Inovando nossa história

Fábio Galeazzo :: Mosaico :: Conspiração BR :: 2012

 

Segundo alguns historiadores, o primeiro registro da azulejaria no Brasil data de cerca de 1620, quando peças de cerâmica vidrada vieram de Portugal para ornamentar o Convento de Santo Amaro de Água-Fria, em Olinda. A partir de então – seja pela força com que representava a cultura da metrópole, seja por sua beleza plástica ou por suas características de conforto térmico (bastante adequadas ao nosso clima) –, o azulejo foi sendo cada vez mais incorporado às construções brasileiras.

 

Presentes inicialmente em painéis nas edificações de uso religioso ou governamental, em poucas décadas as belíssimas peças passaram a ser importadas não apenas de Portugal, mas também da França e da Holanda (países que tinham em sua produção de azulejos importante forma de expressão artística) e começaram a revestir também fachadas de construções urbanas.

 

Ainda no final do século XIX, o azulejo começou a ser produzido no Brasil – mas foi a partir do início do século XX nossa produção tornou-se regular. E muito embora nesse período alguns arquitetos tenham abandonado o uso desse material (numa rejeição a elementos representativos do período colonial), o movimento moderno brasileiro, preocupado em ‘casar tradição com modernidade e fazer dos materiais nacionais e tradicionais ponte entre o colonial e a vanguarda’ *, (re)incorporou o azulejo à sua arquitetura. A partir desse momento, a azulejaria nacional passou a ser uma forte expressão artística de nossa própria cultura, por meio da qual se representavam, junto a formas geométricas, elementos de nossa paisagem, nossa fauna e nossa flora.

 

Sob essa perspectiva histórica, os azulejos desenhados pelo designer Fábio Galeazzo e produzidos pela Azulejaria Brasil (Cerâmica Antigua) ganham dimensão ainda maior. Numa coleção batizada de Conspiração BR (20 estampas subdivididas em 4 temas), Galeazzo resgata e relê, com maestria, um dos mais importantes elementos de nossa arquitetura.

 

Da escolha do formato (15cm X 15 cm, o mais tradicional em nossa produção), passando pela definição dos temas (que vão das imagens presentes na Festa do Divino às estampas tradicionalmente encontradas na chita brasileira) até a montagem da paleta de cores, Galeazzo revela profundo conhecimento, extrema sensibilidade e uma enorme capacidade de inovação, e obtém resultados plásticos de beleza incontestável.

 

Aliando domínio técnico e teórico, sensibilidade e talento, Galeazzo demonstra que o design de interiores pode, sim, a um só tempo, ser inovador e contar história, ser lúdico e propagar cultura – sem deixar de proporcionar beleza aos ambientes, prazer aos olhos e conforto à alma.

 

Para saber mais:

https://fabiogaleazzo.com.br/portfolio/conspiracao-br/

http://www.antigua.com.br/

 

* Marcele Cristiane da Silveira, “O Azulejo na Modernidade Arquitetônica”, dissertação de mestrado, FAUUSP, 2008.

À mesa

Henri Matisse :: La Desserte (Harmonie Rouge) :: 1908 :: ©hermitagemuseum.org

 

O ser humano talvez já nem se lembre de que o vestir teve, um dia, um significado apenas funcional em sua vida – proteger o corpo das intempéries. Passado esse primeiro e longínquo momento, no decorrer dos séculos o vestir foi incorporando outras significações – sociais, religiosas, ou mesmo ideológicas e políticas – até se tornar, como é hoje em dia, um ato carregado de códigos, rituais e cuidados.

 

Em relação ao comer, a história não difere muito – se o alimento teve, um dia, função apenas de garantir sobrevivência ao ser humano, com o passar do tempo ganhou desdobramentos e, permeado por questões econômicas, sociais, religiosas ou geográficas, o alimentar-se também adquiriu seus códigos, rituais e cuidados.

 

Ao olharmos essa evolução de modos e costumes, podemos ainda observar um outro aspecto, mais sutil e não menos relevante: a necessidade do ser humano de conferir maior prazer a atos que, por essenciais à sua própria existência, lhe são obrigatórios. À medida que o homem adquiriu consciência de sua própria existência e percepção de seus gostos e prazeres, não lhe foi mais possível suportar a infinita repetição, mecânica e cotidiana, de afazeres que não propiciassem conforto também à sua alma. Ampliar o sentido desses afazeres tornou-se necessidade imperiosa.

 

A quaisquer atos e realizações do ser humano, bem como às diversas maneiras de nos relacionarmos com eles e entre nós mesmos, podemos conferir beleza e, por decorrência, propiciarmo-nos prazer. Na introdução de seu livro ‘A beleza salvará o mundo’ (Ed. Difel, 2011), o filósofo Tzvetan Todorov explica que a beleza, seja a de uma paisagem, a de um encontro ou a de uma obra de arte, não remete a algo para além dessas coisas, mas nos faz apreciá-las enquanto tais – e, assim, nos permite experimentar a sensação de habitar plena e exclusivamente o presente.

 

Estar à mesa para desfrutar de uma refeição é uma das mais frequentes e ricas oportunidades que temos de experimentar tal sensação – e é espantoso ver quantas pessoas a desperdiçam diariamente, se relacionando com o alimentar-se como o faziam aqueles nossos ancestrais.

 

À mesa, a forma dos objetos dispostos, o paladar de um certo alimento, o encontro com o outro, ou o encontro consigo mesmo, tudo são possibilidades de desfrutarmos dessa plenitude – no dizer de Todorov, ‘sensação fulgaz e ao mesmo tempo infinitamente desejável, pois graças a ela nossa existência não decorre em vão; graças a esses momentos preciosos, ela se torna mais bela e mais rica de sentidos.’

 

Sejamos, pois, atentos e generosos conosco mesmos, lembrando diariamente que cada refeição representa uma chance de nos encontrarmos com o belo, de conferir prazer a nós mesmos e, assim, de ampliar o sentido de nossa existência.

Aforismos contemporâneos

Mira Schendel :: sem título (da série ‘Escritos’) :: 1965 :: ©moma.org

 

Pequenos esclarecimentos àqueles homens e mulheres adultos, bem nascidos, bem nutridos e tão abastados quanto mal criados, que a cada dia permeiam mais o cotidiano urbano. (A propósito de uma conversa que, particular que seria, em ambiente social me foi impingida aos ouvidos pelas centenas de decibéis com que emanava).

 

Ser não é sinônimo de ter.

 

Bolsa não é troféu.

 

Sapato não é pedestal.

 

Sala de cinema não é parque de diversões, e mesa de restaurante não é tribuna.

 

Intervenção estética não é assunto de utilidade pública.

 

Crachá de empresa não é medalha de honra ao mérito.

 

Os conceitos de ‘exibição’ e ‘elegância’ são excludentes quando aplicados a pessoas.

 

Pode-se converter identidade em imagem. O inverso, porém, não é verdadeiro.

 

Cada personal contratado é uma incompetência assumida.

 

Decote e comprimento de saia (ou vestido) crescem em proporção direta. Nível alcoólico e adequação, em inversa.

 

Presença de palavrão significa ausência de vocabulário.

 

É preciso ser bonita(o) para ser modelo, mas não é preciso ser modelo para ser bonita(o).

 

O uso de gentileza e cortesia não guarda relação de proporcionalidade com o nível socioeconômico do interlocutor.

 

Em tempo:

 

Elegância: sf. ‘distinção de porte, de maneiras, garbo’. XVI. Do lat. elegantia –æ: requinte, bom gosto, asseio, beleza de formas.

 

Elegante: adj. ‘belo de formas, cuidado no trajo, educado, polido’. XVI. Do lat. elegans –antis: que sabe escolher, bem escolhido, distinto, esmerado, conveniente, honrado.

Distinção: sf. ‘discriminação, separação, diferença’: discrimen, -inis, separatio, distinctio, discretio. XVI. Do lat. distinctio –onis.

Múltiplas escolhas

Pantone guide :: ©Pantone.com

 

Catálogos referenciais vêm sendo utilizados desde o século XVI como instrumentos de trabalho por todas as áreas das artes decorativas. Tendo como finalidade experimentação, documentação, comercialização ou divulgação, são peça dotadas de uma beleza muito particular pois, reunindo inúmeras possibilidades de cores, desenhos, formas ou texturas, trazem aos olhos a percepção da variedade – e, fazendo-o dentro de certa ordem criteriosa, possibilitam relfexão, compreensão e prazer. (Citando Montesquieu: ‘Não basta mostrar muitas coisas à alma: é preciso fazê-lo numa ordem, pois assim nos lembramos do que vimos e começamos a imaginar o que veremos; a alma assim se felicita por sua amplitude e sua capacitade de penetração.‘)

 

Sobre esse tema, em 2008 o Cooper-Hewitt Museum exibiu uma belíssima exposição chamada ‘Multiple Choices – From Sample to Product’ (‘Múltiplas Escolhas – Do Modelo ao Produto‘). Os itens expostos iam de catálogos de vendas com modelos de botões de uma indústria francesa no século XVIII, passando por placas cerâmicas com referências das cores das porcelanas de Sèvres, até os atuais Pantone® Guides – cadernos, livros e objetos de beleza ímpar, capazes de encher os olhos e tirar o fôlego.

 

O contato com o universo de cores, formas e suas infinitas associações é uma experiência multisensorial capaz de produzir os mais diferentes efeitos sobre nós. Resultantes das diferentes reflexões da luz que incidem sobre um objeto e chegam a nossos olhos para então serem decodificadas pelo cérebro, as cores provocam diferentes estímulos e sensações. Um mesmo elemento, bi ou tridimensional, que nos seja apresentado em diferentes cores terá sobre nós efeitos diversos – da alegria à tristeza, da calma à excitação. Um belo exemplo disso é o PantoneHotel, inaugurado em 2010 em Bruxelas. Convidando a ‘experimentar a cidade por meio da lente das cores’, o hotel atribuiu a cada um de seus 7 andares diferentes paletas cromáticas, objetivando assim proporcionar a seus hóspedes diferentes sensações – nesse caso, cuidadosamente estudadas para se converterem em diferentes prazeres.

 

Saiba mais em:

http://www.pantonehotel.com/

Luz e alma

Coral Lamp :: ©davidtrubridge.com

 

A luminária Coral, criada pelo designer neozelandês David Trubridge, foi lançada em meados dos anos 2000. Na primeira vez que a vi, estava instalada em um ambiente intimista ao fundo de uma conhecida loja de decoração no Soho, em NYC, e o efeito de luz e sombras criado por seus cheios e vazios era arrebatador. Impactada pelo contraponto que parecia existir na essência daquele objeto, me perguntava como seria possível obter um resultado tão delicado e orgânico a partir da montagem de um quebra-cabeças cujas peças são todas idênticas, racionalmente projetadas e industrialmente (re)produzidas.

 

Graduado em arquitetura naval na Inglaterra, na década de oitenta Trubridge morou em um barco por 5 anos, navegando ao redor do mundo. A experiência o levou ao desenho e à produção de mobiliário (inicialmente para embarcações), e o que começou de maneira despretensiosa como um pequeno negócio de caráter artesanal já em meados dos anos noventa transformava-se em uma grande empresa de atuação global.

 

Acreditando na perenidade como atributo do bom design e na arte como propulsora do desenvolvimento humano, David Trubridge desenvolve projetos tendo como pilares a consciência ambiental, a simplicidade e a inovação, sempre buscando obter o máximo de efeito com o mínimo de material. Seus produtos são feitos de madeira proveniente de plantações de manejo sustentável da Nova Zelândia e dos Estados Unidos, e todo processo produtivo é pensado para causar baixo impacto ambiental (substituindo, por exemplo, solventes químicos por óleos naturais). Guiado por um forte instinto de preservação ambiental, e apaixonado pelo mar e por viagens, é nas estruturas e formas presentes na natureza que o designer, até hoje, busca inspiração para cada novo desenho.

 

Conhecer essa história nos permite compreender melhor o impacto provocado pelas peças  criadas por Trubridge. Elas nos tocam não apenas por suas belas formas ou por seu efeito visual, mas principalmente por sua verdade. São peças que têm alma: seu resultado estético está assentado sobre uma ética, e isso é algo que, inconscientemente, conseguimos perceber. Como? A alma, quando existe nas coisas, conversa diretamente com nossa alma – e é nessa conversa que residem as razões do gosto e do prazer que somos capazes de sentir.

 

Para saber mais: www.davidtrubridge.com

O suficiente

Piet Mondrian :: Composition C :: 1935

 

O ser humano precisa aprender o significado da palavra “suficiente“. O que é suficiente para mim? O que me basta? Esta pergunta é fundamental, terrível, crítica.‘ A provocação, feita pelo antropólogo Roberto DaMatta em janeiro de 2011 durante uma entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, nunca foi tão atual.

 

Vivemos uma época em que quase não há espaço para reflexão, e determinadas maneiras de ser e ter são difundidas como verdades únicas: a roupa que se ‘deve’ usar, o carro que se ‘deve’ ter, a música que se ‘deve’ ouvir, o lugar para onde se ‘deve’ viajar… São inúmeros meios de comunicação, sites, bloggers e afins difundindo ‘verdades’ sem reflexão, questionamento e, muitas vezes, sem cultura ou repertório. Pior, muitos  compartilhando mediante remuneração produtos e serviços sem esclarecer a seu público a real motivação daquele compartilhamento.

 

Pelas ruas da cidade, cenas patéticas: acompanhadas de um séquito duvidoso, aspirantes a influencers trocam de roupas dentro de tendas improvisadas, posam para fotos usando peças que não lhes pertencem, em frente a lugares que não frequentam, fingindo uma vida que não vivem.

 

Não bastasse a imposição de padrões de consumo de bens materiais, há algo ainda mais nocivo: a imposição de padrões corporais. Leio sobre ritidoplastia, implantes de pômulo, bichectomia, preenchimentos, harmonização facial. Não faz muito tempo, me deparei com relatos de mulheres que ouviram de seus ginecologistas e de outros ‘profissonais de saúde’ que suas vaginas eram inadequadas e que deveriam ser modificadas. O número de pessoas que sofrem e se culpam por não conseguirem reproduzir um determinado corpo, rosto ou modo de vida cresce dia a dia. Baixa autoestima, endividamento, transtorno de personalidade, ansiedade, depressão, bulimia e anorexia são apenas algumas das consequências desse mecanismo.

 

De nada adianta perseguir modelos artificialmente criados. Tudo que se busca sem consciência acaba em angústia – seja pela impossibilidade da conquista, ou mesmo pela própria conquista. Afinal, quem se satisfaz ao conquistar o que não quer, ou o que imaginava querer mas, de fato, nem sabe por quê? Como no famoso conto ‘O espelho‘, de Machado de Assis, o processo de distanciamento de si mesmo é infinito e conduz ao extremo de não nos reconhecermos mais senão por meio da imagem construída por (e para) outros.

 

Não devemos jamais negar nossa própria essência. É em seu caráter único que está o valor de cada ser humano. Ter consciência de quem somos e do que nos é suficiente equivale a ter liberdade. Olhar para dentro de si e perceber qual a medida e qual a maneira daquilo que queremos ser, ter, usar, sentir ou ouvir, é a única forma de ampliar nossa sensação de plenitude e os prazeres que podemos, a cada dia, conferir à nossa própria existência.