Forma e pensamento
Dentre os artistas europeus que imigraram para o Brasil durante ou logo após a II Guerra Mundial, e que tanto contribuíram para o enriquecimento da linguagem das nossas artes visuais, Mira Schendel é sem dúvida o nome de maior importância.
Nascida em Zurique, viveu também em Berlim, Milão, Sarajevo, Zagreb e em Roma, até imigrar para o Brasil em 1949, instalando-se em Porto Alegre. Não há registros de qualquer produção artística sua durante a vida europeia; deduz-se que, ao imigrar, ela tenha interrompido a formação universitária em filosofia iniciada na Itália, e começado sua produção artística aqui, como autodidata. Como explicou Geraldo de Souza Dias em 2001, no prefácio do catálogo da exposição da artista no Jeu de Paume, de Paris, ‘sua infraestrutura intelectual, alimentada por inquietudes filosóficas e religiosas, encontrou aqui um ambiente cultural muito mais propício ao estímulo da criatividade artística do que ao rigor científico do pensamento filosófico’.
Os escritos de Schendel são fundamentais para o entendimento da singularidade de sua obra. Sem se ocupar da história da arte, ela se referenciava na psicologia, na ciência, no conhecimento, na teologia e na filosofia para produzir seus trabalhos, sempre balisados por seus próprios pensamentos e princípios estéticos. Predominante na filosofia ocidental pós Platão, a ideia da cisão inerente à natureza humana – corpo vs. alma, matéria vs. espírito – é central em sua obra, muitas vezes permeada por indagações existenciais ou expressões de origem religiosa.
Das naturezas mortas do início, Mira Schendel rapidamente evoluiu para o abstracionismo e em seguida para os escritos – caligrafias de imensa beleza por meio das quais registrava seus pensamentos e inquietudes. Sem abandonar a palavra como expressão do pensamento, Mira foi depois incorporando a esses escritos as letras autocolantes (Letraset©), apropriando-se assim desses signos não apenas como veículos do significado, mas como elementos gráficos de inúmeras possibilidades plásticas. As experimentações com transparências, que permitem que o espectador contemple as duas faces das monotipias, são exemplos máximos da profundidade e da sensibilidade presentes nessa sua investigação.
Não há como não se apaixonar pelos trabalhos de Mira Schendel, nem como deixar de reconhecer seu imenso legado artístico. Ninguém transmutou palavra em arte com tanta elegância, delicadeza e personalidade como ela. Mesmo artistas excepcionais como Léon Ferrari (que dividiu com Mira a grande retrospectiva ‘Tangled Alphabets’ no MoMA em 2009) ou Marcel Broodthaers, todos seus contemporâneos, não conseguiram unir com tal beleza forma E pensamento (corpo E alma, matéria E espírito) – e assim proporcionar a um só tempo, por meio da contemplação de uma obra, reflexões profundas e prazeres tão infinitos.
Para saber mais:
‘Mira Schendel’, catálogo da exposição homônima, Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris, 2001
‘Tangled Alphabets • Léon Ferrari and Mira Schendel’, Luis Péres-Oramas, MoMA & CosacNaif, 2009