A estetização do mundo

Zin Lim :: ID#30 :: ©SaatchiArt

 

‘Não estamos mais no tempo em que produção industrial e cultura remetiam a universos separados, radicalmente inconciliáveis; estamos no momento em que sistemas de produção, de distribuição e de consumo são impregnados, penetrados, remodelados por operações de natureza fundamentalmente estética. O estilo, a beleza, a mobilização dos gostos e das sensibilidades se impõem cada dia mais como imperativos estratégicos das marcas: é um modo de produção estético que define o capitalismo de hiperconsumo.’

 

Em seu livro ‘A estetização do mundo’ (escrito em parceria com o crítico de arte Jean Serroy), o filósofo Gilles Lipovetsky propõe um olhar inovador sobre a relação entre a economia liberal e a vida estética contemporânea. Em pouco mais de 400 páginas, Lipovetsky fala com brilhantismo sobre um dos grandes paradoxos do capitalismo de consumo: se por um lado produz efeitos inegavelmente desastrosos nos planos moral, social e econômico, por outro, ao explorar racionalmente e de maneira generalizada as propriedades estético-imaginárias (objetivando o lucro e a conquista de mercados), ele potencializa as dimensões criativas, intuitivas e emocionais, estilizando o universo cotidiano.

 

Segundo Lipovetsky, esse capitalismo contemporâneo busca construir uma imagem artista para seus autores: ‘os jardineiros se tornaram paisagistas; os cabeleireiros, hair designers; os cozinheiros, criadores culinários…’. Diferentemente da época fordista, em que o foco era a produção material, nesse novo modelo o foco é o imaterial – o intangível, o imaginário, o sonho. Assim, apelando para a sensibilidade dos consumidores, arte e estética estariam postas a serviço do mercado, criando-se o que o autor chama de ‘capitalismo artista’.

 

De maneira didática e acessível, Lipovetsky traça um breve fio histórico (da Antiguidade clássica até os dias de hoje) para então expor sua ótima análise sobre as relações contemporâneas entre indústria, consumo, marca, arte e design. Elegante e provocativo, aponta o hiperindividualismo, potencializado pelo compartilhamento em rede de vidas estetizadas, como elo fundamental nessa cadeia de interações complementares e interdependentes.

 

Considerado um dos mais importantes pensadores de nosso tempo, com olhar especialmente voltado às questões de sociologia e filosofia do consumo, da moda e do luxo, Lipovetsky amplia nossa compreensão acerca deste mundo em que ‘tudo segue a lógica da moda: é efêmero e sedutor’, e nos põe em cheque em relação a um de nossos mais primitivos instintos: a eterna busca pela beleza e pelo prazer que ela proporciona à nossa alma.

 

Do mesmo autor, são também excelentes leituras ‘A era do vazio’ (Editora Manole), ‘O império do efêmero’ (Companhia de Bolso) e ‘O capitalismo estético na era da globalização’ (Edições 70 – Brasil).

A beleza da imperfeição

©Richard Avedon :: portrait of Marella Agnelli :: 1959

 

Ao longo da História ocidental, o conceito de Beleza sempre esteve associado à ideia da perfeição. Na Grécia Antiga, a definição do belo estava estruturalmente ligada às noções de ordem, simetria e clareza, e à presença de proporções definidas como harmônicas. Já na Idade Média, o Cristianismo deu uma dimensão simbólica à Beleza, ao interpretá-la como um atributo divino, tal qual a bondade e a verdade – nesse sentido, também ligada à ideia de perfeição. E embora com o Renascimento tenham surgido concepções relativistas, incorporando ao conceito de Beleza aspectos culturais e sócio-econômicos, foi apenas a partir do século XVII que a subjetividade passou a permear a noção do belo (fazendo emergir então a ideia de ‘gosto’).

 

Na segunda metade do século XVIII, as convulsões sociais na Europa criaram um ambiente propício para o renascimento dos ideais de Beleza da Grécia e Roma Antigas, amplamente utilizados nas imagens de divulgação da Revolução Francesa e do Império Napoleônico. E foi justamente nesse momento que surgiu Kant, o primeiro pensador a deslocar o centro de existência da Beleza do objeto para o sujeito. A divisão que Kant estabelece entre ‘juízo de conhecimento’ (o que emite conceitos baseados nas propriedades do objeto) e ‘juízo estético’ (decorrente da reação pessoal do contemplador diante do objeto) fincou as bases da estética contemporânea. O belo deixa de estar apenas naquilo que se vê, e passa a estar também nos olhos que vêem.

 

O pensamento kantiano abriu caminho para as grandes rupturas estéticas ocorridas entre o final do século XIX e início do século XX. Ao conceito do belo foram incorporadas as ideias de singularidade, individualidade, prazer, emoção, potência, coragem, vitalidade etc.. Pudemos entender que existe Beleza na perfeição, mas que não é preciso haver perfeição para que exista a Beleza. Aguçamos nossa capacidade de percepção e ampliamos a possibilidade de conferir prazer à nossa alma. Passamos a admirar a voz cristalina de Nat King Cole tanto quanto a voz insegura de Chet Baker; as proporções clássicas do rosto de Grace Kelly, e os traços exóticos e voluptuosos de Sophia Loren; a Beleza densa do trabalho de Raushenberg e a quase superficial da pop art de Warhol.

 

Passadas poucas décadas, no entanot, o caminho que parecia de liberdade curiosamente acabou nos conduzindo a um aprisionamento. Estimulada por uma indústria que, interdisciplinarmente, se estrutura na massificação e na hipervalorização da juventude para gerar lucros, a busca por um ideal de Beleza – a busca pela Beleza perfeita – nunca foi tão exacerbada quanto hoje. Num processo insano e sem fim, homens e mulheres se lançam numa jornada rumo àquilo que nada é senão uma construção imaginária coletiva. E ao abandonar sua própria Beleza para (tentar) chegar a outra, vivem eternamente insatisfeitos, vagando no meio desse caminho.

 

É preciso resgatar a riqueza da pluralidade e a Beleza que reside na imperfeição. Lembrar da estranheza de Dovima. Dos olhos de Serge Gainsbourg, dos dentes de Lauren Hutton. Da boca de Mick Jagger, das sobrancelhas de Frida Kahlo e das formas de Grace Jones. E lembrar sobretudo das palavras de Leonard Cohen, que em sua canção ‘Anthem’, de 1992, diz:

 

‘… Forget your perfect offering

There is a crack in everythin

That’s how the light gets in’

(Em livre tradução:

‘… Esqueça a perfeição

Em tudo há uma fresta

E é por ela que entra a luz’)