As brasas

J. M. W. Turner :: Vesuvius in Eruption :: 1817-1820 ::

 

Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o significado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso também é velhice. Quando já sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer… Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com exactidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreende nem o imprevisto, nem o invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal… e isso é precisamente a velhice.’

 

Esse pequeno trecho do livro ‘As brasas’, de Sandór Márai, é tocante pela precisão e pela sensibilidade com que relaciona a perda dos prazeres da alma ao envelhecimento e à morte. Na obra, dois homens, amigos inseparáveis na infância e na juventude, reencontram-se depois de terem passado quarenta anos distantes. Desse encontro nasce um duelo de palavras que abrem feridas e expõem dores que, como brasas na lareira, ainda ardem – mesmo parecendo extintas.

 

Romancista, poeta e cronista, Sandór Márai nasceu em na virada do século XX em uma pequena cidade da Hungria e é considerado um dos maiores escritores de seu idioma. Com mais de sessenta livros  publicados, foi reverenciado em seu país no início da carreira mas viu sua obra ser proibida após a II Guerra Mundial, com a instauração do regime comunista. Autoexilado a partir de 1948, morou na Suíça, na Itália e na França até fixar residência nos Estados Unidos onde, aos 89 anos de idade, cometeu suicídio – talvez a maior prova do valor que sempre deu à liberdade de pensamento. Seus escritos, potentes e extremamente cuidadosos na linguagem, com frequência retratam a decadência da burguesia em seu país, com olhar voltado para as grandes questões emocionais – e universais – do homem: amor, paixão, vida, dor, decadência e morte.

 

São de sua autoria também os excelentes ‘De verdade’, ‘Divórcio em Buda’, ‘Rebeldes’ e ‘Libertação’ – como ‘As Brasas’, todos publicados no Brasil pela Companhia das Letras.