Dos lugares que nos habitam

J. M. W. Turner :: Venice: San Giorgio Maggiore – Early Morning :: 1819 :: ©tate.org.uk

 

Da ‘Odisséia’ de Homero às ‘Cidades Invisíveis’ de Calvino, são incontáveis os belíssimos encontros ocorridos, ao longo de nossa História, entre literatura e viagem. Diferentemente dos guias, que têm por objetivo fornecer informações de ordem prática sobre uma determinada cidade ou um lugar, a literatura de viagem, por meio da narrativa de experiências, descobertas e reflexões, coloca a aventura pessoal numa dimensão universal, capaz de instigar a imaginação, despertar sensações e inspirar desejos.

 

Assim como pessoas, lugares não têm vida senão por meio das relações que neles e por eles se contróem. Narrativas épicas, relatos de exílios, romances ficcionais e até mesmo alguns diários de viagem jogam luz sobre essas relações e têm papel fundamental na ampliação de nossa capacidade de perceber, sentir e imaginar o mundo que habitamos. Seria o mesmo nosso olhar sobre a Sícilia sem a leitura do texto de Lampedusa? E nossa percepção de Paris, sem as memórias de Hemingway? Temos consciência da infinita diversidade de lugares, paisagens, pessoas e culturas que habitam nosso mundo, mas são as experiências frente a essa diversidade que falam à nossa alma, e não seu entendimento racional.

 

Cada um de nós traz dentro de si um profundo arcabouço de imagens, sensações, palavras ou aromas que relacionamos a lugares, vivenciados ou sonhados, dos mais próximos aos mais distantes. Mistura de memórias, desejos e impressões, é um acervo que, de maneira não linear, vamos montando ao longo da vida; dentro de nós, permanece em silêncio, adormecido – mas a menor referência a qualquer dos lugares que nos habitam faz esse universo despertar.

 

Nesse sentido, a experiência de uma viagem tem início muito antes da efetiva partida. A escolha por um destino, a decisão sobre o meio de transporte, a análise de possibilidades e montagem da agenda, a inclusão (ou não) de uma companhia… Cada passo dado desde o primeiro instante de elaboração de uma viagem é resultado não apenas de um repertório cultural, mas principalmente desse universo onírico e sensorial que nos habita. Quanto mais amplo for esse universo, portanto, mais bela poderemos tornar a experiência vivenciada – e maior será o prazer conferido à nossa alma.

Poeira no vento

Dorothea Lange :: Dust Storm Near Mills :: 1935

 

O valor maior da riqueza material reside no fato de que, por meio dela, podemos garantir o atendimento às necessidades básicas de nossa existência. Quanto maior a riqueza, maiores o acesso, o nível de conforto e a qualidade que podemos conferir à nossa saúde, à alimentação, à moradia e à educação (esta, em suas três dimensões: pessoal, social e cultural). Seria lógico, portanto, imaginar que enriquecimento material e o sócio-cultural devessem caminhar juntos.

 

Num passado não muito remoto, à medida em que ampliava seu poder aquisitivo, a burguesia ascendente buscava reproduzir o modo de vida aristocrático, no qual reconhecia diferenciais qualitativos. A aspiração não se restringia aos bens materiais: muito mais do que aos objetos, aspirava-se a um certo modo de ser e proceder, percebido como mais belo, elegante e prazeroso. Frequentar óperas e saraus, patrocinar a produção artística ou ter os melhores preceptores para os filhos eram, para essa burguesia, desejos tão fortes quanto vestir rendas francesas ou exibir cristais alemães. Mais do que por possibilitar a aquisição de objetos, o enriquecimento material era almejado por significar acesso a um valorizado universo de conhecimento, cultura e informação.

 

Em significativa parcela das classes ascendentes na sociedade contemporânea, porém, curiosamente observamos um comportamento bem diverso. Vemos hoje pessoas aumentando suas possibilidades financeiras e, em consequência, os tamanhos de seus automóveis e casas, intensificando os cuidados com saúde e corpo, sofisticando os alimentos e bebidas à mesa, multiplicando as roupas no closet… mas parece não existir, para boa parte dessas pessoas, preocupação alguma com a elevação de seu nível de educação e cultura. O enriquecimento material parece ter um objetivo em si mesmo – obter coisas materialmente mais ricas (= caras). Como consequência, vemos uma sociedade a cada dia mais embrutecida, mesquinha e arrogante, em que pessoas que sabem de cor os nomes das mais sofisticadas marcas de roupas e de automóveis não sabem citar um só nome significativo nas artes ou na literatura, expressam-se por meio de vocabulário pobre (quando não chulo) e são incapazes de uma atitude gentil.

 

Educação e cultura são meios para refletir sobre nossa existência, construir, discutir e transmitir valores, e ampliar a consciência acerca de nós mesmos, do outro e do mundo. Elas nos possibilitam aguçar os sentidos e refinar a percepção, tornando-nos capazes de ver e apreciar a beleza – de uma obra, de um pensamento ou de uma atitude; também permitem que sentimentos como gentileza, delicadeza e solidariedade aflorem nas relações, tornando-as amorosas e construtivas; ainda, colocam-nos numa perspectiva histórica, possibilitando o desenvolvimento de um olhar crítico e o fortalecimento de valores universais como verdade, liberdade e igualdade.

 

Por si, a riqueza material é como poeira no vento – não têm valor algum. Somente por meio da educação e da cultura podemos nos tornar pessoas melhores – capazes, então, de formar uma sociedade melhor, mais agradável e prazerosa para se viver.

Intolerância

scene from ‘Intolerance: Love’s Struggle Throughout the Ages’ :: D. W. Griffith ::  1916

 

‘Intolerance: Love’s Struggle Throughout the Ages’ (‘Intolerância’, em português) foi lançado em 1916 por D. W. Griffith. Com custo de produção sem precedentes à época, o filme, ainda mudo, tem cerca de quatro horas de duração e, por meio da dramatização de um poema de Walt Whitman, interliga quatro episódios da história da humanidade profundamente marcados pela intolerância: a guerra da Babilônia, na Mesopotâmia (cerca de seis séculos a.C.); a crucificação de Cristo em 33, na Judéia; a noite de São Bartolomeu, na França do século XVI; e o amor de dois jovens durante uma greve de trabalhadores, nos Estados Unidos da era moderna.

 

A intransigência com relação a opiniões, atitudes, crenças ou modos de ser que difiram dos nossos próprios, e a decorrente repressão, por meio da coação ou da força, das idéias que desaprovamos, têm sido a origem de enorme sofrimento e incontáveis barbáries ao longo da história. A incapacidade de aceitar e de conviver com a diferença talvez seja um dos maiores males que podemos causar a nós mesmos.

 

Alguns anos atrás, o julgamento sobre a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos foi tema de grande repercussão junto à opinião pública brasileira. Em meio a artigos, reportagens e manifestações, uma matéria feita por um jornal de grande circulação teve, sobre mim, grande impacto. Na matéria, duas mulheres eram entrevistadas: a primeira contava do sofrimento vivido por ter sido obrigada a gestar por nove meses um feto que sabia anencéfalo – mesmo tendo recorrido a várias instâncias judiciais, não obteve autorização para um aborto a tempo de fazê-lo de maneira segura. Dizia ter passado todo tempo de gravidez preparando-se para o enterro de um filho que nem chegou a conhecer, e que a experiência fora traumática a ponto de fazê-la desistir de uma nova gravidez.

 

A segunda entrevistada era uma mulher que também havia tido uma gravidez de anencéfalo, mas que, diferentemente da primeira, tinha optado por levar a gravidez até o final, convicta de que aquela era a conduta correta. Mãe já de um menino de três anos, tinha enterrado há pouco seu natimorto, e esperava apenas recuperar-se fisicamente para tentar uma nova gravidez.

 

O que chamava minha atenção nas entrevistas não era apenas a diferença de postura que duas pessoas (de condições sócio-econômicas e culturais muito próximas) tinham frente a uma mesma situação, mas o fato de que, enquanto a primeira defendia o direito à escolha, a segunda condenava veementemente quem viesse a fazer uma escolha diferente da dela. Ela defendia que não houvesse a possibilidade da escolha – afinal, sendo sua conduta ‘obviamente’ a correta, por que permitir que alguém tivesse outra, ‘errada’?

 

Na origem da negação da legitimidade de diferentes opiniões, atitudes, crenças ou modos de ser estão a vaidade e a arrogância. Julgar que o outro seja menos competente para fazer escolhas e traçar caminhos, acreditar que a nossa verdade deva ser também a verdade do outro mostra o quanto ainda devemos evoluir como seres e como cidadãos. Milhares de anos depois, após tanto conhecimento, tantas descobertas e tecnologias, ainda permitimos que a intolerância escravize a liberdade de escolha a que todos temos direito.

 

Para saber mais: http://www.youtube.com/watch?v=GF7ho_-1aWo

Aforismos contemporâneos

Mira Schendel :: sem título (da série ‘Escritos’) :: 1965 :: ©moma.org

 

Pequenos esclarecimentos àqueles homens e mulheres adultos, bem nascidos, bem nutridos e tão abastados quanto mal criados, que a cada dia permeiam mais o cotidiano urbano. (A propósito de uma conversa que, particular que seria, em ambiente social me foi impingida aos ouvidos pelas centenas de decibéis com que emanava).

 

Ser não é sinônimo de ter.

 

Bolsa não é troféu.

 

Sapato não é pedestal.

 

Sala de cinema não é parque de diversões, e mesa de restaurante não é tribuna.

 

Intervenção estética não é assunto de utilidade pública.

 

Crachá de empresa não é medalha de honra ao mérito.

 

Os conceitos de ‘exibição’ e ‘elegância’ são excludentes quando aplicados a pessoas.

 

Pode-se converter identidade em imagem. O inverso, porém, não é verdadeiro.

 

Cada personal contratado é uma incompetência assumida.

 

Decote e comprimento de saia (ou vestido) crescem em proporção direta. Nível alcoólico e adequação, em inversa.

 

Presença de palavrão significa ausência de vocabulário.

 

É preciso ser bonita(o) para ser modelo, mas não é preciso ser modelo para ser bonita(o).

 

O uso de gentileza e cortesia não guarda relação de proporcionalidade com o nível socioeconômico do interlocutor.

 

Em tempo:

 

Elegância: sf. ‘distinção de porte, de maneiras, garbo’. XVI. Do lat. elegantia –æ: requinte, bom gosto, asseio, beleza de formas.

 

Elegante: adj. ‘belo de formas, cuidado no trajo, educado, polido’. XVI. Do lat. elegans –antis: que sabe escolher, bem escolhido, distinto, esmerado, conveniente, honrado.

Distinção: sf. ‘discriminação, separação, diferença’: discrimen, -inis, separatio, distinctio, discretio. XVI. Do lat. distinctio –onis.