Implícito em cada um

Hilal Sami Hilal :: da série Alepo :: 2019

 

 

” – Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza.

  – Quando pergunto das outras cidades, quero que você me fale a respeito delas. E de Veneza quando pergunto a respeito de Veneza.

 – Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que parece implícita. No meu caso, trata-se de Veneza.”

 

O diálogo está em um dos mais conhecidos livros de Ítalo Calvino,  ‘As cidades invisíveis’. Nessa breve ficção, Marco Polo descreve para Kublai Khan, a quem serviu durante anos, algumas das inúmeras cidades do império mongol que conheceu. Composta por textos concisos mas ao mesmo tempo ricos em detalhes e carregados de simbologia, a obra não é a única em que autor demonstra seu fascínio pelo tema das cidades.

Calvino acreditava que, por meio do entendimento da lógica e do funcionamento da vida urbana, compreenderia as condições de grande parte da humanidade na era contemporânea, e ao longo de sua carreira se debruçou sobre tais estudos, tendo produzido tanto ensaios (como a obra póstuma ‘Seis propostas para o próximo milênio’) como ficção (‘As cidade invisíveis’, ‘Se um viajante numa noite de inverno’ e ‘Marcovaldo ou as estações da cidade’, entre outros). “Se meu livro ‘As cidades invisíveis’ continua sendo para mim aquele em que penso haver dito mais coisas, será talvez porque tenha conseguido concentrar em um único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjeturas“, diria ele.

‘As cidades invisíveis’ entrelaça narrativas do viajante veneziano com pequenos diálogos entre ele e seu imperador, em uma construção literária que traz muitas surpresas – às vezes até, surpresas dentro de surpresas – e que, assim como as cidades descritas, deve ser percebida em suas várias camadas. Como o pequeno fragmento reproduzido no início deste texto, por exemplo: se à primeira leitura parece um diálogo coloquial e objetivo, a análise mais atenta convida a refletir sobre a fala de Marco Polo, que, nas entrelinhas, toca em um sentimento universal: o vínculo afetivo, profundo e indelével que cada ser humano tem com uma determinada cidade.

Muitas vezes, a cidade amada é aquela onde nascemos, carregada de lembranças e histórias; outras, é a cidade em que moramos, próxima, íntima, entranhada no cotidiano. Mas há casos também em que a paixão é por uma cidade desconhecida – não é preciso sequer percorrer suas ruas para saber que é àquela cidade que pertencemos.

 

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Em todo o mundo, inúmeros artistas fizeram da paixão por uma cidade inspiração para sua obra. Nova Iorque foi por anos um dos principais personagens dos filmes de Woody Allen e das canções de Lou Reed. Paris foi a estrela de Manet e Truffaut, e Veneza, o grande amor de Visconti. Fellini dedicou a Rimini seu ‘Amarcord’. Cadaqués seduziu Picasso, Dalí, Max Ernst e Man Ray, e Monet e Giverny quase se confudem. As ruas de Londres habitam Vivienne Westwood, Dickens e os Beatles, e as da Sicília vivem em Dolce&Gabbana.

O americano Hemingway declarou seu amor em ‘Paris é uma festa’, e Borges fez da sua  Buenos Aires cenário e personagem, em prosa e poesia. As Noites Brancas de São Petesburgo estão no livro homônimo de Dostoiévski; Praga mora em Kafka, Lisboa em Madredeus, Madri em Almodóvar. Há ainda Alighieri e Florença, Ozu e Tóquio, Pedro Juan Gutiérrez e Havana, Elena Poniatwoska e a Cidade do México. E outros tantos casos de amor.

 

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Aqui por perto, Salvador conquistou o argentino Carybé e Jorge Amado, nascido na capital baiana, caiu de amores mesmo por Ilhéus. Pelas linhas dos escritos de Cora Coralina, percorremos as ruas de Goiás, e pelas de Milton Hatoum, as de Manaus. As pequenas e típicas cidades do interior mineiro estão em toda obra de Guignard, e foi o amor pelo Rio de Janeiro que mudou o nome do cronista João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto para… João do Rio.

O Rio, aliás, talvez rivalize com Paris como cidade-fetiche: de Di Cavalcanti a Helio Oiticica, de Chiquinha Gonzaga a Chico Buarque, de Machado a Garcia-Roza, uma infinidade de artistas teve ou tem a cidade como inspiração para suas obras. Tom Jobim é sinônimo de Rio de Janeiro, que teve ainda Heitor, Melodia, Ferrez, Drummond, Fonseca…

São Paulo? Complexa, caótica e misteriosa, a capital paulista não atrai facilmente, mas sempre teve grandes amantes. É a musa de grande parte das canções de Itamar Assumpção, Adoniran, Crioulo e Mano Brown, e se mostra irresistível por meio das lentes apaixonadas de Cristiano Mascaro. ‘São Paulo’ e ‘Operários’, entre outras inspiradas na metrópole, são obras centrais em Tarsila, e nomes como Gregório Gruber e Newton Mesquita há anos dedicam-se aos volumes, planos e linhas da paisagem paulistana. Ugo Giorgetti, mesmo dizendo que odeia a cidade, fez dela tema de seus documentários e cenário de suas ficções – assim como Laís Bodansky e Gianfrancesco Guarnieri. Claude Lévi-Strauss detestou o Rio, e escreveu ‘Saudades de São Paulo’. E talvez ninguém tenha sintetizado de maneira tão fascinante as imperfeições, os movimentos e contrastes da cidade quanto o mineiro Luis Ruffato, em seu belíssimo livro ‘Eles eram muitos cavalos’.

 

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Em meu texto ‘Dos lugares que nos habitam‘, falei especificamente sobre o papel da literatura na ampliação de nossa capacidade de perceber, sentir e imaginar o mundo que habitamos. No entanto, todas as formas de arte contribuem para que se crie, dentro de nós, uma espécie de acervo particular de imagens, sensações, palavras, aromas e sabores relacionados a lugares. Quanto mais diversa for nossa formação cultural, mais sensível e multifacetada será nossa percepção acerca dos espaços que visitamos (física ou imaginariamente).

Talvez venha daí a ‘inexplicável’ paixão por cidades desconhecidas. Estudamos História e Geografia na escola, ouvimos de amigos relatos de viagens, procuramos informações em guias e reportagens, buscamos descobrir os caminhos de nossos antepassados… mas são os artistas que, transformando em arte suas próprias paixões, nos revelam o intangível – e nos ajudam a descobrir qual é, no mundo, nosso lugar mais implícito.

Tudo é um

Lygia Clark :: ‘O dentro é o fora’ :: 1963

 

Uma trajetória sem começo nem fim

Um lugar que é dentro e fora

Um tempo que é antes, depois e agora

Uma forma única, que se manifesta em mim

 

Desde sua criação em 1858, a enigmática fita de Möbius vem fascinando os mais diversos pensadores – de matemáticos a filósofos, de engenheiros a artistas. Criada pelo alemão August Ferdinand Möbius durante seus estudos sobre a teoria geométrica dos poliedros, é obtida a partir da colagem das duas extremidades de uma fita, depois de uma delas ter sido rotacionada em cento e oitenta graus. Como resultado, tem-se um objeto não orientável que possui apenas um lado e uma única borda e que, por materializar um percurso sem início ou término, é reconhecido hoje como signo universal do infinito.

Além de plasticamente bela, a fita de Möbius instiga e convoca à reflexão por romper com conceitos que pareciam definitivos: dentro e fora, em cima e embaixo, começo e fim. Essa ambiguidade espacial alude também a uma ambiguidade temporal – se não existem dois lados, também não existe um antes e um depois –, conduzindo por fim à ambiguidade existencial: o sujeito e o objeto, o eu e o outro. Dissolve-se o sentido de dualidade e oposição – tudo está infinitamente conectado. Tudo é um.

 

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O SobreTodasAsCoisas nasceu em 2011 em decorrência de um trabalho orientado de autoconhecimento. Naquele momento, na tentativa de entender meu percurso pessoal e profissional, busquei interrelacionar e dar forma concreta e consistente às incontáveis atividades e reflexões a que me dedicava e que me pareciam, até então, dispersas e desconexas. O que meus anos como modelo profissional (e minha paixão por moda) teriam a ver com minha constante dedicação à leitura e à escrita? Como relacionar meu trabalho em branding e design gráfico com meus estudos musicais? Para onde convergiriam  cursos e aprendizados sobre temas tão heterogêneos quanto antropologia,  técnicas de produção em vidro, arte contemporânea e poesia haiku?

Esse processo reflexivo e analítico trouxe à luz uma evidência: a estética sempre havia sido o fio condutor de minha trajetória. E falo de estética como valor, nascido de uma ética – uma maneira específica de ver e de se relacionar com o mundo. Um valor que, ao adquirir consistência e significado, se transforma em atitude perante a vida.

Na observação dos pequenos itens que compõem meu universo cotidiano, a cada mínima escolha, nunca me foi possível prescindir da estética – da Beleza – como valor a admirar e perseguir. Como uma fita de Möbius, o valor estético mostrou ser o caminho único que une todas as coisas de minha vida. Todas as coisas sempre foram, em verdade, uma só.

 

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A busca pela Beleza é inata em todos nós. A Beleza permeia cotidianamente nossas visões, ações e relações, e  se estabelece como importante vínculo entre nós e o mundo que nos cerca. Pode estar presente em todas as coisas – sons, imagens, formas, palavras, lugares, atitudes –, despertando nossos sentidos e provocando emoções, paixões e prazeres.  É um valor a observar, investigar, discutir, decifrar, entender, aprender, construir, procurar, desfrutar.

Neste momento em que completa dez anos, o SobreTodasAsCoisas renova sua imagem e expande sua atuação: incorpora a fita de Möbius à sua identidade visual, reafirmando sua visão de mundo e seus valores estruturais; e, ao estender seu perfil a outras redes sociais, potencializa seu alcance e possibilita a diversificação de suas atividades para além da produção de conteúdo (novidades em breve!).

Sigo em minha trajetória única e infinita pela busca da Beleza, compartilhando meu olhar estético sobre as coisas da vida. E ao dividir descobertas, reflexões e aprendizados, espero poder apurar percepções e sentidos, contribuindo assim para a ampliação de nossos prazeres – os meus, os de todos, e os de cada um de nós.

A vertigem das listas

Alighiero Boetti:: ‘Untitled’ :: 1987 :: photo ©Christie’s

 

O título deste texto foi roubado de um dos livros mais apaixonantes de Umberto Eco. ‘A vertigem das listas’, publicado no Brasil em 2010, dá continuidade a um projeto editorial que teve início com ‘História da Beleza’ e ‘História da Feiúra’ (ambos também disponíveis em português) e, assim como seus antecessores, consiste de um ensaio crítico acompanhado de uma antologia literária e de uma belíssima seleção de trabalhos artísticos, que ilustram e ancoram os textos apresentados.

 

Umberto Eco conta que o livro surgiu de um pedido que recebeu do Museu do Louvre para organizar ‘uma série de palestras, exposições, leituras públicas, concertos e projeções’  sobre algum tema de sua livre escolha. E ele propôs as listas (ou elencos, ou catálogos de enumeração), uma preferência que nasceu de seus estudos sobre textos medievais e joyceanos, e que aparece em quase todos os seus romances.

 

No ensaio, Eco reflete sobre como a ideia dos catálogos mudou no decorrer do tempo e como, de um período a outro, expressou o espírito de cada era. O autor, porém, estabelece antes uma distinção entre ‘listas práticas’ (os convidados de uma festa ou o catálogo de uma biblioteca), e ‘listas poéticas’ (aquelas que se propõem a uma finalidade artística, seja qual for a forma de arte, como a Biblioteca de Babel de Borges ou os nomes bordados nos mantos de Bispo do Rosário). Enquanto as primeiras teriam função referencial e objetivo prático, elencando coisas segundo um modelo de organização e fechando-se de forma harmônica e completa, as outras conduziriam a um universo subjetivo, capaz de nos abrir sucessivas portas e levar ao infinito.

 

Quais são as letras de um alfabeto? E as palavras que com elas construímos? Quantas são minhas memórias? E as estrelas do céu?

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‘Alta fidelidade’ é um livro de Nick Hornby sobre o qual muito já se falou. Publicado em 1995 e levado às telas do cinema cinco anos depois pelas mãos de Stephen Frears, tem como narrador Rob Fleming – um londrino de trinta e cinco anos, proprietário de uma loja de discos à beira da falência, viciado em cultura pop e que não consegue pensar a vida senão em termos de listas dos ‘cinco melhores de todos os tempos’: livros, filmes, bandas, cantores, álbuns, solos de guitarra, notícias, amantes, separações etc.. Et cetera.

 

À época desses lançamentos, criar listas – mentais ou em rodas de amigos – virou febre. Todos queríamos discutir os ‘cinco melhores’ de nossas vidas, em todos os assuntos. No entanto, a brincadeira que divertia também gerava angústia, pois para cada lista de coisas escolhidas, outra ainda maior se montava: a das coisas rejeitadas.

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Qualquer processo individual de seleção e escolha, se feito com consciência, é um exercício de autoconhecimento. Por meio da reflexão – por que este e não aquele? – podemos ampliar o entendimento acerca de nosso momento de vida, de nossa própria visão de mundo, de nossos valores, emoções e prazeres, o que talvez ajude a nos tornarmos um pouco mais seguros diante de novas escolhas.

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Esse exercício de enumeração é sedutor, e pode abrir um leque de infinitas listas em nosso imaginário: músicas, autores, poemas, pinturas, receitas, lugares a visitar… E uma mesma lista pode inclusive adquirir as duas formas, prática ou poética. Como? Os ingredientes culinários registrados em uma lista de compras domésticas, por exemplo, têm caráter puramente prático, mas presentes em um livro sobre culinária mediterrânea podem adquirir valor poético. Da mesma maneira, a lista de nomes dos soldados norteamericanos mortos na guerra do Iraque têm dimensão poética na obra de Jenny Holzer, mas reduz-se ao âmbito prático quando em um documento oficial do Governo dos Estados Unidos.

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Listar nossos cinco, dez ou vinte melhores livros, filmes, canções, o que for, é fazer o esboço de um esprit du temps particular – um recorte que expressa os sentimentos e reflexões de quem somos neste momento. Não retrata quem somos, mas quem ‘estamos’.

 

Talvez amanhã não façamos as mesmas escolhas, pois talvez amanhã não sejamos mais quem somos hoje. Viver é manter-se em movimento, caminhar, evoluir. Não se congelar no próprio saber, nas próprias crenças; é manter-se vendo e revendo filmes, ouvindo e reouvindo canções, lendo e relendo livros, descobrindo e redescobrindo coisas, pessoas, lugares, prazeres. Sobretudo, viver é continuar aprendendo, reaprendendo, e sempre olhando para dentro de si como quem olha para uma lista poética de histórias, gostos, valores, imagens e memórias. Uma lista que termina em et cetera.

A magia permanece

Keith Jarrett :: © Henry Leutwyler / ECM Records

 

No dia 30 de outubro de 2020, foi lançado Budapest Concert, o mais recente álbum de Keith Jarrett, gravação do concerto de abertura de sua última turnê europeia.¹  Poucos dias antes do lançamento, em entrevista concedida ao The New York Times, Jarrett afirmou sentir-se o John Coltrane dos pianistas: ‘Todos os saxofonistas que vieram depois de Coltrane mostraram o quanto devem a ele. Mas nenhum criou, de fato, uma música própria – foram apenas diferentes maneiras de imitá-lo.’

 

Para alguém que não conheça a obra de Jarrett, a fala pode parecer pretensiosa, mas quem alguma vez já o ouviu ao piano sabe que sua genialidade é um divisor de águas na história da música. Seu álbum The Köln Concert, gravado ao vivo na Casa de Ópera de Colônia em 1975, instituiu uma nova forma de jazz, definida por peças autorais, extensas e improvisadas no momento da performance (as quatro peças que compõem esse álbum só tiveram suas transcrições autorizadas pelo autor quase vinte anos depois). Até hoje, The Köln Concert detém o recorde de álbum de piano solo mais vendido da história, em qualquer gênero (três milhões e quinhentas mil cópias).

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Nascido na Pensilvânia em 1945, Keith Jarrett começou a estudar piano antes dos três anos de idade; aos cinco, estava em programas de novos talentos na televisão americana e aos sete, em seu primeiro recital, tocou Mozart, Bach, Beethoven e Saint-Saëns, encerrando a performance com duas composições próprias. Na adolescência, já com uma sólida formação erudita, passou a se dedicar aos estudos de jazz, tendo ingressado, logo em seguida, na prestigiada Berklee College of Music, em Boston. Um ano depois, foi contratado por Art Blakey para tocar com os Jazz Messengers em Nova Iorque (quando então conheceu o baterista Jack DeJohnette, com quem acabou estabelecendo uma duradoura parceria musical, complementada em 1983 pelo baixista Gary Peacock na formação do Standards Trio). Em pouco tempo, líder de pequenos grupos jazzísticos e já gravando suas próprias composições, Jarrett foi convidado a integrar a banda de Miles Davis, a quem até hoje cita como influência determinante em sua vida profissional e pessoal, e também na estruturação de seu pensamento sobre música e improvisação. (Anos mais tarde, Bobby McFerrin, outro gigante da música contemporânea, declararia o quanto a maneira pessoal e única de Keith Jarrett captar a essência de uma música, e de captar a própria essência enquanto músico, havia sido fundamental em sua formação – história que já contei neste blog, no texto ‘Ouvindo a própria voz‘.)

 

Considerado o mais importante músico vivo, Keith Jarrett é também o que mais soube conciliar, com regularidade e incomparável competência, música erudita, música popular e jazz. Sua imensa obra – quase duzentos álbuns, se considerados aqueles em que não é o bandleader – inclui desde releituras de temas de musicais da Broadway e clássicos da canção popular americana até obras referenciais da música erudita ocidental, como ‘O cravo bem temperado’ e as Variações Goldberg, de J. S. Bach. Suas performances sempre se caracterizaram por serem únicas, muito intensas e surpreendentes – somados à sua inquestionável capacidade criativa, atributos do piano, da sala de concertos, o mood do público e até mesmo peculiaridades da cidade onde estava se apresentando eram influências para as escolhas de Jarrett durante um concerto. ‘Não faço ideia do que vou tocar, antes de uma apresentação. E se tenho alguma ideia musical, digo ‘não’ a ela.’ Em cada show, a entrega total de Jarrett – física, intelectual, emocional e psicológica – ganhava a dimensão de magia: os sons extraídos do piano pareciam ser a transmutação da própria alma do artista.

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Jarrett se apresentou pela última vez no Carnegie Hall, em janeiro de 2017. Fazia poucos dias que os Estados Unidos estavam sob administração de um controverso (já ex) presidente, e o artista começou sua apresentação com um discurso crítico, complementado por comentários viscerais nos intervalos entre os longos arcos musicais. Semanas depois, um outro concerto que aconteceria no mesmo Carnegie Hall foi cancelado, assim como todas as futuras apresentações daquela turnê. A genérica alegação de sua gravadora citava problemas de saúde (Jarrett tinha um diagnóstico de síndrome da fadiga crônica desde 1997).

 

E foi apenas nessa recente entrevista ao The New York Times que Keith Jarrett revelou detalhes sobre sua condição física: um primeiro e leve derrame em 2017, seguido de outro acidente vascular grave no ano seguinte. Passados quase três anos, Jarrett ainda tem o corpo parcialmente paralisado, caminha com dificuldade, apoiado em uma bengala, e acredita que nunca mais voltará a tocar sua música. ‘No momento, não sinto que sou um pianista. É tudo que posso dizer a esse respeito.’

 

Essa perspectiva escancara uma condição brutal, frustrante e dolorosa. Assim como Callas e sua voz, ou Picasso e suas atividades plásticas, Keith Jarrett e seu piano foram, até então, uma existência indissociável – como também foi a relação entre o artista e seu público. Nesse concerto do Carnegie Hall, Jarrett chegou a agradecer à plateia por tê-lo feito chorar de emoção; e foi a certeza de uma conexão especial com os espectadores no concerto de Budapeste que o impeliu a registrar aquele momento.

 

O legado de Keith Jarrett permanecerá por dezenas de gerações – álbuns de estúdio, registros de concertos, transcrições de suas músicas, entrevistas… mas a magia de um encontro entre o artista, seu piano e seu público talvez agora só possa existir na memória e no coração de quem, como eu, teve a oportunidade de vivenciar essa experiência.

 

Obrigada, Keith Jarrett. Levarei para sempre um pouquinho de sua mágica dentro de mim.

 

¹ A ideia inicial de Jarrett e sua gravadora era lançar apenas Munich 2016, registro da apresentação de encerramento dessa mesma turnê e de fato lançado em 2019; no entanto, o pianista estava tão entusiasmado com sua performance no Béla Bartók National Concert Hall que não apenas quis divulgá-la, como quase batizou o respectivo álbum de The Gold Standards.

Joia de artista

Frank Stella:: bague :: 2010 :: Collection Diane Venet • photo ©MAD_Paris

 

A ourivesaria esteve intimamente ligada a outras formas de expressão visual desde a pré-História. Diversas culturas, ao longo de séculos, representaram seus deuses, valores, hábitos e modos de vida por meio de pinturas, esculturas, vestimentas ou adornos – linguagens igualmente legítimas, reconhecidas e valorizadas. A partir do Renascimento, no entanto, essas atividades começaram a se diferenciar, com pintores e escultores passando a ser considerados artistas, e ourives, simplesmente artesãos.

 

Do século XVI em diante, as disciplinas tomaram rumos independentes, cada qual atrelada à evolução técnica e material inerente à sua própria execução, bem como à evolução do pensamento e do olhar de seus respectivos artistas ou artesãos. Já no final do século XIX, com a abertura das artes plásticas/visuais ao imaterial, ao conceitual e ao efêmero, a diferença entre as duas formas de expressão parecia intransponível: se por um lado o valor atribuído a uma obra de arte já não estava mais no campo objetivo ou mensurável, por outro a ourivesaria, mesmo produzindo peças únicas, permanecia com seu valor vinculado a seus materiais, frequentemente medido em quilates.

 

Mas eis que, no século XX, artistas reconhecidos por seus trabalhos em pintura, escultura e até em cinema, se interessaram pela joalheria. Seja por encomenda de algum museu ou galeria, para presentear um ente querido ou simplesmente pela oportunidade de se exercitar frente às restrições de um material ou de uma diferente escala, grandes nomes das artes moderna e contemporânea criaram peças para serem usadas no pescoço, no pulso, nas orelhas ou nos dedos.

A belíssima exposição ‘De Calder a Koons, bijoux d’artistes’, organizada pelo Musée des Arts Décoratifs de Paris (MAD_Paris) em 2018, trouxe a público duzentas e trinta peças da coleção particular de Diane Venet, colecionadora de joias de artistas há mais de trinta anos. E por meio de trabalhos de Max Ernst, Pablo Picasso, Frank Stella e Louise Bourgeois, entre outros – inclusive o brasileiro Tunga –, foi possível constatar como, mesmo obrigado a se adaptar às exigências óbvias de uma joia (como tamanho, peso, portabilidade etc.), cada artista é capaz de reafirmar seu vocabulário visual, imprimindo sua própria linguagem e sua identidade à peça criada.

Escultura para o corpo, feita com exclusividade e paixão, cada joia de artista carrega em si uma história muito particular – e ocupa, também por isso, um lugar único no universo da criação humana. Não está inserida no contexto da alta joalheria, no da joia de fantasia, tampouco no contexto do design, com sua produção em larga escala. Também não se associa ao trabalho dos joalheiros independentes, que consideram o objeto ‘joia’ um campo de expressão em si mesmo. A joia de artista é preciosa por sua raridade e sua carga simbólica. E usar uma dessas peças não é um ato inócuo – de certo modo, é uma forma de se apropriar um pouco do gênio do artista que a criou, ampliando assim a dimensão e conferindo outro significado ao (simples?) ato de se enfeitar.

Diálogo sensível

Tapio Wirkkala :: Lehti :: 1951

 

A ideia do belo como algo indiscutível, reconhecido como tal a qualquer tempo e por qualquer cultura, permeia desde sempre o imaginário humano. Da matemática das proporções na Grécia Antiga ao conceito contemporâneo de liberdade e pluralidade, a busca do homem por entender e construir a beleza absoluta esteve presente todo o tempo (sobre o tema, disserto um pouco mais em meu texto ‘A beleza da imperfeição‘).

 

Nesse percurso, a natureza se impôs como grande espelho. O entendimento universal de que a ela seria intrínseca a perfeição (e, portanto, a beleza) fez com que suas formas, cores e texturas fossem incessantemente estudadas e copiadas, não apenas no campo das artes, da arquitetura e do design, mas também no da matemática e no das ciências.

 

Um dos grandes estudiosos da natureza no século XX foi Tapio Wirkkala, o principal nome do design finlandês. Embora tenha viajado muito ao longo da vida, representando seu país em inúmeras exposições e premiações pelo mundo, era nas florestas do interior da Finlândia que o Wirkkala passava a maior parte de seu tempo. Em meio à natureza, sua personalidade contemplativa e reservada encontrava inspiração – as folhas das árvores, as espirais das conchas, os blocos de gelo e as formas de pássaros e peixes eram temas para seu trabalho.

 

Nascido em Häggo em 1915, desde muito cedo Wirkkala demonstrou excepcional habilidade com as mãos e grande talento para desenho. Aos 15 anos começou a estudar escultura e aos 30, já trabalhando como ‘artista comercial’, obteve o primeiro lugar em um concurso de design em vidro promovido pela iitala – premiação essa que inaugurou uma sólida parceria profissional com a empresa, que duraria até sua morte, em 1985.

 

A consagração mundial veio em 1951, quando, na Trienal Internacional de Milão, Wirkkala recebeu três Grand Prix: um por seu desenho para o Pavilhão Finlandês na própria mostra; outro, para o vaso de vidro ‘Kantarelli‘; e outro ainda para ‘Lehti‘ (‘folha’, em finlandês), um de seus primeiros trabalhos em madeira compensada. No mesmo ano, ‘Lehti‘ recebeu também o importante Lunning Prize, e foi considerado o objeto mais belo do mundo pela conceituada revista americana House Beautiful.

 

Versátil, hábil, curioso e extremamente produtivo, Wirkkala exercitou seu talento nos mais diversos materiais – além de vidro e madeira, trabalhou com metal, cerâmica, plástico e papel. Costumava dizer que ‘os materiais têm suas próprias leis, não escritas‘, e que o designer deveria entender essas leis para ‘estar em harmonia com o material que escolhe’.

 

E talvez seja a (perfeita) harmonia o grande diferencial da obra do artista. Não bastasse o profundo entendimento dos materiais, sua relação com as formas da natureza era tão íntima que lhe possibilitou traduzir o universo rural de seu país em objetos extremamente belos e elegantes, cujos desenhos esculturais são também uma lição de funcionalidade e estrutura. Na obra de Wirkkala, a forma não é apenas um objetivo estético – nasce naturalmente do diálogo sensível entre olhos, pensamento, mãos e material.

 

Hoje, suas criações estão presentes nos principais museus e coleções de todo o mundo, assim como muitos dos utensílios que desenhou continuam a ser produzidos em larga escala, permeando milhares de residências ao redor do planeta. Por meio das mãos de Tapio Wirkkala, talvez o ser humano tenha finalmente conseguido construir o belo absoluto, indiscutível e atemporal – mesmo que seja esse um espelho da natureza.

Imensidão azul

Deborah Paiva :: Menina com guarda-chuva :: 2014

 

Descobri a pintura de Deborah Paiva quando vi, pela primeira vez, a imagem que ilustra este texto. Eram meados de 2015 e a imagem me saltou aos olhos em uma rede social, por meio de uma amiga em comum. No mesmo instante vieram à minha mente, todos misturados, os azuis de Kieslowski, o cotidiano de Hopper, as cenas capturadas por  Sophie Calle para sua série ‘Voir la mer‘ e os bordados de Louise Bourgeois que compõem a ‘Ode a la Bièvre‘. Uma imagem que me tocou (e ainda toca) por entrelaçar, com elegância e delicadeza, silêncio e solidão, melancolia e contemplação, intimidade e imensidão.

 

A obra integrava a exposição ‘A liberdade é azul’, que Deborah tinha acabado de inaugurar no Museu de Arte Contemporânea de Campinas. Além dessa, outras pinturas de grandes dimensões e infinitos azuis colocavam o observador perto – mas não dentro – de situações cotidianas, cujos personagens (em sua maioria femininos) se mostravam paradoxalmente desprovidos de persona: nenhuma face, nenhuma narrativa explícita, nenhuma história revelada. Apenas momentos congelados de um cotidiano comum – e comum não apenas por sua frugalidade, mas também pela possibilidade de pertencer a qualquer pessoa, personagem ou observador.

 

Menos de dois anos depois, a artista inaugurou outra belíssima exposição na Galeria Rabieh, em São Paulo. Em ‘Um dia comum’, Deborah continuava observando o mundo com seu olhar sensível e atento, capaz de capturar em cenas corriqueiras e aparentemente banais o momento preciso em que a existência humana toca a eternidade – aquele instante fugaz em que tudo ao nosso redor parece entrar em estado de suspensão para que exista apenas um universo interior.

 

Ferreira Gullar (1930-2016) costumava dizer que a verdadeira arte traz em sua essência uma complexa uma alquimia, que é a capacidade de transformar ‘sofrimento em alegria, isto é, em beleza’ (1). Para ele, ‘a arte sempre teve (e tem) a ver com a beleza, porque, do contrário, não nos daria prazer’. E é essa alquimia de que fala Gullar que se percebe na obra de Deborah. Não bastasse o caráter universal das cenas que retrata, a artista transforma solidão e melancolia em lindos azuis, rosas delicados ou cinzas sutis, e (re)constrói, com beleza, poesia e personalidade, a vida de cada personagem – e a de cada um de nós.

 

Como disse Ferreira Gullar em sua frase mais famosa, ‘a arte existe porque a vida não basta’. Artistas como Deborah, ao traduzirem em beleza nosso cotidiano, ampliam os prazeres de nossa vida – e a dimensão de nossa existência.

 

(1) ‘Arte como alquimia‘, texto de Ferreira Gullar publicado no jornal Folha de S. Paulo em 19 de abril de 2015

 

Este texto não teria sido escrito sem a leitura prévia dos seguintes artigos:
Sobre inflexões na pintura de Deborah Paiva‘, Afonso Henrique Martins Luz, Galeria Virgílio, São Paulo, 2012; ‘Exercício de olhar, Aracy Amaral, Museu Lasar Segall, 2012; ‘Um dia comum‘, Douglas de Freitas, Galeria Rabieh, 2017.

Forma, função e fantasia

Stacking Vessels :: ©Utopia&Utility

 

‘Nosso propósito é enriquecer a vida por meio da beleza.’

 

A frase de Pia Wüstenberg traduz precisamente o que sentimos quando nos deparamos com alguma de suas criações: como num sopro, a vida se enche de beleza e encantamento.

 

Designer de produtos com formação no Royal College of Arts, em 2012 Pia fundou, juntamente com seu irmão Moritz, a Utopia&Utility, uma empresa que cria e produz objetos utilitários e decorativos de altíssimo valor estético – e que carregam também em si um enorme valor ético.

 

Por meio de seus projetos, Pia e Moritz buscam (re)valorizar o que eles chamam de habilidades tácitas – aquele conhecimento específico, profundo e apaixonado que os verdadeiros artesãos têm pelos materiais com o quais trabalham e pelo seu ofício. Com criações que invariavelmente unem materiais tradicionais e diferentes entre si (como vidro, metal, madeira ou cerâmica), eles trabalham com uma rede de artesãos espalhados por toda a Europa. No processo de produção, cada peça viaja por diversas pequenas oficinas, passando por inúmeras mãos talentosas e especializadas antes de chegar ao armazém da empresa, na Alemanha.

 

Não bastasse resgatar a tradição dos artífices e, por meio de seu modelo de negócio, promover o crescimento econômico de pequenas oficinas, a Utopia&Utility insere um pensamento inovador em seus objetos, capaz de transformar por completo a convencional percepção que teríamos acerca deles. Além dos impactantes contrapontos (peso versus leveza, opacidade versus transparência, rusticidade versus polidez), resultantes das inusitadas justaposições entre diferentes materiais, as formas elegantes, os encaixes precisos, as belíssimas combinações de cores e texturas e os acabamentos inesperados imprimem a cada objeto a força de uma obra de arte, manufaturada e única.

 

Por fim, muitas dessas peças nos convidam ainda a uma interação – um jogo lúdico por meio do qual, ao separar cada uma das partes que a compõem, nos surpreendemos com novos objetos, cada qual igualmente belo e íntegro em sua forma, projetado inclusive para abarcar outras funções.

 

Ao reunir, na estruturação de seu trabalho, imperativos éticos e estéticos de uma maneira tão orgânica e equilibrada, Pia e Moritz resgatam o conceito platônico de beleza: cada um de seus objetos, ao proporcionar tal prazer e arrebatamento, nos fala diretamente à alma e se coloca como um ‘esplendor da verdade’.

 

Para saber mais, acesse www.utopiaandutility.eu

Philocalie

Philocalie :: Éditions de l’Embellissement :: Paris, 2013

 

Em grego antigo, ‘philocalie‘ é um termo que significa ‘amor pela beleza’. Não por acaso, foi o nome escolhido por Valérie Solvit para o belíssimo livro que lançou com apoio da L’Óreal de Paris (‘Philocalie’, ©Éditions de l’Embellissement, Paris, 2013).

 

Diretora de uma agência de comunicação parisiense e particularmente dedicada à criação de livros que combinam arte, economia e cultura, Valérie pediu a oitenta personalidades, entre artistas, escritores, filósofos, fotógrafos, designers e arquitetos, que apresentassem sua visão sobre a Beleza – não a beleza cosmética, mas a Beleza em seu sentido universal, que transpassa tempos e culturas.

 

De Pierre Bergé aos irmãos Campana, de Charlotte Gainsbourg a Jack Lang, de Christian de Pontzamparc a Monique Lévi-Strauss, o ecletismo das personalidades convidadas a abordar o tema é tão surpreendente quanto as abordagens apresentadas. E o resultado é uma obra artístico-literária absolutamente rica, em forma e conteúdo. Peça quase artesanal produzida em edição limitada, o belíssimo livro de 30cm X 40cm traz um conjunto inédito de fotografias, ilustrações e textos impecavelmente selecionados, justapostos sob uma sofisticada direção de arte.

 

Navegando por suas páginas, belíssimas já por si, nos deparamos com as mais diversas expressões da Beleza: a beleza da maternidade, a beleza do silêncio, a beleza das palavras e do significado das coisas… a beleza da obra de Picasso, a da cidade de Veneza e a da noite numa floresta… a beleza que é mistério, a beleza que é qualquer, a beleza que simplesmente é…

 

Ao revelar olhares tão plurais sobre o mesmo tema, o livro demonstra que a busca pela Beleza, inata em todos nós, permeia cotidianamente nossas visões, ações e relações, colocando-se como um importante conector entre nós e o mundo que nos cerca. E, ao nos oferecer a oportunidade de refletir sobre um tema tão caro e comum a todos, Philocalie celebra não apenas o amor pela Beleza, mas, sobretudo, o amor pela vida.

A estetização do mundo

Zin Lim :: ID#30 :: ©SaatchiArt

 

‘Não estamos mais no tempo em que produção industrial e cultura remetiam a universos separados, radicalmente inconciliáveis; estamos no momento em que sistemas de produção, de distribuição e de consumo são impregnados, penetrados, remodelados por operações de natureza fundamentalmente estética. O estilo, a beleza, a mobilização dos gostos e das sensibilidades se impõem cada dia mais como imperativos estratégicos das marcas: é um modo de produção estético que define o capitalismo de hiperconsumo.’

 

Em seu livro ‘A estetização do mundo’ (escrito em parceria com o crítico de arte Jean Serroy), o filósofo Gilles Lipovetsky propõe um olhar inovador sobre a relação entre a economia liberal e a vida estética contemporânea. Em pouco mais de 400 páginas, Lipovetsky fala com brilhantismo sobre um dos grandes paradoxos do capitalismo de consumo: se por um lado produz efeitos inegavelmente desastrosos nos planos moral, social e econômico, por outro, ao explorar racionalmente e de maneira generalizada as propriedades estético-imaginárias (objetivando o lucro e a conquista de mercados), ele potencializa as dimensões criativas, intuitivas e emocionais, estilizando o universo cotidiano.

 

Segundo Lipovetsky, esse capitalismo contemporâneo busca construir uma imagem artista para seus autores: ‘os jardineiros se tornaram paisagistas; os cabeleireiros, hair designers; os cozinheiros, criadores culinários…’. Diferentemente da época fordista, em que o foco era a produção material, nesse novo modelo o foco é o imaterial – o intangível, o imaginário, o sonho. Assim, apelando para a sensibilidade dos consumidores, arte e estética estariam postas a serviço do mercado, criando-se o que o autor chama de ‘capitalismo artista’.

 

De maneira didática e acessível, Lipovetsky traça um breve fio histórico (da Antiguidade clássica até os dias de hoje) para então expor sua ótima análise sobre as relações contemporâneas entre indústria, consumo, marca, arte e design. Elegante e provocativo, aponta o hiperindividualismo, potencializado pelo compartilhamento em rede de vidas estetizadas, como elo fundamental nessa cadeia de interações complementares e interdependentes.

 

Considerado um dos mais importantes pensadores de nosso tempo, com olhar especialmente voltado às questões de sociologia e filosofia do consumo, da moda e do luxo, Lipovetsky amplia nossa compreensão acerca deste mundo em que ‘tudo segue a lógica da moda: é efêmero e sedutor’, e nos põe em cheque em relação a um de nossos mais primitivos instintos: a eterna busca pela beleza e pelo prazer que ela proporciona à nossa alma.

 

Do mesmo autor, são também excelentes leituras ‘A era do vazio’ (Editora Manole), ‘O império do efêmero’ (Companhia de Bolso) e ‘O capitalismo estético na era da globalização’ (Edições 70 – Brasil).