O feitiço da natureza

©Jé Shoots :: Pixels

 

Na cultura ocidental contemporânea, a ideia de Beleza está prioritariamente associada a aspectos formais, sejam de pessoas, objetos ou paisagens – é um atributo relacionado à aparência, percebido naquilo que é concreto, externo e visível. E embora seja cada vez mais valorizado e perseguido, é ao mesmo tempo considerado supérfluo.

Nem sempre foi assim. Ao longo da História ocidental, a ideia de Beleza mudou inúmeras vezes:  já pertenceu ao campo das ideias, na Antiguidade; adquiriu, na Idade Média, uma dimensão simbólica, vinculada ao divino; depois, com o Renascimento, foi inserida no plano da racionalidade, das proporções, da harmonia; e na Era Moderna, pós-revolução industrial, a ideia de Beleza passou a ter um caráter subjetivo, associada aos olhos de quem vê.

Muito antes dessas concepções culturais, no entanto, a Beleza sempre esteve intrinsecamente ligada à vida. As plumagens das aves, os grandes galhos dos veados e as cores de alguns insetos, por exemplo, são características determinantes para o acasalamento dentro das espécies. Peixes se iluminam para atrair suas parceiras, pássaros cantam, aranhas dançam… Plantas usam de cores e aromas para atrair insetos e garantir sua polinização. A Beleza sempre foi, na verdade, o mais eficiente conector entre os seres, e sem a resposta instintiva à ela ou à competição que dela resulta, a vida em nosso planeta teria sido muito diferente. Portanto, Beleza não é algo supérfluo, nem apenas questão cultural, ou categoria filosófica, prerrogativa das artes… nas palavras do médico José Romão Trigo de Aguiar, “Beleza é o feitiço da natureza para preservar a vida”.

O conceito de Beleza, então, seria inato, e não cultural? Segundo Edgar Morin, sociólogo e filósofo francês, “somos seres 100% biológicos e 100% culturais”. Mas enquanto plantas e animais são principalmente controlados por sua biologia, o comportamento humano é em grande parte determinado pela cultura – um sistema autônomo de símbolos e valores que tem origem em uma base biológica mas se afasta indefinidamente dela. Assim, para nós, seres humanos, o conceito de Beleza é tão inato quanto cultural.

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Tudo que é belo nos encanta, alimenta nossa alma e nos traz sensação de prazer. A Beleza tem a capacidade de nos conduzir a um estado de plenitude que permite resgatar nossa essência e ampliar o sentido da nossa existência. E diferentemente do senso comum atual, a Beleza não se restringe a aspectos formais – ela se faz presente em acontecimentos, em ideias, na imaginação, na criatividade, em gestos e condutas. E quando encontrada em aspectos estéticos que decorrem de gestos e condutas, a Beleza atinge o Sublime – é a estética a serviço de uma ética, a Beleza como resultado de um valor.

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Nada tem mais valor que nosso planeta. Como seres biológicos, dependemos da saúde desse planeta para continuar existindo. Mas, como seres culturais, temos consumido recursos desse planeta em uma velocidade muito maior do que a natureza consegue repor. A única saída para esse aparente confronto é colocarmos nossa criatividade, nossa inteligência, nossa sensibilidade e os recursos tecnológicos de que cada vez mais dispomos para criar soluções que atendam às nossas necessidades biológicas e culturais – ou seja, para criar produtos e serviços que sejam esteticamente belos e eticamente responsáveis.

Beleza é fundamental. Mas se para alcançá-la nós, seres humanos, continuarmos atentando contra o planeta, não há feitiço que seja capaz de garantir nossa existência.

Diálogo sensível

Tapio Wirkkala :: Lehti :: 1951

 

A ideia do belo como algo indiscutível, reconhecido como tal a qualquer tempo e por qualquer cultura, permeia desde sempre o imaginário humano. Da matemática das proporções na Grécia Antiga ao conceito contemporâneo de liberdade e pluralidade, a busca do homem por entender e construir a beleza absoluta esteve presente todo o tempo (sobre o tema, disserto um pouco mais em meu texto ‘A beleza da imperfeição‘).

 

Nesse percurso, a natureza se impôs como grande espelho. O entendimento universal de que a ela seria intrínseca a perfeição (e, portanto, a beleza) fez com que suas formas, cores e texturas fossem incessantemente estudadas e copiadas, não apenas no campo das artes, da arquitetura e do design, mas também no da matemática e no das ciências.

 

Um dos grandes estudiosos da natureza no século XX foi Tapio Wirkkala, o principal nome do design finlandês. Embora tenha viajado muito ao longo da vida, representando seu país em inúmeras exposições e premiações pelo mundo, era nas florestas do interior da Finlândia que o Wirkkala passava a maior parte de seu tempo. Em meio à natureza, sua personalidade contemplativa e reservada encontrava inspiração – as folhas das árvores, as espirais das conchas, os blocos de gelo e as formas de pássaros e peixes eram temas para seu trabalho.

 

Nascido em Häggo em 1915, desde muito cedo Wirkkala demonstrou excepcional habilidade com as mãos e grande talento para desenho. Aos 15 anos começou a estudar escultura e aos 30, já trabalhando como ‘artista comercial’, obteve o primeiro lugar em um concurso de design em vidro promovido pela iitala – premiação essa que inaugurou uma sólida parceria profissional com a empresa, que duraria até sua morte, em 1985.

 

A consagração mundial veio em 1951, quando, na Trienal Internacional de Milão, Wirkkala recebeu três Grand Prix: um por seu desenho para o Pavilhão Finlandês na própria mostra; outro, para o vaso de vidro ‘Kantarelli‘; e outro ainda para ‘Lehti‘ (‘folha’, em finlandês), um de seus primeiros trabalhos em madeira compensada. No mesmo ano, ‘Lehti‘ recebeu também o importante Lunning Prize, e foi considerado o objeto mais belo do mundo pela conceituada revista americana House Beautiful.

 

Versátil, hábil, curioso e extremamente produtivo, Wirkkala exercitou seu talento nos mais diversos materiais – além de vidro e madeira, trabalhou com metal, cerâmica, plástico e papel. Costumava dizer que ‘os materiais têm suas próprias leis, não escritas‘, e que o designer deveria entender essas leis para ‘estar em harmonia com o material que escolhe’.

 

E talvez seja a (perfeita) harmonia o grande diferencial da obra do artista. Não bastasse o profundo entendimento dos materiais, sua relação com as formas da natureza era tão íntima que lhe possibilitou traduzir o universo rural de seu país em objetos extremamente belos e elegantes, cujos desenhos esculturais são também uma lição de funcionalidade e estrutura. Na obra de Wirkkala, a forma não é apenas um objetivo estético – nasce naturalmente do diálogo sensível entre olhos, pensamento, mãos e material.

 

Hoje, suas criações estão presentes nos principais museus e coleções de todo o mundo, assim como muitos dos utensílios que desenhou continuam a ser produzidos em larga escala, permeando milhares de residências ao redor do planeta. Por meio das mãos de Tapio Wirkkala, talvez o ser humano tenha finalmente conseguido construir o belo absoluto, indiscutível e atemporal – mesmo que seja esse um espelho da natureza.