artífices e, por meio de seu modelo de negócio, promover o crescimento econômico de pequenas oficinas, a Utopia&Utility insere um pensamento inovador em seus objetos, capaz de transformar por completo a convencional percepção que teríamos acerca deles. Além dos impactantes contrapontos (peso versus leveza, opacidade versus transparência, rusticidade versus polidez), resultantes das inusitadas justaposições entre diferentes materiais, as formas elegantes, os encaixes precisos, as belíssimas combinações de cores e texturas e os acabamentos inesperados imprimem a cada objeto a força de uma obra de arte, manufaturada e única.

 

Por fim, muitas dessas peças nos convidam ainda a uma interação – um jogo lúdico por meio do qual, ao separar cada uma das partes que a compõem, nos surpreendemos com novos objetos, cada qual igualmente belo e íntegro em sua forma, projetado inclusive para abarcar outras funções.

 

Ao reunir, na estruturação de seu trabalho, imperativos éticos e estéticos de uma maneira tão orgânica e equilibrada, Pia e Moritz resgatam o conceito platônico de beleza: cada um de seus objetos, ao proporcionar tal prazer e arrebatamento, nos fala diretamente à alma e se coloca como um ‘esplendor da verdade’.

 

Para saber mais, acesse www.utopiaandutility.eu

Cantando os espaços, construindo a canção

Zaha Hadid :: JS Bach Chamber Music Hall, Manchester, UK :: photo ©Luke Hayes

 

Vem de longe a busca de filósofos, historiadores e teóricos pelo estabelecimento de uma conexão entre música e arquitetura. Dois mil e quinhentos anos atrás, Pitágoras já havia conceituado a harmonia matemática como peça fundamental para explicar toda a criação, a existência e a operação do universo. Segundo o filósofo grego, a ‘relação agradável de proporções’ faria com que todas as coisas vibrassem numa grande harmonia universal, assim como as notas numa música.

 

Algumas dessas relações de proporções estabelecidas por Pitágoras acabaram definindo relações espaciais canônicas da arquitetura clássica, assim como definiram também os ‘modos’ musicais predominantes até a Idade Moderna. Na arquitetura e na música ocidentais, a beleza de uma obra, durante séculos, foi pautada pelo conceito pitagórico de harmonia entre seus elementos.

 

Esse entendimento começou a ser questionado, na música, a partir surgimento do sistema tonal, que possibilitou a exploração de outras relações de proporção e intervalos, antes considerados desarmônicos e, portanto, incorretos. Da tonalidade, a música caminhou para a atonalidade, até chegar à sua dissolução e à dodecafonia, com criadores como Schoenberg e John Cage.

 

Paralelamente, as mudanças sociais e políticas decorrentes da ascensão da burguesia na Europa acenderam o desejo de libertação das regras formais do classicismo e a busca por uma expressão individual e pela inovação, permitindo o surgimento de uma nova arquitetura – que, rompendo o compromisso com a simetria e as relações de proporções antes definidas como belas (corretas), culminou, séculos depois, em experências como as de Frank Gehry ou Daniel Liebeskind. Hoje, a noção do belo – seja na música, seja na arquitetura – está pautada por novos e diversos conceitos.

 

Cada qual à sua maneira, música e arquitetura são composições estéticas que resultam da associação entre diferentes elementos, organizada e regida segundo determinados princípios. Altura, extensão, proporção, alternância, repetição, arranjo, ritmo, intensidade, densidade, textura, contraste, harmonia, equilíbrio, tensão… são todos constituidores de uma obra musical, e também constituidores de uma obra arquitetônica. A qualidade da obra, bem como sua beleza, decorre do conhecimento, da competência e da sensibilidade de seu autor no entrelaçar desses elementos.

 

Se, ao longo da História, arquitetura e música revelam ter percorrido trajetórias paralelas (e não apenas no que diz respeito à evolução do conhecimento, mas também em suas respectivas relações com a sociedade), atualmente parecem estar seguindo caminhos divergentes: se por um lado a qualidade em uma obra de arquitetura vem sendo socialmente cada vez mais percebida e exigida, por outro parece não importar que nossa produção musical esteja cada vez mais desprovida de atributos. Hoje, perseguimos e exaltamos a qualidade e a beleza de casas, edifícios, teatros e arenas, mas está fora da pauta discutir a qualidade e a beleza da música executada nesses espaços.

 

Em algum momento, nossa sociedade deixou de entender a música como composição estética, relegando-a simplesmente ao território do entretenimento. Uma pena. Ao prescindir da qualidade e da beleza em nossa produção musical, estamos dia a dia perdendo a oportunidade de ampliar nosso conhecimento, nossos prazeres e o sentido de nossa existência.

Simplicidade e estilo

Elsa Peretti :: Vogue, 1974 :: photo by Duane Michals

 

Falecida em março de 2021 aos oitenta anos, Elsa Peretti foi sem dúvida a maior responsável pela imagem contemporânea da Tiffany & Co.. Desde sua primeira coleção para a marca, em 1974, a designer italiana criou belíssimos objetos e jóias que se caracterizam por uma simplicidade orgânica e por uma indiscutível elegância formal – atributos que mantiveram suas peças entre as mais vendidas da companhia por quase cinquenta anos.

 

Italiana de Firenze, Elsa desde muito cedo revelou seu espírito criativo, curioso e livre. Filha de um magnata da indústria do petróleo, ainda jovem distanciou-se dos pais conservadores ao passar um tempo na Suíça, lecionando italiano e ski. De volta à Itália, formou-se em design de interiores em Roma e, após romper um tradicional noivado, mudou-se para Milão e começou a trabalhar com o arquiteto Dado Torrigiani. No ano seguinte, 1963, mudou-se para Barcelona e iniciou carreira como modelo, ao mesmo tempo em que mergulhou no fascinante universo dos artistas e arquitetos catalães – em especial no de Gaudí, uma declarada influência. Fascinada pelas formas esculturais, viajou ao Japão e a Hong-Kong para imergir na arte e no simbolismo asiático; por fim, em 1968, emigrou para os Estados Unidos e foi viver em Nova Iorque (segundo ela, o melhor lugar para desfrutar da juventude naqueles anos).

 

Foi desfilando para Halston, Sant’ Angelo e De La Renta que Elsa começou a se interessar  pelo design de jóias e acessórios. Com seu jeito rebelde, o olhar refinado de esteta e a proximidade com o mundo da moda, rapidamente entendeu que a linguagem que estava surgindo no design de roupas (caracterizada pela aliança entre conforto, praticidade e sensualidade) deveria permear também os complementos do vestir. Começou então a modelar em cera formas abstratas, simples e orgânicas, inspiradas na natureza; depois, fundindo-as em prata, fazia delas belíssimas peças, atraentes pelo design clean e inovador e pela primorosa execução. Do primeiro colar ao contrato com a Tiffany foram apenas cinco anos – e no lançamento da primeira coleção para a famosa joalheria, suas peças já estavam todas esgotadas.

 

Elsa Peretti costumava dizer que sua obra vinha de sua vida. E não há dúvidas de que cada uma de suas criações reflete um jeito de ser e de ver o mundo: sua paixão pela natureza, de cujas formas se apropriava para depois reinventá-las; sua incansável curiosidade, que a movia em pesquisas acerca dos mais diversos materiais e processos de produção; a devoção ao artesanato, que fez de cada uma de suas criações resultado de um árduo e investigativo trabalho manual; e a eterna rebeldia, que manteve acesa em sua alma, e até o fim de seus dias, a chama do questionamento.

 

Ainda hoje, não há modelo mais perfeita para as peças de Elsa Peretti do que ela mesma. Estilo (que, segundo a própria designer, não condiz com excessos), beleza, simplicidade, competência, elegância e personalidade – para ver, usar, admirar e aprender.

 

Para saber mais:

http://elsaperettidesign.blogspot.com.br

https://www.tiffany.com.br/world-of-tiffany/about-elsa-peretti/

Inovando nossa história

Fábio Galeazzo :: Mosaico :: Conspiração BR :: 2012

 

Segundo alguns historiadores, o primeiro registro da azulejaria no Brasil data de cerca de 1620, quando peças de cerâmica vidrada vieram de Portugal para ornamentar o Convento de Santo Amaro de Água-Fria, em Olinda. A partir de então – seja pela força com que representava a cultura da metrópole, seja por sua beleza plástica ou por suas características de conforto térmico (bastante adequadas ao nosso clima) –, o azulejo foi sendo cada vez mais incorporado às construções brasileiras.

 

Presentes inicialmente em painéis nas edificações de uso religioso ou governamental, em poucas décadas as belíssimas peças passaram a ser importadas não apenas de Portugal, mas também da França e da Holanda (países que tinham em sua produção de azulejos importante forma de expressão artística) e começaram a revestir também fachadas de construções urbanas.

 

Ainda no final do século XIX, o azulejo começou a ser produzido no Brasil – mas foi a partir do início do século XX nossa produção tornou-se regular. E muito embora nesse período alguns arquitetos tenham abandonado o uso desse material (numa rejeição a elementos representativos do período colonial), o movimento moderno brasileiro, preocupado em ‘casar tradição com modernidade e fazer dos materiais nacionais e tradicionais ponte entre o colonial e a vanguarda’ *, (re)incorporou o azulejo à sua arquitetura. A partir desse momento, a azulejaria nacional passou a ser uma forte expressão artística de nossa própria cultura, por meio da qual se representavam, junto a formas geométricas, elementos de nossa paisagem, nossa fauna e nossa flora.

 

Sob essa perspectiva histórica, os azulejos desenhados pelo designer Fábio Galeazzo e produzidos pela Azulejaria Brasil (Cerâmica Antigua) ganham dimensão ainda maior. Numa coleção batizada de Conspiração BR (20 estampas subdivididas em 4 temas), Galeazzo resgata e relê, com maestria, um dos mais importantes elementos de nossa arquitetura.

 

Da escolha do formato (15cm X 15 cm, o mais tradicional em nossa produção), passando pela definição dos temas (que vão das imagens presentes na Festa do Divino às estampas tradicionalmente encontradas na chita brasileira) até a montagem da paleta de cores, Galeazzo revela profundo conhecimento, extrema sensibilidade e uma enorme capacidade de inovação, e obtém resultados plásticos de beleza incontestável.

 

Aliando domínio técnico e teórico, sensibilidade e talento, Galeazzo demonstra que o design de interiores pode, sim, a um só tempo, ser inovador e contar história, ser lúdico e propagar cultura – sem deixar de proporcionar beleza aos ambientes, prazer aos olhos e conforto à alma.

 

Para saber mais:

https://fabiogaleazzo.com.br/portfolio/conspiracao-br/

http://www.antigua.com.br/

 

* Marcele Cristiane da Silveira, “O Azulejo na Modernidade Arquitetônica”, dissertação de mestrado, FAUUSP, 2008.

Múltiplas escolhas

Pantone guide :: ©Pantone.com

 

Catálogos referenciais vêm sendo utilizados desde o século XVI como instrumentos de trabalho por todas as áreas das artes decorativas. Tendo como finalidade experimentação, documentação, comercialização ou divulgação, são peça dotadas de uma beleza muito particular pois, reunindo inúmeras possibilidades de cores, desenhos, formas ou texturas, trazem aos olhos a percepção da variedade – e, fazendo-o dentro de certa ordem criteriosa, possibilitam relfexão, compreensão e prazer. (Citando Montesquieu: ‘Não basta mostrar muitas coisas à alma: é preciso fazê-lo numa ordem, pois assim nos lembramos do que vimos e começamos a imaginar o que veremos; a alma assim se felicita por sua amplitude e sua capacitade de penetração.‘)

 

Sobre esse tema, em 2008 o Cooper-Hewitt Museum exibiu uma belíssima exposição chamada ‘Multiple Choices – From Sample to Product’ (‘Múltiplas Escolhas – Do Modelo ao Produto‘). Os itens expostos iam de catálogos de vendas com modelos de botões de uma indústria francesa no século XVIII, passando por placas cerâmicas com referências das cores das porcelanas de Sèvres, até os atuais Pantone® Guides – cadernos, livros e objetos de beleza ímpar, capazes de encher os olhos e tirar o fôlego.

 

O contato com o universo de cores, formas e suas infinitas associações é uma experiência multisensorial capaz de produzir os mais diferentes efeitos sobre nós. Resultantes das diferentes reflexões da luz que incidem sobre um objeto e chegam a nossos olhos para então serem decodificadas pelo cérebro, as cores provocam diferentes estímulos e sensações. Um mesmo elemento, bi ou tridimensional, que nos seja apresentado em diferentes cores terá sobre nós efeitos diversos – da alegria à tristeza, da calma à excitação. Um belo exemplo disso é o PantoneHotel, inaugurado em 2010 em Bruxelas. Convidando a ‘experimentar a cidade por meio da lente das cores’, o hotel atribuiu a cada um de seus 7 andares diferentes paletas cromáticas, objetivando assim proporcionar a seus hóspedes diferentes sensações – nesse caso, cuidadosamente estudadas para se converterem em diferentes prazeres.

 

Saiba mais em:

http://www.pantonehotel.com/

Fronteiras do design

Henzel Studio :: Olive Street nº4

 

Há objetos que, mesmo produzidos com alta tecnologia, segundo um projeto específico e em escala industrial, apresentam-se aos nossos olhos com a força das obras de arte, únicas e manufaturadas. Colocam-se na relação com o observador mais como ‘sujeitos’ do que como ‘objetos’, surpreendendo por sua originalidade, emocionando por uma beleza única e instigando por subverterem padrões existentes. Esses objetos nos tiram de uma certa zona de conforto e exigem de nós um novo olhar e uma nova reflexão sobre aquilo que pensávamos conhecer.

 

Os tapetes criados pelo Henzel Studio são assim – questionam, testam e transcendem fronteiras que, muitas vezes, ainda persistem entre design (nesse caso, de interiores) e arte. O ponto de partida é um novo olhar sobre esse objeto, tão conhecido (?) de todos nós… E o resultado é arrebatador.

 

Não há dúvida de que, sem excelência técnica e alta qualidade de materiais, seria impossível materializar em lã traços e cores que mais parecem ter surgido de pinturas, grafites e aquarelas. Mas se esses tapetes falam à nossa alma é porque, ainda antes da competência executiva, alguém se dedicou com alma a transformá-los em um novo meio de expressão. Para tanto, questionou o convencionalismo, subverteu padrões, usos e finalidades, e com isso redefiniu não apenas um novo universo de cores, imagens e tratamentos para esse objeto, mas também a relação que podemos estabelecer com ele.

 

Inquietude, inconformismo e paixão são ferramentas fundamentais para abrir mentes e corações, permitindo que nos lancemos ao novo. E toda alma precisa do novo – (re)descobrindo formas, cores, usos e relações, podemos criar e desfrutar, a cada dia, de novas fontes de beleza e prazer.

 

Para saber mais: www.byhenzel.com

Luz e alma

Coral Lamp :: ©davidtrubridge.com

 

A luminária Coral, criada pelo designer neozelandês David Trubridge, foi lançada em meados dos anos 2000. Na primeira vez que a vi, estava instalada em um ambiente intimista ao fundo de uma conhecida loja de decoração no Soho, em NYC, e o efeito de luz e sombras criado por seus cheios e vazios era arrebatador. Impactada pelo contraponto que parecia existir na essência daquele objeto, me perguntava como seria possível obter um resultado tão delicado e orgânico a partir da montagem de um quebra-cabeças cujas peças são todas idênticas, racionalmente projetadas e industrialmente (re)produzidas.

 

Graduado em arquitetura naval na Inglaterra, na década de oitenta Trubridge morou em um barco por 5 anos, navegando ao redor do mundo. A experiência o levou ao desenho e à produção de mobiliário (inicialmente para embarcações), e o que começou de maneira despretensiosa como um pequeno negócio de caráter artesanal já em meados dos anos noventa transformava-se em uma grande empresa de atuação global.

 

Acreditando na perenidade como atributo do bom design e na arte como propulsora do desenvolvimento humano, David Trubridge desenvolve projetos tendo como pilares a consciência ambiental, a simplicidade e a inovação, sempre buscando obter o máximo de efeito com o mínimo de material. Seus produtos são feitos de madeira proveniente de plantações de manejo sustentável da Nova Zelândia e dos Estados Unidos, e todo processo produtivo é pensado para causar baixo impacto ambiental (substituindo, por exemplo, solventes químicos por óleos naturais). Guiado por um forte instinto de preservação ambiental, e apaixonado pelo mar e por viagens, é nas estruturas e formas presentes na natureza que o designer, até hoje, busca inspiração para cada novo desenho.

 

Conhecer essa história nos permite compreender melhor o impacto provocado pelas peças  criadas por Trubridge. Elas nos tocam não apenas por suas belas formas ou por seu efeito visual, mas principalmente por sua verdade. São peças que têm alma: seu resultado estético está assentado sobre uma ética, e isso é algo que, inconscientemente, conseguimos perceber. Como? A alma, quando existe nas coisas, conversa diretamente com nossa alma – e é nessa conversa que residem as razões do gosto e do prazer que somos capazes de sentir.

 

Para saber mais: www.davidtrubridge.com