Implícito em cada um

Hilal Sami Hilal :: da série Alepo :: 2019

 

 

” – Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza.

  – Quando pergunto das outras cidades, quero que você me fale a respeito delas. E de Veneza quando pergunto a respeito de Veneza.

 – Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que parece implícita. No meu caso, trata-se de Veneza.”

 

O diálogo está em um dos mais conhecidos livros de Ítalo Calvino,  ‘As cidades invisíveis’. Nessa breve ficção, Marco Polo descreve para Kublai Khan, a quem serviu durante anos, algumas das inúmeras cidades do império mongol que conheceu. Composta por textos concisos mas ao mesmo tempo ricos em detalhes e carregados de simbologia, a obra não é a única em que autor demonstra seu fascínio pelo tema das cidades.

Calvino acreditava que, por meio do entendimento da lógica e do funcionamento da vida urbana, compreenderia as condições de grande parte da humanidade na era contemporânea, e ao longo de sua carreira se debruçou sobre tais estudos, tendo produzido tanto ensaios (como a obra póstuma ‘Seis propostas para o próximo milênio’) como ficção (‘As cidade invisíveis’, ‘Se um viajante numa noite de inverno’ e ‘Marcovaldo ou as estações da cidade’, entre outros). “Se meu livro ‘As cidades invisíveis’ continua sendo para mim aquele em que penso haver dito mais coisas, será talvez porque tenha conseguido concentrar em um único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjeturas“, diria ele.

‘As cidades invisíveis’ entrelaça narrativas do viajante veneziano com pequenos diálogos entre ele e seu imperador, em uma construção literária que traz muitas surpresas – às vezes até, surpresas dentro de surpresas – e que, assim como as cidades descritas, deve ser percebida em suas várias camadas. Como o pequeno fragmento reproduzido no início deste texto, por exemplo: se à primeira leitura parece um diálogo coloquial e objetivo, a análise mais atenta convida a refletir sobre a fala de Marco Polo, que, nas entrelinhas, toca em um sentimento universal: o vínculo afetivo, profundo e indelével que cada ser humano tem com uma determinada cidade.

Muitas vezes, a cidade amada é aquela onde nascemos, carregada de lembranças e histórias; outras, é a cidade em que moramos, próxima, íntima, entranhada no cotidiano. Mas há casos também em que a paixão é por uma cidade desconhecida – não é preciso sequer percorrer suas ruas para saber que é àquela cidade que pertencemos.

 

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Em todo o mundo, inúmeros artistas fizeram da paixão por uma cidade inspiração para sua obra. Nova Iorque foi por anos um dos principais personagens dos filmes de Woody Allen e das canções de Lou Reed. Paris foi a estrela de Manet e Truffaut, e Veneza, o grande amor de Visconti. Fellini dedicou a Rimini seu ‘Amarcord’. Cadaqués seduziu Picasso, Dalí, Max Ernst e Man Ray, e Monet e Giverny quase se confudem. As ruas de Londres habitam Vivienne Westwood, Dickens e os Beatles, e as da Sicília vivem em Dolce&Gabbana.

O americano Hemingway declarou seu amor em ‘Paris é uma festa’, e Borges fez da sua  Buenos Aires cenário e personagem, em prosa e poesia. As Noites Brancas de São Petesburgo estão no livro homônimo de Dostoiévski; Praga mora em Kafka, Lisboa em Madredeus, Madri em Almodóvar. Há ainda Alighieri e Florença, Ozu e Tóquio, Pedro Juan Gutiérrez e Havana, Elena Poniatwoska e a Cidade do México. E outros tantos casos de amor.

 

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Aqui por perto, Salvador conquistou o argentino Carybé e Jorge Amado, nascido na capital baiana, caiu de amores mesmo por Ilhéus. Pelas linhas dos escritos de Cora Coralina, percorremos as ruas de Goiás, e pelas de Milton Hatoum, as de Manaus. As pequenas e típicas cidades do interior mineiro estão em toda obra de Guignard, e foi o amor pelo Rio de Janeiro que mudou o nome do cronista João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto para… João do Rio.

O Rio, aliás, talvez rivalize com Paris como cidade-fetiche: de Di Cavalcanti a Helio Oiticica, de Chiquinha Gonzaga a Chico Buarque, de Machado a Garcia-Roza, uma infinidade de artistas teve ou tem a cidade como inspiração para suas obras. Tom Jobim é sinônimo de Rio de Janeiro, que teve ainda Heitor, Melodia, Ferrez, Drummond, Fonseca…

São Paulo? Complexa, caótica e misteriosa, a capital paulista não atrai facilmente, mas sempre teve grandes amantes. É a musa de grande parte das canções de Itamar Assumpção, Adoniran, Crioulo e Mano Brown, e se mostra irresistível por meio das lentes apaixonadas de Cristiano Mascaro. ‘São Paulo’ e ‘Operários’, entre outras inspiradas na metrópole, são obras centrais em Tarsila, e nomes como Gregório Gruber e Newton Mesquita há anos dedicam-se aos volumes, planos e linhas da paisagem paulistana. Ugo Giorgetti, mesmo dizendo que odeia a cidade, fez dela tema de seus documentários e cenário de suas ficções – assim como Laís Bodansky e Gianfrancesco Guarnieri. Claude Lévi-Strauss detestou o Rio, e escreveu ‘Saudades de São Paulo’. E talvez ninguém tenha sintetizado de maneira tão fascinante as imperfeições, os movimentos e contrastes da cidade quanto o mineiro Luis Ruffato, em seu belíssimo livro ‘Eles eram muitos cavalos’.

 

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Em meu texto ‘Dos lugares que nos habitam‘, falei especificamente sobre o papel da literatura na ampliação de nossa capacidade de perceber, sentir e imaginar o mundo que habitamos. No entanto, todas as formas de arte contribuem para que se crie, dentro de nós, uma espécie de acervo particular de imagens, sensações, palavras, aromas e sabores relacionados a lugares. Quanto mais diversa for nossa formação cultural, mais sensível e multifacetada será nossa percepção acerca dos espaços que visitamos (física ou imaginariamente).

Talvez venha daí a ‘inexplicável’ paixão por cidades desconhecidas. Estudamos História e Geografia na escola, ouvimos de amigos relatos de viagens, procuramos informações em guias e reportagens, buscamos descobrir os caminhos de nossos antepassados… mas são os artistas que, transformando em arte suas próprias paixões, nos revelam o intangível – e nos ajudam a descobrir qual é, no mundo, nosso lugar mais implícito.

Tudo é um

Lygia Clark :: ‘O dentro é o fora’ :: 1963

 

Uma trajetória sem começo nem fim

Um lugar que é dentro e fora

Um tempo que é antes, depois e agora

Uma forma única, que se manifesta em mim

 

Desde sua criação em 1858, a enigmática fita de Möbius vem fascinando os mais diversos pensadores – de matemáticos a filósofos, de engenheiros a artistas. Criada pelo alemão August Ferdinand Möbius durante seus estudos sobre a teoria geométrica dos poliedros, é obtida a partir da colagem das duas extremidades de uma fita, depois de uma delas ter sido rotacionada em cento e oitenta graus. Como resultado, tem-se um objeto não orientável que possui apenas um lado e uma única borda e que, por materializar um percurso sem início ou término, é reconhecido hoje como signo universal do infinito.

Além de plasticamente bela, a fita de Möbius instiga e convoca à reflexão por romper com conceitos que pareciam definitivos: dentro e fora, em cima e embaixo, começo e fim. Essa ambiguidade espacial alude também a uma ambiguidade temporal – se não existem dois lados, também não existe um antes e um depois –, conduzindo por fim à ambiguidade existencial: o sujeito e o objeto, o eu e o outro. Dissolve-se o sentido de dualidade e oposição – tudo está infinitamente conectado. Tudo é um.

 

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O SobreTodasAsCoisas nasceu em 2011 em decorrência de um trabalho orientado de autoconhecimento. Naquele momento, na tentativa de entender meu percurso pessoal e profissional, busquei interrelacionar e dar forma concreta e consistente às incontáveis atividades e reflexões a que me dedicava e que me pareciam, até então, dispersas e desconexas. O que meus anos como modelo profissional (e minha paixão por moda) teriam a ver com minha constante dedicação à leitura e à escrita? Como relacionar meu trabalho em branding e design gráfico com meus estudos musicais? Para onde convergiriam  cursos e aprendizados sobre temas tão heterogêneos quanto antropologia,  técnicas de produção em vidro, arte contemporânea e poesia haiku?

Esse processo reflexivo e analítico trouxe à luz uma evidência: a estética sempre havia sido o fio condutor de minha trajetória. E falo de estética como valor, nascido de uma ética – uma maneira específica de ver e de se relacionar com o mundo. Um valor que, ao adquirir consistência e significado, se transforma em atitude perante a vida.

Na observação dos pequenos itens que compõem meu universo cotidiano, a cada mínima escolha, nunca me foi possível prescindir da estética – da Beleza – como valor a admirar e perseguir. Como uma fita de Möbius, o valor estético mostrou ser o caminho único que une todas as coisas de minha vida. Todas as coisas sempre foram, em verdade, uma só.

 

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A busca pela Beleza é inata em todos nós. A Beleza permeia cotidianamente nossas visões, ações e relações, e  se estabelece como importante vínculo entre nós e o mundo que nos cerca. Pode estar presente em todas as coisas – sons, imagens, formas, palavras, lugares, atitudes –, despertando nossos sentidos e provocando emoções, paixões e prazeres.  É um valor a observar, investigar, discutir, decifrar, entender, aprender, construir, procurar, desfrutar.

Neste momento em que completa dez anos, o SobreTodasAsCoisas renova sua imagem e expande sua atuação: incorpora a fita de Möbius à sua identidade visual, reafirmando sua visão de mundo e seus valores estruturais; e, ao estender seu perfil a outras redes sociais, potencializa seu alcance e possibilita a diversificação de suas atividades para além da produção de conteúdo (novidades em breve!).

Sigo em minha trajetória única e infinita pela busca da Beleza, compartilhando meu olhar estético sobre as coisas da vida. E ao dividir descobertas, reflexões e aprendizados, espero poder apurar percepções e sentidos, contribuindo assim para a ampliação de nossos prazeres – os meus, os de todos, e os de cada um de nós.

A vertigem das listas

Alighiero Boetti:: ‘Untitled’ :: 1987 :: photo ©Christie’s

 

O título deste texto foi roubado de um dos livros mais apaixonantes de Umberto Eco. ‘A vertigem das listas’, publicado no Brasil em 2010, dá continuidade a um projeto editorial que teve início com ‘História da Beleza’ e ‘História da Feiúra’ (ambos também disponíveis em português) e, assim como seus antecessores, consiste de um ensaio crítico acompanhado de uma antologia literária e de uma belíssima seleção de trabalhos artísticos, que ilustram e ancoram os textos apresentados.

 

Umberto Eco conta que o livro surgiu de um pedido que recebeu do Museu do Louvre para organizar ‘uma série de palestras, exposições, leituras públicas, concertos e projeções’  sobre algum tema de sua livre escolha. E ele propôs as listas (ou elencos, ou catálogos de enumeração), uma preferência que nasceu de seus estudos sobre textos medievais e joyceanos, e que aparece em quase todos os seus romances.

 

No ensaio, Eco reflete sobre como a ideia dos catálogos mudou no decorrer do tempo e como, de um período a outro, expressou o espírito de cada era. O autor, porém, estabelece antes uma distinção entre ‘listas práticas’ (os convidados de uma festa ou o catálogo de uma biblioteca), e ‘listas poéticas’ (aquelas que se propõem a uma finalidade artística, seja qual for a forma de arte, como a Biblioteca de Babel de Borges ou os nomes bordados nos mantos de Bispo do Rosário). Enquanto as primeiras teriam função referencial e objetivo prático, elencando coisas segundo um modelo de organização e fechando-se de forma harmônica e completa, as outras conduziriam a um universo subjetivo, capaz de nos abrir sucessivas portas e levar ao infinito.

 

Quais são as letras de um alfabeto? E as palavras que com elas construímos? Quantas são minhas memórias? E as estrelas do céu?

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‘Alta fidelidade’ é um livro de Nick Hornby sobre o qual muito já se falou. Publicado em 1995 e levado às telas do cinema cinco anos depois pelas mãos de Stephen Frears, tem como narrador Rob Fleming – um londrino de trinta e cinco anos, proprietário de uma loja de discos à beira da falência, viciado em cultura pop e que não consegue pensar a vida senão em termos de listas dos ‘cinco melhores de todos os tempos’: livros, filmes, bandas, cantores, álbuns, solos de guitarra, notícias, amantes, separações etc.. Et cetera.

 

À época desses lançamentos, criar listas – mentais ou em rodas de amigos – virou febre. Todos queríamos discutir os ‘cinco melhores’ de nossas vidas, em todos os assuntos. No entanto, a brincadeira que divertia também gerava angústia, pois para cada lista de coisas escolhidas, outra ainda maior se montava: a das coisas rejeitadas.

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Qualquer processo individual de seleção e escolha, se feito com consciência, é um exercício de autoconhecimento. Por meio da reflexão – por que este e não aquele? – podemos ampliar o entendimento acerca de nosso momento de vida, de nossa própria visão de mundo, de nossos valores, emoções e prazeres, o que talvez ajude a nos tornarmos um pouco mais seguros diante de novas escolhas.

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Esse exercício de enumeração é sedutor, e pode abrir um leque de infinitas listas em nosso imaginário: músicas, autores, poemas, pinturas, receitas, lugares a visitar… E uma mesma lista pode inclusive adquirir as duas formas, prática ou poética. Como? Os ingredientes culinários registrados em uma lista de compras domésticas, por exemplo, têm caráter puramente prático, mas presentes em um livro sobre culinária mediterrânea podem adquirir valor poético. Da mesma maneira, a lista de nomes dos soldados norteamericanos mortos na guerra do Iraque têm dimensão poética na obra de Jenny Holzer, mas reduz-se ao âmbito prático quando em um documento oficial do Governo dos Estados Unidos.

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Listar nossos cinco, dez ou vinte melhores livros, filmes, canções, o que for, é fazer o esboço de um esprit du temps particular – um recorte que expressa os sentimentos e reflexões de quem somos neste momento. Não retrata quem somos, mas quem ‘estamos’.

 

Talvez amanhã não façamos as mesmas escolhas, pois talvez amanhã não sejamos mais quem somos hoje. Viver é manter-se em movimento, caminhar, evoluir. Não se congelar no próprio saber, nas próprias crenças; é manter-se vendo e revendo filmes, ouvindo e reouvindo canções, lendo e relendo livros, descobrindo e redescobrindo coisas, pessoas, lugares, prazeres. Sobretudo, viver é continuar aprendendo, reaprendendo, e sempre olhando para dentro de si como quem olha para uma lista poética de histórias, gostos, valores, imagens e memórias. Uma lista que termina em et cetera.

A magia permanece

Keith Jarrett :: © Henry Leutwyler / ECM Records

 

No dia 30 de outubro de 2020, foi lançado Budapest Concert, o mais recente álbum de Keith Jarrett, gravação do concerto de abertura de sua última turnê europeia.¹  Poucos dias antes do lançamento, em entrevista concedida ao The New York Times, Jarrett afirmou sentir-se o John Coltrane dos pianistas: ‘Todos os saxofonistas que vieram depois de Coltrane mostraram o quanto devem a ele. Mas nenhum criou, de fato, uma música própria – foram apenas diferentes maneiras de imitá-lo.’

 

Para alguém que não conheça a obra de Jarrett, a fala pode parecer pretensiosa, mas quem alguma vez já o ouviu ao piano sabe que sua genialidade é um divisor de águas na história da música. Seu álbum The Köln Concert, gravado ao vivo na Casa de Ópera de Colônia em 1975, instituiu uma nova forma de jazz, definida por peças autorais, extensas e improvisadas no momento da performance (as quatro peças que compõem esse álbum só tiveram suas transcrições autorizadas pelo autor quase vinte anos depois). Até hoje, The Köln Concert detém o recorde de álbum de piano solo mais vendido da história, em qualquer gênero (três milhões e quinhentas mil cópias).

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Nascido na Pensilvânia em 1945, Keith Jarrett começou a estudar piano antes dos três anos de idade; aos cinco, estava em programas de novos talentos na televisão americana e aos sete, em seu primeiro recital, tocou Mozart, Bach, Beethoven e Saint-Saëns, encerrando a performance com duas composições próprias. Na adolescência, já com uma sólida formação erudita, passou a se dedicar aos estudos de jazz, tendo ingressado, logo em seguida, na prestigiada Berklee College of Music, em Boston. Um ano depois, foi contratado por Art Blakey para tocar com os Jazz Messengers em Nova Iorque (quando então conheceu o baterista Jack DeJohnette, com quem acabou estabelecendo uma duradoura parceria musical, complementada em 1983 pelo baixista Gary Peacock na formação do Standards Trio). Em pouco tempo, líder de pequenos grupos jazzísticos e já gravando suas próprias composições, Jarrett foi convidado a integrar a banda de Miles Davis, a quem até hoje cita como influência determinante em sua vida profissional e pessoal, e também na estruturação de seu pensamento sobre música e improvisação. (Anos mais tarde, Bobby McFerrin, outro gigante da música contemporânea, declararia o quanto a maneira pessoal e única de Keith Jarrett captar a essência de uma música, e de captar a própria essência enquanto músico, havia sido fundamental em sua formação – história que já contei neste blog, no texto ‘Ouvindo a própria voz‘.)

 

Considerado o mais importante músico vivo, Keith Jarrett é também o que mais soube conciliar, com regularidade e incomparável competência, música erudita, música popular e jazz. Sua imensa obra – quase duzentos álbuns, se considerados aqueles em que não é o bandleader – inclui desde releituras de temas de musicais da Broadway e clássicos da canção popular americana até obras referenciais da música erudita ocidental, como ‘O cravo bem temperado’ e as Variações Goldberg, de J. S. Bach. Suas performances sempre se caracterizaram por serem únicas, muito intensas e surpreendentes – somados à sua inquestionável capacidade criativa, atributos do piano, da sala de concertos, o mood do público e até mesmo peculiaridades da cidade onde estava se apresentando eram influências para as escolhas de Jarrett durante um concerto. ‘Não faço ideia do que vou tocar, antes de uma apresentação. E se tenho alguma ideia musical, digo ‘não’ a ela.’ Em cada show, a entrega total de Jarrett – física, intelectual, emocional e psicológica – ganhava a dimensão de magia: os sons extraídos do piano pareciam ser a transmutação da própria alma do artista.

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Jarrett se apresentou pela última vez no Carnegie Hall, em janeiro de 2017. Fazia poucos dias que os Estados Unidos estavam sob administração de um controverso (já ex) presidente, e o artista começou sua apresentação com um discurso crítico, complementado por comentários viscerais nos intervalos entre os longos arcos musicais. Semanas depois, um outro concerto que aconteceria no mesmo Carnegie Hall foi cancelado, assim como todas as futuras apresentações daquela turnê. A genérica alegação de sua gravadora citava problemas de saúde (Jarrett tinha um diagnóstico de síndrome da fadiga crônica desde 1997).

 

E foi apenas nessa recente entrevista ao The New York Times que Keith Jarrett revelou detalhes sobre sua condição física: um primeiro e leve derrame em 2017, seguido de outro acidente vascular grave no ano seguinte. Passados quase três anos, Jarrett ainda tem o corpo parcialmente paralisado, caminha com dificuldade, apoiado em uma bengala, e acredita que nunca mais voltará a tocar sua música. ‘No momento, não sinto que sou um pianista. É tudo que posso dizer a esse respeito.’

 

Essa perspectiva escancara uma condição brutal, frustrante e dolorosa. Assim como Callas e sua voz, ou Picasso e suas atividades plásticas, Keith Jarrett e seu piano foram, até então, uma existência indissociável – como também foi a relação entre o artista e seu público. Nesse concerto do Carnegie Hall, Jarrett chegou a agradecer à plateia por tê-lo feito chorar de emoção; e foi a certeza de uma conexão especial com os espectadores no concerto de Budapeste que o impeliu a registrar aquele momento.

 

O legado de Keith Jarrett permanecerá por dezenas de gerações – álbuns de estúdio, registros de concertos, transcrições de suas músicas, entrevistas… mas a magia de um encontro entre o artista, seu piano e seu público talvez agora só possa existir na memória e no coração de quem, como eu, teve a oportunidade de vivenciar essa experiência.

 

Obrigada, Keith Jarrett. Levarei para sempre um pouquinho de sua mágica dentro de mim.

 

¹ A ideia inicial de Jarrett e sua gravadora era lançar apenas Munich 2016, registro da apresentação de encerramento dessa mesma turnê e de fato lançado em 2019; no entanto, o pianista estava tão entusiasmado com sua performance no Béla Bartók National Concert Hall que não apenas quis divulgá-la, como quase batizou o respectivo álbum de The Gold Standards.

Tempo, tempo, tempo

Robert Rauschenberg :: ‘Third Time’, 1961 :: ©Robert Rauschenberg Fondation

 

As mitologias tiveram papel fundamental na construção das culturas ocidentais. Com suas histórias sem começo, meio ou fim, sem tempo e sem lugar, elas desprezam os limites exigidos pela racionalidade e permitem que nos apropriemos de suas narrativas, colocando-as em nosso tempo e nosso lugar. Mitos não são fatos – eles ‘acontecem’ dentro (e fora) de nós, celebrando o eterno por meio do temporal, o permanente por meio do circunstancial, o absoluto pelo fragmentado, o necessário pelo contigente. É por sua verdade psicológica, e não pela histórica, que os mitos têm tamanha capacidade de adesão.

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Escrevo este texto em abril de 2020, no dia em que completo trinta dias em isolamento em função da pandemia da Sars-Covid-2019. São trinta dias com o cotidiano de atividades, deslocamentos, interações e escolhas totalmente alterado. No decorrer desse período, muitas vezes me peguei refletindo sobre o tempo – o tempo imposto e o desejado; o tempo das coisas, o do outro, o meu tempo; o tempo de agora, o passado e o futuro; o tempo fugaz e o infinito. O tempo.

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Na mitologia grega, a primeira referência a Tempo é representada por Aion, um ser incorpóreo, serpentino, que pulsa em contração e expulsão como numa respiração cósmica e infinita. Aion casa-se com Ananké (Necessário) e juntos botam o ‘ovo do mundo’, simbologia para a inevitabilidade do destino – tudo o que existe é filho do Tempo; por trás de tudo que ‘é como é’ (o Necessário) está uma pulsação (o Tempo), determinando que tudo aparece para depois desaparecer.

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Se Aion é o tempo cíclico e imensurável, Cronos é a representação do tempo linear e quantitativo. Filho de Gaia (Terra) e Urano (Céu), e responsável pela separação dos pais1, ele se casa com sua irmã Rheia (Fertilidade) e juntos geram seis filhos. Temendo ser destronado pelos descendentes, Cronos devora cada um logo após seu nascimento – apenas Zeus (Ordem e Justiça) é salvo pela mãe, que engana o marido ao lhe entregar uma pedra embrulhada como se fosse o caçula. Adulto, Zeus obriga o pai a ingerir uma poção mágica, que o faz vomitar os filhos deglutidos.

 

Cronos é o devorador do destino – aquele que tanto gera quanto destroi. Uma representação para a ideia de que tudo nasce do tempo, e nada resiste a ele.

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A terceira referência ao Tempo encontrada na mitologia grega é Kairós (Momento Certo/Momento Oportuno). Filho de Zeus (que, depois de derrotar o pai, torna-se Deus dos deuses) e Tyche (Sorte), é dotado de uma beleza estonteante e representado com asas nos pés e nas costas. Simboliza o tempo psicológico, volátil, ligeiro, o tempo da oportunidade e da mudança. É um tempo qualitativo, circular e não mensurável; o tempo da criação, rápido, efêmero.

 

Kairós é associado também à eternidade (soma de todos os tempos, onde estão todas as oportunidades), à sabedoria (o tempo aproveitado), a Eros (pois a oportunidade seria um ato amoroso do destino para conosco) e a Dionísio (na representação da alegria de estar vivo).

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Por fim, os gregos nos trazem ainda o mito de Acme (Apogeu) como outra referência ao Tempo. Uma das Horas – as filhas de Zeus e Themis (Justiça) que eram deusas do ano, das estações climáticas e da ordem natural da vida –, Acme é a simbologia para o tempo da maturidade: o ápice, o momento máximo de uma vida.

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A ideia de um tempo dividido em três – passado, presente e futuro – se impôs às civilizações ocidentais a partir do século VIII, com a consolidação das crenças judaico-cristãs. No entanto, apesar da universalidade presente em suas diversas simbologias, o tempo não teve a mesma percepção ou compreensão em todas as culturas. Algumas sociedades viveram sob a égide do tempo recursivo, em que o presente tinha por objetivo honrar o passado e a memória, dignificando os ancestrais. Outras tiveram uma concepção cíclica do tempo, segundo a qual nada desaparece – tudo retorna dentro de uma ordem maior, que fornece uma previsibilidade incompreensível mas com a qual é necessário estar em harmonia.

 

Hoje, vivemos um tempo cronológico entendido como linha reta e pensado como flecha. Mesmo que com diferentes contagens (cristãos, muçulmanos e judeus, por exemplo, guiam-se por calendários discordantes), toda a concepção de tempo está projetada para um espaço que não se habita. É uma trajetória em direção ao futuro, ao que ainda não existe nem existiu no passado. Por termos esse entendimento, buscamos antecipar o que ainda não aconteceu – ansiedade, tentativas de controle e imediatismo no usufruto do prazer decorrem dessa forma de compreensão do tempo.

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Muito tem se falado sobre como a sociedade vai se comportar após a pandemia. São diversas as perguntas: Como será o mundo pós-Covid-19? Que mudanças faremos? Como lidaremos com nosso cotidiano, com nossos afetos, com o consumo, a natureza, a espiritualidade? No entanto, talvez a indagação mais importante seja outra: como será nossa relação com o tempo?

 

Não acredito que simples mudanças de comportamento possam fazer surgir um mundo diferente,’pós-Covid-19. Para que se mude um percurso, é preciso mudar a cartografia, o modelo de percepção da realidade. Enquanto entendermos o tempo presente apenas como uma ponte entre passado (memória) e futuro (expectativa), nada irá mudar – continuaremos a caminhar ansiosos, sendo devorados por Cronos e ignorando Kairós, o tempo qualitativo capaz de conferir significado à nossa existência.

 

O tempo vale pela forma como está preenchido. Há momentos que não têm nenhuma importância, e outros que dão sentido à vida, por magníficos que são. Cabe a nós, todos e cada um, transformarmos nossa relação com o tempo de forma a desenhar um novo percurso. Assim, quem sabe, seremos capazes de perceber a beleza e a oportunidade que existe em cada instante, e preenchê-los com sabedoria e amor, conscientes de sua efemeridade e alegres pelo simples fato de estarmos vivos.

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1   Segundo o poeta grego Hesíodo (aprox. 750-650 a.C.), o princípio é o Caos, e dele surgem Gaia (a Terra), Tártaro (a Abismo), Eros (o Amor), Érebo (as Trevas) e Nix (a Noite). Gaia gera sozinha as Óreas (Montanhas), Ponto (o Mar) e Urano (o Céu) – este, seu igual, para ser quem que a cobriria completamente e com quem criaria um lar eterno para os deuses -bem-aventurados’.

 

Gaia e Urano geram dezoito criaturas, sendo doze titãs e Cronos o mais novo e terrível deles. Porém, capaz de prever o futuro, Urano passa a temer o poder dos filhos e decide encerrá-los de volta no ventre da mãe. Gemendo de dor e sem poder parir, Gaia implora aos titãs que libertem os irmãos e se vinguem do pai, mas apenas Cronos aceita a missão. Ela então retira aço de seu peito e, com ajuda de Nix, faz uma foice dentada e dá ao filho. Este se esconde, esperando a chegada da noite, quando seu pai mais uma vez descerá para cobrir a esposa. Surpreendido por Cronos, que o ataca e castra, Urano (Céu) é separado para sempre de Gaia (Terra).

Intolerância

scene from ‘Intolerance: Love’s Struggle Throughout the Ages’ :: D. W. Griffith ::  1916

 

‘Intolerance: Love’s Struggle Throughout the Ages’ (‘Intolerância’, em português) foi lançado em 1916 por D. W. Griffith. Com custo de produção sem precedentes à época, o filme, ainda mudo, tem cerca de quatro horas de duração e, por meio da dramatização de um poema de Walt Whitman, interliga quatro episódios da história da humanidade profundamente marcados pela intolerância: a guerra da Babilônia, na Mesopotâmia (cerca de seis séculos a.C.); a crucificação de Cristo em 33, na Judéia; a noite de São Bartolomeu, na França do século XVI; e o amor de dois jovens durante uma greve de trabalhadores, nos Estados Unidos da era moderna.

 

A intransigência com relação a opiniões, atitudes, crenças ou modos de ser que difiram dos nossos próprios, e a decorrente repressão, por meio da coação ou da força, das idéias que desaprovamos, têm sido a origem de enorme sofrimento e incontáveis barbáries ao longo da história. A incapacidade de aceitar e de conviver com a diferença talvez seja um dos maiores males que podemos causar a nós mesmos.

 

Alguns anos atrás, o julgamento sobre a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos foi tema de grande repercussão junto à opinião pública brasileira. Em meio a artigos, reportagens e manifestações, uma matéria feita por um jornal de grande circulação teve, sobre mim, grande impacto. Na matéria, duas mulheres eram entrevistadas: a primeira contava do sofrimento vivido por ter sido obrigada a gestar por nove meses um feto que sabia anencéfalo – mesmo tendo recorrido a várias instâncias judiciais, não obteve autorização para um aborto a tempo de fazê-lo de maneira segura. Dizia ter passado todo tempo de gravidez preparando-se para o enterro de um filho que nem chegou a conhecer, e que a experiência fora traumática a ponto de fazê-la desistir de uma nova gravidez.

 

A segunda entrevistada era uma mulher que também havia tido uma gravidez de anencéfalo, mas que, diferentemente da primeira, tinha optado por levar a gravidez até o final, convicta de que aquela era a conduta correta. Mãe já de um menino de três anos, tinha enterrado há pouco seu natimorto, e esperava apenas recuperar-se fisicamente para tentar uma nova gravidez.

 

O que chamava minha atenção nas entrevistas não era apenas a diferença de postura que duas pessoas (de condições sócio-econômicas e culturais muito próximas) tinham frente a uma mesma situação, mas o fato de que, enquanto a primeira defendia o direito à escolha, a segunda condenava veementemente quem viesse a fazer uma escolha diferente da dela. Ela defendia que não houvesse a possibilidade da escolha – afinal, sendo sua conduta ‘obviamente’ a correta, por que permitir que alguém tivesse outra, ‘errada’?

 

Na origem da negação da legitimidade de diferentes opiniões, atitudes, crenças ou modos de ser estão a vaidade e a arrogância. Julgar que o outro seja menos competente para fazer escolhas e traçar caminhos, acreditar que a nossa verdade deva ser também a verdade do outro mostra o quanto ainda devemos evoluir como seres e como cidadãos. Milhares de anos depois, após tanto conhecimento, tantas descobertas e tecnologias, ainda permitimos que a intolerância escravize a liberdade de escolha a que todos temos direito.

 

Para saber mais: http://www.youtube.com/watch?v=GF7ho_-1aWo

A chave

Kitagawa Utamaro :: Lovers in an upstairs room :: 1788 :: ©The Trustees of the British Museum

 

27 de fevereiro Como eu imaginava. Minha esposa mantém um diário. Até hoje tomei a precaução de não escrever isso neste caderno, mas na verdade minha atenção foi vagamente despertada alguns dias atrás.Não sou tão vil a ponto de ler o diário de minha própria esposa sem sua permissão. No entanto, embuído de maus sentimentos, tentei retirar com destreza a fita adesiva que o lacrava, de forma a não deixar marcas. Queria assim demonstrar a minha mulher que uma fita apenas seria inútil.

7 de março…Foi então que encontrei a chave caída no mesmo lugar. Pensei que devia haver alguma razão e, abrindo a gaveta, retirei o diário do meu esposo. Para minha surpresa, estava selado com uma fita adesiva da mesma forma como eu tinha feito. Meu marido quererá por certo dizer-me “Experimente abri-lo”?Estava curiosa para tentar puxar a fita sem deixar marcas. E foi por pura curiosidade que tentei fazê-lo.’

 

Jun’Ichiro Tanizaki é um dos mais respeitados nomes da literatura japonesa. Até sua morte (em 1965, aos setenta e nove anos), Tanizaki nunca tinha viajado ao Ocidente; e muito embora em sua juventude tivesse flertado com a modernidade ocidental, jamais foi influenciado pelos valores ou pela moral cristã.

 

Essas escolhas foram determinantes na estruturação de seu universo ficcional. Integrante da Tanbiha, escola literária que buscava a valorização da arte e da beleza (em contraposição ao naturalismo e ao objetivismo predominantes à época), Tanizaki fundamentou toda sua obra na cultura tradicional japonesa, explorando em particular questões ligadas ao erotismo, ao desejo e à intimidade, emocional e física, inerente aos relacionamentos afetivos.

 

‘A chave’, publicado originalmente em 1956, conta a história da vida sexual de um casal de meia-idade por meio de fragmentos dos diários que cada qual, marido e esposa, escreve em segredo. Em dado momento da narrativa, no entanto, ambos passam a suspeitar de que estão sendo lidos um pelo outro. Sem saber se cada confissão é real ou se está sendo forjada apenas para que o outro a leia, personagens e leitor entram num sutil e fascinante jogo que mescla erotismo, desejo, hipocrisia e ambigüidade.

 

São pouco mais de cewm páginas de uma literatura primorosa. Despido da noção de pecado – ocidental e cristã –, Tanizaki explora questões difíceis e delicadas como infidelidade, (in)satisfação, voyeurismo e autodestruição, sem juízo de valor e de forma absolutamente elegante. São diálogos e situações de aparente simplicidade, mas que provocam um despertar de sentidos e um profundo questionamento sobre os limites do desejo e do prazer.

 

‘A chave’ foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras. A mesma editora publicou no ainda ‘Voragem’, ‘Diário de um velho louco’ e ‘Amor insensato’, entre outras obras de Tanizaki.

Ouvindo a própria voz

Bobby McFerrin :: photo Carol Friedman

 

‘É isso que você quer fazer? É desse jeito que você imagina explorar a música?’

 

Bobby McFerrin conta que, ainda jovem, impactado ao ouvir o trabalho que Keith Jarrett fazia ao piano, eram essas as perguntas que vinham à sua mente. A vulnerabilidade de uma pessoa sozinha num palco sempre o tinha fascinado, e ele se perguntava se seria capaz de, como Jarrett, captar a essência de uma música, de suas harmonias, e de captar a sua própria essência – para então, ao cantar, fazê-lo como Jarrett fazia ao piano: com sua verdade e à sua maneira, pessoal e única.

 

Foram quase três anos reclusos, sozinho, cantando, gravando, ouvindo e (re)conhecendo sua própria voz. Durante os dois primeiros, Bobby sequer ouvia outros cantores – temia ser influenciado por algum outro jeito de cantar, e acreditava que isso o distanciaria dele mesmo. Precisava descobrir-se, saber e ter propriedade sobre o som que emanava, conhecer e explorar as possibilidades da própria voz.

 

Também a capacidade de improvisação era para ele um desafio a vencer. Queria descobrir o prazer de se manter em movimento sem saber exatamente aonde chegar… deixar-se ir como uma criança, sem se pautar pelo controle dos conhecimentos teóricos. E então passou outros tantos anos exercitando seu próprio jeito de improvisar – nas palavras dele, ‘exercitando a superação do medo de improvisar, do medo de assumir riscos, de parecer tolo e de não ter ideias suficientes’.

 

Hoje, mais de trinta anos depois, Bobby McFerrin é (re)conhecido em todo o mundo como um dos maiores talentos da música contemporânea. Além da genialidade musical, em cada nota que sua voz emite, e em cada gesto seu, transparecem também uma naturalidade e uma elegância raríssimas, decorrentes da perfeita harmonia existente entre o que faz, o que aparenta e quem verdadeiramente é.

 

A verdade de Bobby McFerrin pode ser também uma alegoria para cada um de nós. Afinal, ser e saber-se único, ouvir a própria voz, expressar sua essência, não temer o desconhecido e experimentar a alegria de se manter em movimento… nada é mais belo, elegante e prazeroso. E é isso o que realmente importa.

 

Para saber mais: http://bobbymcferrin.com/

 

Para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=ktotbE4rN2g (entrevista)

O poder da dúvida

Victor Brauner :: The Triumph of Doubt :: 1946 :: ©Art Institute of Chicago

 

Vivemos uma era de certezas – ou pseudocertezas. Modos de ser, de vestir, de se portar, respostas a questões ou atitudes frente a situações parecem ser únicos, óbvios e indiscutíveis. Em tempos de personal services (trainer, shopper, organizer, styler…!!!), livros de autoajuda e manuais de how-to – sem falar na bíblia contemporânea, o Instagram –, não atender ao must be, ao must have, ou não ter a imediata (e esperada) resposta a qualquer questionamento parece demonstração de ignorância ou fraqueza.

 

Em 2008, em entrevista a Franthiesco Ballerini, então correspondente do jornal O Estado de S. Paulo em Los Angeles – em um contexto de crítica à TV por seu potencial destrutivo da capacidade de reflexão – o premiado ator Alan Arkin fez uma interessante observação: ‘Hoje, quando se faz uma pergunta a um jovem, todos têm uma resposta, ninguém mais reflete para responder. Ninguém mais diz “deixe-me pensar sobre isso”. Até Einstein dizia isso o tempo inteiro, e ele era razoavelmente esperto.’

 

A dúvida é uma das maiores propulsoras do desenvolvimento humano, e a capacidade de reflexão um de nossos maiores patrimônios. Certezas e unanimidades não são apenas burras, mas também estagnantes – só é possível crescer, social e individualmente, por meio do constante questionamento. Quem não se permite dizer ‘não sei, preciso pensar sobre isso’, não conhece o prazer de ouvir a si mesmo – em toda sua alma, razão e sentimentos – e de construir a própria identidade.

 

Usufruir da liberdade de pensamento, exercitar competências emocionais e intelectuais, tomar propriedade sobre seu próprio modo de ser, de pensarm de vestir ou de se portar, bem como estar pleno e íntegro em respostas e atitudes perante a vida (ciente também das responsabilidades nelas implicadas) é um dos maiores prazeres que o ser humano pode proporcionar a si mesmo – e é a forma mais elegante de vivenciar a existência, cada qual tão própria quanto única.

À mesa

Henri Matisse :: La Desserte (Harmonie Rouge) :: 1908 :: ©hermitagemuseum.org

 

O ser humano talvez já nem se lembre de que o vestir teve, um dia, um significado apenas funcional em sua vida – proteger o corpo das intempéries. Passado esse primeiro e longínquo momento, no decorrer dos séculos o vestir foi incorporando outras significações – sociais, religiosas, ou mesmo ideológicas e políticas – até se tornar, como é hoje em dia, um ato carregado de códigos, rituais e cuidados.

 

Em relação ao comer, a história não difere muito – se o alimento teve, um dia, função apenas de garantir sobrevivência ao ser humano, com o passar do tempo ganhou desdobramentos e, permeado por questões econômicas, sociais, religiosas ou geográficas, o alimentar-se também adquiriu seus códigos, rituais e cuidados.

 

Ao olharmos essa evolução de modos e costumes, podemos ainda observar um outro aspecto, mais sutil e não menos relevante: a necessidade do ser humano de conferir maior prazer a atos que, por essenciais à sua própria existência, lhe são obrigatórios. À medida que o homem adquiriu consciência de sua própria existência e percepção de seus gostos e prazeres, não lhe foi mais possível suportar a infinita repetição, mecânica e cotidiana, de afazeres que não propiciassem conforto também à sua alma. Ampliar o sentido desses afazeres tornou-se necessidade imperiosa.

 

A quaisquer atos e realizações do ser humano, bem como às diversas maneiras de nos relacionarmos com eles e entre nós mesmos, podemos conferir beleza e, por decorrência, propiciarmo-nos prazer. Na introdução de seu livro ‘A beleza salvará o mundo’ (Ed. Difel, 2011), o filósofo Tzvetan Todorov explica que a beleza, seja a de uma paisagem, a de um encontro ou a de uma obra de arte, não remete a algo para além dessas coisas, mas nos faz apreciá-las enquanto tais – e, assim, nos permite experimentar a sensação de habitar plena e exclusivamente o presente.

 

Estar à mesa para desfrutar de uma refeição é uma das mais frequentes e ricas oportunidades que temos de experimentar tal sensação – e é espantoso ver quantas pessoas a desperdiçam diariamente, se relacionando com o alimentar-se como o faziam aqueles nossos ancestrais.

 

À mesa, a forma dos objetos dispostos, o paladar de um certo alimento, o encontro com o outro, ou o encontro consigo mesmo, tudo são possibilidades de desfrutarmos dessa plenitude – no dizer de Todorov, ‘sensação fulgaz e ao mesmo tempo infinitamente desejável, pois graças a ela nossa existência não decorre em vão; graças a esses momentos preciosos, ela se torna mais bela e mais rica de sentidos.’

 

Sejamos, pois, atentos e generosos conosco mesmos, lembrando diariamente que cada refeição representa uma chance de nos encontrarmos com o belo, de conferir prazer a nós mesmos e, assim, de ampliar o sentido de nossa existência.