A alma imoral

Clarice Niskier em A alma imoral :: photo Dalton Valério

 

‘Há um olhar que sabe discernir o certo do errado e o errado do certo. Há um olhar que enxerga quando a obediência significa desrespeito e a desobediência representa respeito. Há um olhar que reconhece os curtos caminhos longos e os longos caminhos curtos. Há um olhar que desnuda, que não hesita em afirmar que existem fidelidades perversas e traições de grande lealdade. Esse olhar é o da alma.’

 

‘A alma imoral’ é uma das mais belas e impactantes peças de teatro dos últimos anos – uma adaptação teatral elaborada e interpretada (de forma elegante e sensível) por Clarice Niskier, a partir do livro homônimo do rabino Nilton Bonder. Partindo do conceito de que, por sua própria essência, a alma humana é transgressora, o texto confunde, desconstrói e reconstrói visões milenares sobre o que sejam corpo e alma, certo e errado, obediência e desobediência, traído e traidor.

 

Bonder coloca a tomada de consciência do ser humano sobre sua própria existência como a origem do corpo moral, que passa a ser o guardião dos costumes, da conformidade e da adaptação – o mantenedor das tradições do passado, que por meio delas colabora para a reprodução da espécie. Já a alma – que carrega em si a rebeldia e a capacidade da mutação – é aquela que possibilita pensamentos e condutas que rompem com essa moral estabelecida, colaborando assim para evolução dessa espécie. Para ele, é a tensão gerada por essas duas naturezas conflitantes e interdependentes, e o diálogo que se constrói entre essas forças – a conservadora e a transgressora – que permite ao homem transcender a si mesmo.

 

‘Não há tradição sem traição. E não há traição sem tradição.’ Basta olhar para a história da humanidade para constatarmos, nas mais diversas formas da expressão humana, a beleza e a verdade dessa afirmação: de Michelangelo a Picasso, de Beethoven a Stockhausen, de Isadora Duncan a Pina Bausch, de Brunelleschi a Frank Gehry, de Shakespeare a Guimarães Rosa… a evolução humana depende fundamentalmente de atos que, pela ótica dos costumes e da tradição, são vistos como traições. Mas verdadeira traição seria não dar voz a nossas almas transgressoras, pois são elas que nos permitem o prazer e a evolução em nossa existência.

 

Sobre a peça: www.almaimoral.com

 

‘A alma imoral’, Nilton Bonder, 1998, Ed. Rocco.

 

 

O suficiente

Piet Mondrian :: Composition C :: 1935

 

O ser humano precisa aprender o significado da palavra “suficiente“. O que é suficiente para mim? O que me basta? Esta pergunta é fundamental, terrível, crítica.‘ A provocação, feita pelo antropólogo Roberto DaMatta em janeiro de 2011 durante uma entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, nunca foi tão atual.

 

Vivemos uma época em que quase não há espaço para reflexão, e determinadas maneiras de ser e ter são difundidas como verdades únicas: a roupa que se ‘deve’ usar, o carro que se ‘deve’ ter, a música que se ‘deve’ ouvir, o lugar para onde se ‘deve’ viajar… São inúmeros meios de comunicação, sites, bloggers e afins difundindo ‘verdades’ sem reflexão, questionamento e, muitas vezes, sem cultura ou repertório. Pior, muitos  compartilhando mediante remuneração produtos e serviços sem esclarecer a seu público a real motivação daquele compartilhamento.

 

Pelas ruas da cidade, cenas patéticas: acompanhadas de um séquito duvidoso, aspirantes a influencers trocam de roupas dentro de tendas improvisadas, posam para fotos usando peças que não lhes pertencem, em frente a lugares que não frequentam, fingindo uma vida que não vivem.

 

Não bastasse a imposição de padrões de consumo de bens materiais, há algo ainda mais nocivo: a imposição de padrões corporais. Leio sobre ritidoplastia, implantes de pômulo, bichectomia, preenchimentos, harmonização facial. Não faz muito tempo, me deparei com relatos de mulheres que ouviram de seus ginecologistas e de outros ‘profissonais de saúde’ que suas vaginas eram inadequadas e que deveriam ser modificadas. O número de pessoas que sofrem e se culpam por não conseguirem reproduzir um determinado corpo, rosto ou modo de vida cresce dia a dia. Baixa autoestima, endividamento, transtorno de personalidade, ansiedade, depressão, bulimia e anorexia são apenas algumas das consequências desse mecanismo.

 

De nada adianta perseguir modelos artificialmente criados. Tudo que se busca sem consciência acaba em angústia – seja pela impossibilidade da conquista, ou mesmo pela própria conquista. Afinal, quem se satisfaz ao conquistar o que não quer, ou o que imaginava querer mas, de fato, nem sabe por quê? Como no famoso conto ‘O espelho‘, de Machado de Assis, o processo de distanciamento de si mesmo é infinito e conduz ao extremo de não nos reconhecermos mais senão por meio da imagem construída por (e para) outros.

 

Não devemos jamais negar nossa própria essência. É em seu caráter único que está o valor de cada ser humano. Ter consciência de quem somos e do que nos é suficiente equivale a ter liberdade. Olhar para dentro de si e perceber qual a medida e qual a maneira daquilo que queremos ser, ter, usar, sentir ou ouvir, é a única forma de ampliar nossa sensação de plenitude e os prazeres que podemos, a cada dia, conferir à nossa própria existência.